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Formação Pensamento Ocidental – Aula 24/32 – Kant e a moral como finalidade

Luiz Fuganti

 Hoje eu vou falar de quem vocês não gostam, de tanto eu ter falado mal, criticamente. Kant é muito interessante, por isso vamos falar dele; pode ser chato, pode ser um homem da lei, pode ser um homem da moral por excelência, mas ele é o instaurador do plano moderno da separação da vida e da natureza. Ele é o que introjetou o abismo mais sutil, no século XIX, entre a natureza e o homem.

E, nesse sentido, ele vai ser o grande fundamento e inspirador de movimentos como a própria psicanálise (lacaniana, principalmente: Lacan é completamente kantiano); os movimentos estruturalistas vão ter uma inspiração muito forte em Kant; mesmo a fenomenologia vai ter uma certa relação. Enfim, Kant é um marco que separa a filosofia moderna da filosofia clássica. É com Kant que nasce o que chamamos de forma homem, Kant é que inventa a forma homem. Claro, filosoficamente ele vai dar uma forma filosófica, especulativa e moral, mas a forma homem já está nas próprias relações de força que uma sociedade cria para si, os modos como essas relações de força são estabelecidos; e o estrato que isso gera e o rebatimento sobre essas forças vão fundar tipos de seres ou de homens, ou uma subjetividade que vai ser a matéria do kantismo. Kant vai formalizar isso com a mais pura forma moral e legal.

Mas a matéria já existe com o nascimento do capitalismo e com a revolução francesa; a forma homem tem muito a ver com o nascimento do capitalismo e com a revolução francesa: os aspectos político, econômico e social são inseparáveis nessa nova maneira de se relacionar com a sociedade e com a natureza. Kant vai ser uma espécie de tradutor da época; digamos que ele vai estar à altura do acontecimento reativo – que é o capitalismo – e vai traduzir isso metafisicamente. Acontece que ele não só vai traduzir como ele vai aderir de modo absoluto, como se isso fosse inevitável. Ele vai se ligar, se agarrar a uma maneira de ser que destitui a natureza de toda a sua autonomia: a natureza perde a sua auto gerência, a sua autogestão.

Em Kant, uma forma puramente subjetiva se destaca do mundo, da natureza e até do objeto, e o sujeito ganha uma autonomia tal que ele vai ser, doravante, o grande juiz e legislador do mundo e da natureza. Então Kant, na realidade, quer fundar as condições de julgamento e de legislação de uma sociedade, de uma natureza, a partir de uma natureza humana que estaria absolutamente separada, seria absolutamente a priori em relação com os fenômenos empíricos, com o espaço e com o tempo. Haveria uma forma a priori na natureza que fundaria toda a ordem e toda a forma adequada que se encaixaria com essa forma prévia.

Kant, na realidade, vai abrir mão das instâncias empíricas e racionais até então em voga na sociedade ocidental. Empíricas porque Kant não acredita que a forma ou o sujeito se funde ou se fabrique a partir das relações com a sensibilidade, das relações com a natureza; Kant acredita que o sujeito já está pronto, já é em si; que é impossível, a partir de um dado de experiência, se fundar o sujeito. É completamente contrário a Hume, ainda que ele tenha sofrido muita influência de Hume.

  • Participante: e nesse sentido é completamente contrário a Lacan.

Depois vamos ver. Porque ele vai acabar se encontrando com a sensibilidade através da razão prática. Mas mais tarde falamos nisso.

Então, voltando: o empirismo não basta, não é suficiente e, muito mais do que isso, ele é de outra natureza que a subjetividade humana, que a razão humana; e, de outro lado, não adianta a razão se fundar numa entidade fora dela, como até então o idealismo e o racionalismo ocidental fizeram: sempre se fundava numa objetividade ideal, fosse o Bem de Platão, fosse o motor imóvel ou fim último de Aristóteles, fosse o Deus cristão, o Deus de Descartes – não importa que entidade, mas desde que uma entidade transcendente, ideal, que fundaria as condições da própria racionalidade.

Então ele diz: a razão encontra as condições nela mesma e é isso que é necessário; é necessário que a razão apreenda os seus próprios limites e a sua potência – que é só dela, capacidade só dela, faculdade só dela.

Então Kant vai abdicar do campo da experiência e do campo da objetividade ideal – nem Deus nem o mundo, um puro sujeito. Isso que é a lógica ou a inspiração kantiana.

  • Participante: quando você fala “nem Deus nem o mundo, mas um puro sujeito”, o que é esse puro sujeito?

Isso vamos ver.

Kant vai dizer que existem várias faculdades no homem: existe uma faculdade que é puramente receptiva, que é ligada à sensibilidade; existe a faculdade da imaginação; existe a faculdade do entendimento ou do conhecimento; e existe a faculdade da razão. Então são basicamente essas quatro faculdades, sendo que uma é passiva – que é a da sensibilidade, que é pura receptividade – e mais três ativas: a imaginação, para ele é ativa, o entendimento é ativo e a razão é ativa. Então três faculdades ativas e uma absolutamente receptiva, puramente receptiva. Ele busca encontrar um sentido superior para essas faculdades, porque ele diz que haveria um sentido inferior, um sentido mundano, um sentido vulgar, e um sentido superior.

O sentido mundano, o sentido vulgar ou inferior, é aquele sentido que sempre deixa com que essa faculdade seja determinada de fora, que ela não encontre a regra nela mesma. Nesse sentido Kant é um delimitador de campos de competência: a imaginação tem a sua competência, o entendimento tem a sua competência e a razão tem a sua competência. E ele diz que é porque se busca o princípio em outra coisa que se acaba misturando ou tendo ilusão em relação a aquela capacidade, a aquela faculdade. Neste sentido, ele busca então sempre o que é aquela faculdade a partir de uma representação: toda faculdade se refere a uma representação ou a uma relação; ela se dirige ao objeto e a si própria. Por exemplo, na imaginação: o objeto da imaginação é o fenômeno, é o que veio do mundo, é o que está no espaço e no tempo, é tudo que é material. Isso é o objeto da imaginação e, nesse sentido, a imaginação é uma intuição. Então ela intui. Na medida em que ela tem a representação daquela parte de espaço, daquela parte de tempo, daquela parte de elemento do mundo, ela obtém uma representação – ou uma síntese, melhor dizendo – e ela reapresenta essa síntese; essa reapresentação da síntese – ou de uma presentação inicial, que é o próprio fenômeno – é uma ação da imaginação. Ela é ativa nesse sentido.

Então, o que seria a síntese? A síntese só é possível porque há uma condição da experiência. E a condição da experiência, segundo Kant, é a forma pura do espaço e a forma pura do tempo; a forma pura do espaço e a forma pura do tempo são condições a priori de qualquer experiência.

Então a sensibilidade ganha um a priori também: ele já começa a se separar do mundo na medida em que ele diz que o tempo e o espaço são a prioris da experiência, são as condições da experiência.

Então a intuição está diretamente ligada ao espaço e ao tempo.

Mas, na medida mesma em que o espaço e o tempo são formas puras a priori, eles também são as condições do modo de apresentação da própria natureza; então a natureza não é representada, nesse primeiro momento – ela se apresenta. A natureza é uma aparição, ela não é uma aparência em Kant – à diferença de Platão, em que era uma aparência. Em Kant há uma realidade no plano do fenômeno; então ela é uma aparição, ela é o fenômeno. Mas ainda não tem objeto, é fenômeno; o fenômeno é como o acontecimento, você tem uma pluralidade de elementos que formam o fenômeno ou que concorrem para a manifestação do fenômeno. Então isso é uma presentação pura ou uma apresentação da natureza.

A intuição, ou a imaginação, vai reapresentar essa presentação; e na reapresentação, ela reapresenta porque ela já tem uma forma inerente a ela mesma, uma forma puramente subjetiva, que vai fazer uma certa tradução do fenômeno. Essa tradução é sempre no plano formal, nunca no plano material – o plano material Kant ignora, é sempre uma forma que vai espelhar o fenômeno. E isso é uma síntese de imaginação. Essa síntese de imaginação, então, já é aquilo que faz com que a intuição ganhe um objeto: o objeto da intuição é essa síntese de reapresentação do fenômeno. Isso que seria o objeto da intuição. E a forma pura da intuição – que é a intuição enquanto sujeito, ou a imaginação enquanto sujeito – é a forma interna do tempo e externa do espaço. São duas formas a priori.

Então isso é a condição da intuição.

Já o entendimento vai ter como objeto as sínteses da intuição ou as sínteses da imaginação; o entendimento opera uma representação de uma representação. Representação de representação, representação da representação imaginativa. É aí que o entendimento vai atuar.

O entendimento julga e legisla. Ele julga e legisla de que modo? Ele liga uma representação da imaginação a outra representação da imaginação; e de representação em representação ele constrói um sistema. Esse sistema é o sistema do juízo e de uma legislação. Ele legisla sobre o que? Sobre os fenômenos. O juízo ou o entendimento tem, como objeto, objetos ligados à experiência, é sempre ligado à experiência; então o entendimento tem a ver com objetos que vêm do mundo, mas os objetos do entendimento de forma alguma são os objetos do mundo, porque esses objetos já são uma faculdade ativa do entendimento: o entendimento que fabrica esse objeto através de uma forma pura que o constitui. Então o entendimento está fundado num a priori também – sujeito a priori, sujeito lógico que vai gerar a forma através de um rebatimento sobre o objeto da intuição, ou essa representação sensível.

É desse modo que a experiência, ou a matéria, ou a natureza, ou os fenômenos se submetem à legislação do entendimento. Kant opera a chamada revolução copernicana – que ele mesmo nomeia como revolução copernicana – centrando tudo no sujeito; o sujeito é o senhor, o objeto é o submetido. Então tudo o que é objeto na natureza tem que se submeter à legislação ou ao juízo do entendimento. Então o entendimento é o plano do julgamento – julgamento sobre a experiência. Então o modo como o fenômeno vai se submeter ao julgamento é através de uma forma a priori que o entendimento possui. Essa forma a priori se encaixa, de alguma maneira, com a forma criada pela imaginação. Então o fenômeno deixa de ser um fenômeno e se torna um objeto, um objeto formal.

Então o conteúdo da razão especulativa em Kant, ou do entendimento especulativo, é um objeto formal. Ele fabrica no encontro ou na relação que ele tem em cima da faculdade de imaginação.

Então haveria uma hierarquia: o entendimento é superior à imaginação, e a imaginação é superior à experiência. E assim você vai estabelecendo um sistema representativo orgânico.

  • Participante: gerado a partir do que? Qual é o gradiente que determina? É a lógica?

É o a priori. O a priori se define pelo universal e pela unidade. Unidade, universal e, em seguida, o necessário. São coisas que você não encontra na experiência; tudo o que não está na experiência, não é dado na experiência, é um a priori. Em Kant é assim. E ele chama isso as categorias: as categorias são a prioris ou formas que não são encontradas na experiência porque são universais e são unitárias. “Amanhã’, por exemplo, é uma forma a priori: você não encontra o “amanhã” na experiência – isso já é uma inspiração em cima do Hume. Hume vai trabalhar a história do “amanhã” como uma crença, uma crença legítima ou ilegítima, e a questão de como se forma o conhecimento. Só que em Kant essa forma é a priori. Em Hume não, em Hume ela emerge numa repetição.

  • Participante: e é ilegítima, a crença.

Ela é ilegítima ou legítima; existem crenças legítimas e crenças ilegítimas em Hume.

E haveria ainda um outro plano que é o plano da razão. E a razão não é especulativa, ela é prática. E aqui tem o paradoxo maior, porque a razão prática não tem como objeto alguma coisa, algum conteúdo, algum corpo – algo, enfim. Ela não tem objeto, é uma razão prática sem objeto. Muito louco, não é? Isso é Kant: uma razão prática sem objeto. E essa razão prática só é superior e livre exatamente por não ter objeto.

Se ela não tem objeto, ela é uma pura forma; e é uma pura forma com uma ideia transcendental, não mais apenas como um conceito a priori, uma simples categoria; é uma outra categoria especial – na medida em que é uma ideia transcendental. Essa ideia tem como objeto a si própria. O que ocorre? A razão, em Kant, vai fechar o ciclo ou o sistema do juízo; a razão é o último estágio e ela é superior à especulação porque o entendimento especulativo apenas cumpre o interesse da razão. A razão não pode se meter a especular; no entanto, ela delega isso para o entendimento: o entendimento é que deve se voltar aos fenômenos, à experiência ou à especulação. Porque se a razão fizesse isso, a razão estaria ligada a um objeto e ela geraria o que os filósofos anteriores fizeram: geraria a ideia de Deus, de eu e de mundo, tudo a posteriori – e Kant quer atingir isso sempre a priori.

Então ele abandona todo e qualquer fundamento a posteriori e instaura o fundamento a priori a partir de uma razão sem objeto. O maior interesse prático da razão sem objeto, na verdade – e ela é inteiramente uma razão prática e não especulativa – é legislar e ordenar a natureza, a sociedade, o corpo. Ela tem esse objetivo, mas ela é o incondicionado puro, que não pode se confundir com as condições da experiência ou da sensibilidade. Esse incondicionado puro é que vai dar autoridade suficiente a essa razão superior para que o entendimento especulativo opere a transmissão, a comunicação das formas a priori que a constitui. A razão seria como que a forma suprema, a forma última; ou, usando outras palavras, seria o princípio que gera a condição para o entendimento especulativo funcionar. A condição do entendimento especulativo é uma forma a priori também, mas o interesse supremo da razão é que essa forma a priori comande e legisle ou julgue o mundo e a natureza.

  • Participante: isso tudo no sujeito?

No sujeito, tudo se passa no sujeito, é tudo interior. Essa é a bela interioridade kantiana, a bela alma. O estruturalismo – que não encontra mais o mundo, o referencial – é completamente kantiano.

  • Participante: em Lévi-Strauss, é fazer o mapeamento de várias manifestações – que aí, no caso, estou tomando como sendo entendimentos – na vida de coisas que têm um substrato, que se ligam a todas as experiências humanas. É como se houvesse uma estrutura e a experiência vai ser capturada, para além daquilo que se manifesta. E nesta estrutura, nesse ponto, todos nós nos comunicaríamos.
  • Participante: a psicanálise também é toda isso.

Então, a legislação do entendimento é exatamente a construção desse sistema, porque ele vai ligar uma síntese da imaginação a outra síntese da imaginação, mas nunca uma experiência do mundo. E a síntese da imaginação já é modo como o objeto ou o fenômeno no mundo está submetido. É a primeira submissão, porque ela já traz uma forma a priori. Que forma é essa? A forma do espaço e a forma do tempo. Ela já submete. O fenômeno está necessariamente submetido às formas a priori do espaço e do tempo. Em seguida, o entendimento liga essas sínteses, liga uma à outra e constrói um sistema.

  • Participante: por que esse espaço imutável? Por que esse ponto imutável no espaço? É uma coisa imutável?

É uma forma imutável, é uma forma a priori. Segundo Kant, é imutável, é a priori.

  • Participante: isso que é “puro”? O que é chamado de “puro” são essas formas imutáveis, de tempo e de espaço?

Exatamente. A própria forma do tempo e a forma do espaço são a prioris. E os espaços e tempos particulares da experiência dos corpos são necessariamente submetidos a essa forma geral de espaço e tempo.

  • Participante: quer dizer, só podem acontecer dentro dessa grade pura?

Isso. É por isso que necessariamente o fenômeno está submetido ao a priori.

  • Participante: de onde vem essa criação? Já que a razão é essa entidade, é esse estado superior, esse estrato absoluto, de onde vem a construção a priori desse tempo e espaço? Porque se essa grade filtra o entendimento, o conhecimento desses fenômenos ou dessas sínteses, de onde vêm essas definições de tempo e espaço?

De um sujeito transcendental.

  • Participante: se é o absoluto, essa razão que você está falando, a minha questão é: ela ganhou uma estrutura, ela trouxe uma imagem de mundo, ela filtrou. Como Platão, tem uma dinâmica semelhante, nesse sentido. Esse sistema se sustenta nessa definição de espaço e de tempo – parece que essa é a grade, que o a priori se sustenta a partir daí.

O a priori da sensibilidade.

  • Participante: então a minha pergunta é: quem criou esse a priori, de onde vem o a priori, a nível dessa lógica superior que a razão…

Mistério divino. Existem certas coisas que são mistérios.

  • Participante: ele acredita em Deus?

Kant quer fazer a forma homem absolutamente autônoma, independente de Deus; mas ele mantém o domínio da religião. Ele faz a crítica do que não deve se meter em certos domínios. Por exemplo: Deus não deve se meter no domínio da razão – Deus, ou a religião, tem outro domínio. Então Kant trata de dar os limites exatos: “aqui é a razão que atua”, “ali é a religião que atua”.

  • Participante: Descartes fez algo parecido com isso.

Não: o que Kant faz é bem diferente.

  • Participante: é mais radical?

É mais radical. Kant diz que o sujeito não precisa de Deus para se fundar, o sujeito é o centro de tudo, agora, não é mais Deus. Em Descartes, engana-se aquele que acredita que é o cogito; não é o cogito, em Descartes é Deus. Em Kant é o sujeito.

  • Participante: mas mesmo esse sujeito sendo estruturado por Deus, ou por esse mistério divino?

Não. Eu disse mistério em função da forma do tempo e do espaço e da harmonia em relação ao sujeito. Existe um problema em Kant que é a harmonia entre as faculdades; e essa harmonia, vai ter uma hora em que ele vai apelar para o divino. Agora, no fundo o que ocorre é o seguinte: o a priori absoluto da razão vem sob uma legislação em cima do desejo. Que é o seguinte: a razão é o sentido superior da faculdade de desejar; a faculdade de desejar é que dá o sentido prático à razão – a razão é prática porque ela legisla no desejo, sobre o desejo. A razão que vai legislar sobre o desejo vai formar o desejo como uma vontade autônoma; o desejo se torna uma vontade autônoma na medida em que ele tem como objeto essa legislação superior, essa lei superior, essa racionalidade pura.

Como se dá isso? O sujeito desejante só é livre na medida em que ele não se deixa determinar por um objeto da experiência, por um objeto exterior; então ele não se liga a um objeto concreto – mesmo a um objeto da especulação, porque o objeto do entendimento especulativo se liga aos fenômenos do mundo; mesmo aí o desejo não estaria ligado ou soldado a um sentido superior. O desejo só é superior, a vontade só é autônoma1 – e não heterônoma – na medida em que ela não depende de nenhuma forma a posteriori, de nenhum objeto ou de nenhum conteúdo a posteriori. Ela tem uma forma própria a priori; e essa forma própria a priori, no caso do desejo é a pura forma da lei. O desejo deseja uma pura forma sem conteúdo; quando há um conteúdo que determina o desejo, o desejo está numa condição inferior, ele está sendo submetido – ou por elementos sensíveis, ou pela imaginação ou pelo entendimento. O desejo só é livre e se torna uma vontade autônoma e livre quando abdica do objeto, quando não tem objeto.

  • Participante: e para que serve isso?

Vamos indo. Kant é complicado porque, no fundo, ele é sórdido.

Kant acredita que o sujeito livre só se torna um sujeito livre e moral e racional na medida em que ele se rege por uma máxima. E qual é a máxima? A máxima é que as suas ações, que o seu desejo se torne uma lei universal. Então o seu modo de agir deve se tornar uma lei universal. Levar isso de modo tal ao absoluto que entre a ação e a forma da lei não vai mais haver contradição. Uma pura ação moral, uma pura ação do dever – o dever enquanto dever, a lei pela lei, a forma pura que legisla tudo sobre tudo e que encontra até a causalidade sem liberdade da natureza. Porque Kant acredita que o sujeito é uma causalidade livre; ele tem um livre arbítrio, ele tem uma autonomia, ele tem uma liberdade na medida em que a causa que o leva a agir é essa pura forma sem conteúdo. É o incondicionado, por isso que é livre.

  • Participante: mas isso é exatamente o contrário de liberdade.

Exatamente o contrário. Mas Kant e muitos de nós acreditam nisso. Diz Kant: você se submete ao incondicionado, a essa forma pura; mas na medida em que você se submete a ela, em que você se identifica a ela, você passa a legislar. A liberdade se dá na legislação. Então você regula o mundo, você ordena o mundo e você fabrica coisas que não existem no mundo, segundo essa ordem moral; até os produtos vão ser produtos morais, até a indústria vai ser indústria moral.

  • Participante: não sei se o que estou entendendo por “legislar” é o mesmo que ele está querendo dizer; e o que ele está usando como “moral” é o mesmo que estamos entendendo como moral.

Porque nós vimos com outra tradição do pensamento até agora aqui, falando de moral e falando de legislar. Legislar enquanto uma autonomia – até aí não me incomoda. Mas se eu sou objeto legislado por alguma coisa que está fora de mim, por mais que eu tente me convencer de que isso está em mim, isso vira realmente uma faca de dois gumes.

Kant diz que não está fora; ao contrário, isso é todo o anterior. É o a priori. Existem dois sentidos de legislação aqui. Um é o especulativo: o entendimento especulativo legisla sobre os fenômenos. A ciência, por exemplo, vai dar a ordem, a causa, etc. – está legislando sobre os fenômenos, ela monta os sistemas. No caso do sujeito moral, ele legisla sobre os artifícios, sobre os objetos fabricados, sobre as relações humanas; ele legisla a partir de uma criação – é o que Kant chama sistema de cultura. A cultura é uma legislação a partir do sujeito moral. Mas o sujeito moral só é sujeito moral legislador, que tem autonomia, livre, na medida em que ele se identifica a essa pura forma a priori. É uma pura forma – e é transcendental – mas que funda o sujeito. Ela é imanente ao sujeito.

  • Participante: isso então não teria nada a ver com o que é legislação no mundo; esse elemento legislador dessa razão desse sujeito está muito além do que é legislação e moral no mundo. Isso até encanta, a princípio. Eu estou tentando pegar um outro lado que é sedutor. Isso não se joga fora assim – tanto é que nunca se jogou fora.
  • Participante: por exemplo, Espinosa quando fala em ser a causa de si. Acho que aí tem a questão.

Isso. Espinosa diz que liberdade é se tornar causa das próprias ações.

  • Participante: onde está a questão, então?

A questão é: Espinosa é uma potência, nunca uma forma, nunca uma substância, nunca um substrato para um sujeito. Espinosa é sempre modal. Nesse sentido, Espinosa é um acidente da substância, o modo já é um acidente da substância.

  • Participante: nunca é a priori.

E nunca é a priori, é sempre coexistente: ele coexiste na relação. O modo é em relação, nunca é em si.

  • Participante: essa é a questão? Da diferença?

Essa é fundamental. E a outra fundamental é que não é uma forma – ou seja, não é uma substância e não é um sujeito. Ele é uma intensidade, ele é uma potência. Em relação.

  • Participante: mas a ideia de moral e de legislação até agora em Kant ainda não está soldando a moral e a legislação à ordenação do mundo. Ela coloca isso no indivíduo – e nesse sentido ela é encantadora. Onde é que isso de repente trai a si mesmo?
  • Participante: mas ele não tem contato com o externo!

É isso mesmo, essa sensação é perfeita. O homem numa redoma, não tem contato externo.

  • Participante: é a questão do controle, que é o ideal da modernidade. Isso que encanta, a sedução é essa. O senhor interno diz que é legal; isso vai levar às loucuras todas.

Olha a máxima de Kant: agir ou ser de um modo tal, segundo uma lei tal – ou uma regra tal, ou uma forma tal – que essa lei, essa forma ou essa regra se torne a lei do mundo. Então é o desejo submetido à regra, à lei; a lei é o a priori. O desejo só é superior na medida em que ele se liga a essa pura lei. Mas qual é a lei que realmente vai ser capaz da absoluta universalidade? É uma lei sem conteúdo nenhum. Se tiver um conteúdo, já dá um sentido que é parte, que é menor. É o fato de não ter objeto, de não ter conteúdo que faz o imperativo categórico.

Vamos fazer a distinção entre imperativo hipotético e imperativo categórico. Eu digo para um menino: “se você levar esse livro lá na secretaria, eu te dou um sorvete”. Aí ele vai na secretaria levar o livro; “e o meu sorvete, cadê? ”. Ou seja, ele agiu por um interesse exterior: a posteriori ele ia receber um prêmio. Então o desejo dele foi movido por um fim mundano, digamos assim, um fim objetivo, um fim material. Levar o livro era apenas um meio de obter o sorvete – isso é um imperativo hipotético.

Imperativo categórico: “ame seu pai porque ele é o seu pai”. É o dever pelo dever.

  • Participante: mas tem um conteúdo. É um objeto: ame o seu pai porque é o seu pai, ame a lei porque é a lei – não importa se é pai ou lei. Tem um a priori.

Não. Na medida em que isso é preenchido por objetos no mundo, é porque a razão prática, o imperativo categórico, atinge a sua finalidade última, que é o comando absoluto do mundo. Ele se dirige ao mundo. Mas ele só se dirige ao mundo porque ele está fora do mundo; é por isso que ele é livre: ele não está determinado pelo mundo, ele não está submetido ao mundo. Ele determina, ele se aplica ao mundo. É por isso que ele livre.

  • Participante: mas é na aplicabilidade que ele diminui enquanto valor? Quando a lei ou o dever encontra uma aplicabilidade, não é onde ela perde força? Porque, enquanto pura, hierarquicamente ela é mais elevada; mas quando ela encontra essa aplicabilidade…

É por isso que ele é uma forma em sim; é por isso que ele, ao se aplicar no mundo, ele não confunde com a aplicação. Ele usa o entendimento especulativo e a intuição imaginativa. Há uma hierarquia entre as faculdades; a realização disso tem a ver com essa hierarquia. Ele não se dobra em relação ao mundo e se reduz em relação ao mundo; ele se mantém na inesgotabilidade, ele é inesgotável, ele está sempre nessa forma pura a priori. O conteúdo que é dado só é dado na medida em que tem uma forma de objeto do entendimento ou uma forma de fenômeno da imaginação que submete o fenômeno, que submete o objeto no mundo. Mas essa forma pura a priori é incondicionada. O entendimento já é uma condição e a imaginação é outra condição, e o mundo é o condicionado.

Então o incondicionado não se mistura nunca, ele é puro.

  • Participante: é como se fosse uma matriz.

Exatamente, é uma matriz; não tem matéria nunca, ele é pura forma.

  • Participante: e se eu estou no aplicado…

Mas aí através de outras faculdades; aí é que você descobre o interesse da razão prática. Ela é razão prática, mesmo. Mas ela delega o seu interesse à razão especulativa que, por sua vez, submete ou extrai da imaginação intuitiva as sínteses que ela vai operar no sistema. Então há uma hierarquia da aplicação.

  • Participante: o que está no mundo condicionado é sempre coerente de alguma forma, mesmo que empobrecida, a essa razão em seu estado puro. Mesmo que seja de uma forma empobrecida, mas ela tem que ser coerente a essas formas abstratas, ela não pode estar numa posição em que ela perpetre ou denigra.

Existem duas ordens aí: existe a ordem da natureza, que é o objeto da especulação, e existe a ordem subjetiva, a ordem da liberdade, a ordem da autonomia, a ordem do sujeito. E essa ordem do sujeito não quer nem saber se ela se adequa ou não com o mundo; ela produz as formas a priori.

Então é por isso que essa forma pura não quer saber se você sente dor, alegria, prazer, tristeza – ela é uma forma completamente fria, absolutamente fria. É a forma da lei, pura forma da lei. Não importa o conteúdo, não importa se você vai chorar, esgoelar, berrar – é a forma impassível, pura, é a frieza absoluta. Essa forma não quer saber dos conteúdos. Então ela fabrica para si objetos, também – a partir dela você fabrica objetos – que claro que vão acabar tendo relações com o mundo porque esses objetos entram no campo dos fenômenos, eles são feitos no espaço e no tempo, então eles entram em relação de causalidade natural. Mas a ordem do sujeito, que é uma ordem livre, essa é absoluta.

  • Participante: esses objetos que você está falando são representações? O objeto do sujeito, objeto da razão, é representação?

É sempre representação, e a representação em Kant é sempre ativa.

  • Participante: a razão fabrica representações, então?

Exatamente. Agora, representações que são sínteses, na realidade, segundo a forma a priori.

Então não é uma representação arbitrária, não é uma simples fabricação artificial. Há uma lei.

  • Participante: um conceito, por exemplo?

Exatamente. O entendimento fabrica conceitos.

  • Participante: e a razão trabalha com que objetos?

Ideia.

  • Participante: que não é conceito?

A ideia já é um incondicionado, já é um transcendental. Em Kant há uma crítica ao transcendente e ao empirismo; ele diz que o que é essencial é o transcendental, que é imanente ao sujeito.

Há um sujeito absoluto, no fundo – uma alma absoluta – que é essa forma transcendental.

  • Participante: parece que é a mesma coisa que Platão, só que parte do homem.

Isso é a revolução copernicana: ele mudou o centro, o centro agora é o sujeito.

  • Participante: e a relação grupal?

Tudo submetido às leis. O entendimento legisla sobre as leis da natureza, e a razão sobre a lei moral.

A sua liberdade está onde? Você encontra aquela forma, aquele jeito, aquela maneira – que no fundo não é mais uma maneira, não é mais um jeito… é um jeito, uma maneira, uma forma acidental enquanto você ainda está imaginando que essa é a melhor forma. Mas no momento em que você encontra a forma, é o imperativo categórico – ou seja, é a que necessariamente se impõe em todas as experiências possíveis; não tem como uma experiência, um fenômeno, uma relação, até uma relação de entendimento em relação ao mundo, não se submeter a essa forma pura. Então você precisa encontrar o imperativo categórico e fazer dele você. Você se torna ele; quando você se cola nele, você se torna um sujeito legislador.

  • Participante: como ele fala, sobre você ter que querer aquilo…?

Queira de modo tal que aquilo se torne uma lei universal. Essa é máxima dele.

  • Participante: os comitês de bioética: quando você chega para um biólogo e dizer: “você não está tentando descobrir o genoma ou simplesmente fazer testes com clones, porque isso tem impacto empírico, tem impacto na vida”. E eles dizem: “nossa missão não é pensar o impacto no mundo, não estou nem aí para isso; a função da biologia é fazer esses mecanismos, é produzir isso. Essa é a nossa função. Não estamos preocupados com as reações sociais, com o impacto na humanidade”.

Agora vocês podem perceber a diferença entre Kant e Hume. O que Hume faz? Hume diz: tudo são paixões parciais – não egóicas: o ego já é a quarta, quinta camada de efeito de experiência.

Mas tudo é parcial: os impulsos, as tendências, os instintos. E cada tendência quer se efetuar; na efetuação dela, ela pode ir mais longe ou se reduzir à sua própria parte, à sua própria parcialidade. E como ela vai mais longe? Inventando regras ou instituições – a instituição, segundo Hume, é o meio onde você reorienta uma paixão ou uma tendência, que é parcial, de modo tal que ela se conecte, se ligue, que ela se expanda na medida em que ela se encontra com outras. Ela se agencia com outras e não entra em contradição, conflito com elas. Então esse é o papel da instituição e do que Hume chama de regras de passagem. As regras de passagem são uma jurisprudência.

  • Participante: mas é mutável a todo momento.

É por isso que é uma jurisprudência. A jurisprudência não é um julgamento, a jurisprudência é: de acordo com o tempo, o espaço e aquelas condições, você cria um meio para que aquilo se afirme e se expanda, e não prejudique e destrua. Esta é a postura ética.

  • Participante: não é uma coisa para sempre.

Não. Aí você já ultrapassa e cria outras regras. A legislação, em Hume, é uma jurisprudência; em Kant é um julgamento, em Kant você já tem as leis prontas – ou as leis, se não estiverem dadas na razão, vão ser obtidas através dessas formas a priori. Então você julga o fenômeno – ou interpreta, ou avalia, você pode dar até nomes mais eufemísticos, mas no fundo é um juízo, é um julgamento – e o cientista que se liga a esse tipo de postura é completamente kantiano. O cientista que diz “eu faço a minha ciência independente da sociedade, mas devemos inventar regras para que o impacto da ciência seja positivo, o uso seja positivo”, é absolutamente ético e não moral. Então não é o caso de você dizer “eu só vou fazer o que pode ter esse resultado no mundo ou aquele resultado no mundo”: isso é uma postura moral também. E é uma postura moral inferior. A postura moral superior de Kant é essa: que se foda o mundo, o importante é a lei, o julgamento. E a postura ética é exatamente outra; ela diz assim: “a natureza pode, então vamos ver tudo que ela pode; se é possível fazermos clone, vamos fazer clone, vamos levar a natureza ao máximo do que ela pode”. Agora, o uso que se faz disso… é preciso criar regras que expandam a vida ao invés de ser coisa que diminui e achata a vida. Aqueles que são absolutamente impotentes, não podem ter filho, querem ter um espelho, aí vamos fazer um clone: isso é uma visão baixa.

Então as regras ou a jurisprudência tem que agir aí, isso seria a jurisprudência; e não essa justiça, que é o sistema kantiano separado do mundo: lei é lei. Uma vez, viajando para a serra gaúcha, eu estava entre Florianópolis e Laguna e fiz uma ultrapassagem; eu tinha muita visão. E o cara estava usando a metade da pista e então eu tive que usar a metade da outra pista também, eu fiz a ultrapassagem e era faixa dupla amarela; mas eu tinha visão e tinha motor para isso, e não vinha gente do outro lado. E tinha um guarda mais adiante. Mandou parar. Aí fiz aquela cena “ah seu guarda, o que é isso, deixa disso”. Expliquei tudo: não ofereci risco nenhum, não tem nenhum problema moral nem ético – muito pelo contrário, eu só estava expandindo a minha potência. Mas o que ele respondeu: “o problema é que eu vi”. Isso é kantiano. No Paraná o cara vê e diz: “tem jeito”.

  • Participante: você comentou em algumas aulas sobre a questão do simulacro. Como fica o simulacro no Kant? Não fica?

Não fica. O campo da experiência ou dos fenômenos é o campo da diversidade e o diverso tem uma forma unitária sempre. No mínimo a forma mais extensa possível é a do espaço e do tempo – são esses a prioris; mas você encontra, através do entendimento legislador ou do entendimento especulativo, o significado ou a síntese de um fenômeno. A síntese de um fenômeno é a unidade do diverso; então o diverso tem que se submeter à síntese, necessariamente. O simulacro é o diverso que se diversifica a partir de si próprio; ou seja, ele afirma cada vez a sua própria diferença. O simulacro faz isso o tempo inteiro: gera até efeitos de semelhança e de identidade na repetição. Por exemplo: o sol nasceu ontem, hoje nasceu de novo – eu posso até imaginar que é o mesmo ou que é semelhante ao de ontem; mas isso é um efeito da repetição que o simulacro produz. Mas no fundo há uma diferença irredutível, por menor que ela seja; no caso de Kant essa diferença tem que ser absolutamente submetida à síntese. A síntese é a base da representação kantiana; a análise vem do sujeito transcendental e a analítica transcendental vem dessas formas puras que se rebatem sobre as sínteses.

  • Participante: essa síntese se fundamenta por …?

Ela se fundamenta sempre no sujeito. Digamos que existe um único ângulo, um único jeito, uma única lente que sintetiza o fenômeno; essa única lente é a forma do fenômeno. É a forma que interessa, só a forma; a matéria é diversidade e não interessa. Então é uma significação pura do próprio fenômeno, uma significação e uma valoração, evidentemente.

  • Participante: de onde vem a força dessa operação? Parece que é uma coisa que se separa da natureza, mas não se separa de uma potência. Então tem uma armadilha nesse pensamento, que é a questão do a priori.

É o a priori que está colado à vontade. O que Kant faz é o seguinte: ele solda o desejo à lei.

Esse é o fascínio. Porque o desejo está ali, no fundo. Você deseja a lei e a lei deseja em você. É a lei que deseja em você.

  • Participante: essa lei que deseja é uma lei a priori, está fundamentada no mistério?

Nesse caso não: a lei tem um interesse, ela deseja que o entendimento especulativo submeta o campo dos fenômenos, monte sistemas e ordene a natureza e o mundo humano também. Ela tem esse interesse. A lei é interesseira também. Ele diz que é desinteressada.

Na medida em que eu desejo a lei e que a lei deseja em mim, e que a máxima moral minha seria eu fazer dessa lei a lei absoluta do universo, a lei que regula tudo, essa lei que regula tudo precisa ter o efeito prático de regulação de tudo. Então a lei deseja a regulação prática, a regulação em cima dos fenômenos, a regulação em cima do entendimento especulativo também. É um incondicionado que condiciona o entendimento, a imaginação e a sensibilidade. Então no fundo a sedução é que é um desejo, mas a arapuca é que é a lei que deseja: você empresta o seu desejo à lei.

  • Participante: você pensa que você criou a lei, e a na realidade você está submetido a ela.
  • Participante: mas a lei é você. Em Kant a lei já é o sujeito. Nós é que podemos interpretar assim.

A lei já é o sujeito. O homem só se torna livre quando ele se cola à lei. Ela se apodera do homem – esse é o efeito real do ponto de vista ético; mas do ponto de vista de Kant é o homem que tem que aspirar ao encontro, ele tem que se colar.

  • Participante: porque isso é ser homem.

Isso é ser homem, isso é o humanismo.

  • Participante: Estamos interpretando, pensando que o homem não tem nada a ver com a lei e que aí se solda; mas em Kant a lei funda o homem.

E isso é o terror também. Humanismo e terror – Já dizia Merleau Ponty. O terror é indissociável do humanismo.

  • Participante: o problema do terror é ficar nessa dicotomia entre obediência e desobediência da lei, entre transgressão e cumprimento da lei. Desde passar em fronteiras, desde abrir uma porta, desde cumprimentar uma pessoa.

O terror já está instalado na medida em que ele é essa lei a priori. Esse é o terror. É uma única ordem, é uma ordem homogênea, elimina qualquer diferença.

  • Participante: mas te bota sempre num lugar de dicotomia, ou a favor ou contra.

Evidente, aí é a relação binária. Agora, o que é fundamental é que essa forma metafísica, lógica e moral se cola à forma econômica, que é axiomática. É uma única ordem que instaura o abismo, a separação entre homem e natureza, ou entre essa instância fria e a natureza, e que precisa reproduzir isso. O capital é o que mais reproduz isso.

  • Participante: você pode voltar à questão da vontade? Você falou: tem a questão da vontade, que é capturada.

O desejo se torna uma vontade autônoma – ou seja, que se autorregula, que se auto legisla (supostamente, sem dúvida: isso tudo no Kant) -, ele se torna uma faculdade superior de desejar, quando ele encontra uma determinação que não é nem um objeto no mundo, nem um objeto da experiência, e nem um objeto da especulação. Nem um conceito, porque o conceito remete ao objeto da experiência. O desejo só é autônomo e livre na medida em que ele não tem objeto.

Em Espinosa nós temos uma potência de afetar e ser afetado; e a consciência, ou o desejo que tem consciência, só emerge quando uma força, uma potência ou um afeto de fora me determina, gera uma imagem em mim, gera uma modificação em mim; segundo essa modificação, eu vou reagir, eu vou afetar, eu vou modificar. A imagem que emerge ali é uma determinação do desejo; mas é um objeto mundano, é algo do mundo que determina e orienta o meu desejo: eu vou reagir em relação a aquilo que eu sofri. Então necessariamente o desejo é determinado por alguma coisa – num encontro, porque nós estamos sempre em relação. No caso de Kant, o que ele quer fazer? A faculdade de desejar, superior, é aquela que não se deixa influenciar ou determinar por nenhum elemento do mundo ou da natureza, nada da natureza: é uma pura forma que determina o desejo. Aí você constrói uma vontade autônoma, livre e superior – essa é a vontade humana, o livre arbítrio. Aí você se torna legislador. Por que? Porque você não é mais parcializado nas paixões do mundo, você é uma pura forma desinteressada.

  • Participante: muito lindo isso quando pensado para o indivíduo dentro da sua redoma, mas como todos esses indivíduos têm que se filiar a alguma coisa, então isso que, a princípio, é puro, já é muito ingênuo pensar que isso vai ficar puro, porque na hora da negociação disso, todas as razões puras vão ter o interesse.

Kant invoca o senso comum que é a harmonia entre as faculdades; mas o senso comum não é entre os indivíduos, é o senso comum entre as faculdades – a faculdade de imaginar, de desejar, de conhecer.

  • Participante: seria igual em todo mundo?

Isso que funda a ideia de comunicação; ultrapassa já a segunda ilusão filosófica que era a reflexão. A primeira ilusão é a contemplação, a segunda é a reflexão em Descartes, e a terceira é a comunicação em Kant.

  • Participante: quer dizer, essa quimera, essa coisa pura, pode se comunicar. Essa razão pura se comunica.

Isso.

  • Participante: é transcendental.

No fundo é um grande sujeito transcendental.

  • Participante: é universal?

É universal, absolutamente universal. É a unidade suprema.

  • Participante: aí que se instala a suposta potência.

Exato. É tão fácil! Quando te dão um cargo para você exercer; aí surge um problema e você vai exercer a sua autoridade. O assujeitado se delicia, adora, ele ganha potência, ele fica de pau duro, ele ganha tesão – ele tem o poder, ele ganha poder. É exatamente o momento em que uma instituição institui o seu desejo naquele cargo, naquela forma, naquela lei: você se cola a aquilo. De modo que quando aquela ordem desaparece e os efeitos negativos daquela ordem ficam, aqueles que vão te acusar pelos efeitos negativos que sofreram você vai dizer assim: “ah, mas eu fui mandado, isso era uma ordem, eu apenas cumpri ordens”. Então é a questão da transmissão do aguilhão: na medida em que você ganha a condição ou a autoridade para exercê-lo, é numa forma pura, neutra, mas que não se sustenta sem o poder. É isso que Kant se esqueceu de dizer.

Então o desejo, no fundo, antes de tudo é um campo informal, é um campo de composição que gera um tipo de estrato, de saber, de valores de época, que necessita divulgar uma forma que é a sua forma universal. No fundo é a própria forma do capital. Kant é um pensador de época, ele se reduziu à sua época. Kant é um funcionário do Estado capitalista. Descartes ainda era um funcionário de Deus, ainda era padre. Kant é final do século XVIII para século XIX.

  • Participante: não é só a questão do capital; estou pensando a ideia de ciência mesmo. O modelo de ciência, de verdade absoluta da ciência independente da função que isso ganha na vida.

A ciência se alimentou muito.

  • Participante: é a mesma questão do capital.

É a mesma questão.

  • Participante: não está lidando com o dinheiro aí, especificamente, está lidando com o pensamento. Mas eu entendo que o terreno é o mesmo; em outro campo de atuação, mas o terreno é o mesmo.

O capital é que diz o que você deve pesquisar, o capital é que orienta tudo. Você vê as universidades hoje em dia: são todas a serviço da aplicação daquele saber. Hoje saber especulativo, saber filosófico, saber de humanas só servem para submeter o homem. Só nesse sentido. Quando não é aí que a coisa se passa, é descartado. Então há uma aplicação imediata do saber; o saber é técnico, o saber é aplicado. E a ciência está serviço do saber aplicado, do saber técnico. E esse saber técnico é demandado. O capital vai dizer a direção: “para fazer essa investigação existe dinheiro, mas aquela outra não”. Nem te dá explicação nenhuma – para isso tem dinheiro.

  • Participante: quais são os três livros básicos do Kant? Crítica da razão pura…

A pura, a prática e a do juízo. São três críticas. A do juízo já é bem no final da vida. A da razão pura é essa razão especulativa que ora se submete ao empirismo, à experiência, e ora se submete a Deus ou ao ideal. Então ele quer uma razão que encontre a forma nela mesma, que seja autônoma – ele quer produzir a autonomia da razão. E a razão prática é a mesma coisa: ele quer encontrar um imperativo categórico e não hipotético; ele não quer que a moral seja um meio, ele quer que a moral seja o próprio fim. A moral não precisa mais do Bem.

Antes de Kant tudo se orientava em direção ao Bem, a Deus ou ao Ideal; em Kant a moral se basta. Antes de Kant a moral era um meio para atingir o Bem; em Kant a moral é o seu próprio fim.

Isso a Crítica da razão prática. E na Crítica da razão pura a razão não encontra fins fora dela, em Deus ou numa natureza última; a razão encontra fins nela mesma, enquanto razão. A razão tem seus próprios fins.

  • Participante: e nessa terceira obra?

Aí é a questão da analítica do Belo, a questão estética. Aí Kant gera uma fissura na obra dele. É mais ou menos como no Sofista de Platão: é onde Kant indica um pouco a sua reversão. Porque é a questão entre o objeto do desejo. O juízo se liga ao que preenche o desejo, que é a dor ou o prazer; sempre você vai ter dor ou prazer, ligado à felicidade ou infelicidade. A questão do juízo está diretamente ligada a isso. Então um problema que surge aí é o de que o desejo – que deseja apenas a lei enquanto pura forma – de que modo pode se satisfazer? Kant diz que há uma indeterminação da forma, apesar de ela ser infinita; essa forma, você vai sempre, indefinidamente, no sentido do absoluto ou do imperativo categórico. Você nunca encontra essa forma absolutamente acabada e aquele limite que é absolutamente preciso. Ela é indefinida, apesar de ser um imperativo categórico. Mas ela te preenche? Essa é a questão? Ela te dá felicidade? Kant diz: há uma ilusão imanente às faculdades; e a ilusão imanente à faculdade do desejo é a de que a felicidade ou o contentamento que você ganha com o preenchimento do desejo, no caso da faculdade superior de desejar, se confunde com a causa. Ou seja, aquilo que te fez alegre, aquilo que te fez feliz, se torna a causa do próprio desejar.

Então ele diz: isso é uma ilusão imanente à faculdade de desejar. No fundo, você tem que se libertar tanto do objeto, que seria a felicidade, quanto do motivo, que seria a virtude; nem a virtude, nem a felicidade, mas uma pura forma a priori que vai determinar o que é virtuoso e o conteúdo da própria virtude.

A questão do juízo ou da crítica do juízo é você obter um preenchimento pleno em relação a essa faculdade superior de desejar, não se submetendo a um objeto que dê prazer ou dor. É uma felicidade extra mundo.

  • Participante: é um nirvana.

É um nirvana.

Do ponto de vista de Kant, a atividade da crítica é permanente porque essas ilusões estão sempre aí, você não as elimina.

  • Participante: nessa hora ele retira o desejo, entramos na neutralidade científica.

Ele pressupõe que as faculdades são harmônicas e saudáveis; e, nesse sentido, elas são autossuficientes para eliminar as ilusões. E, no entanto, essas ilusões – que habitam essas faculdades – não são extirpadas na medida em que a comunicação entre essas faculdades não é adequada. Então a relação é de comunicação entre as faculdades. E Kant, que se gaba de não ter precisado de nenhuma harmonia pré-estabelecida entre a relação de sujeito e objeto, agora precisa de uma harmonia pré-estabelecida entre as faculdades. E tudo se passa no interior do sujeito, não é mais sujeito com objeto, é o próprio sujeito. Aí sim ele apela para o mistério divino.

  • Participante: na Crítica do juízo?

Na Crítica da razão pura. E da razão prática também. A do juízo eu não sei dizer com exatidão se ele chega a trabalhar isso aí. Mas na questão da razão pura e da razão prática, sim.

  • Participante: você chegou a falar que ocorre ruptura nessa terceira obra, já em fim de carreira, já em fim de vida, em relação às obras iniciais?

Não é uma ruptura, é uma abertura: ele vê coisas que até então… ele se volta para o estético.

A estética ganha uma nova dimensão. Porque em Kant há uma separação entre a condição da experiência real e a condição da experiência possível. A condição da experiência possível é tudo que interessa para ele.

  • Participante: ele até fala: construa um mundo em que você queira voltar.

Isso tem a ver com a máxima dele: deseje de tal forma que essa forma se torne uma lei universal.

  • Participante: mas isso não é potência?

É a lei, é a forma, e não o desejo. O desejo submetido à forma. É esse o problema.

  • Participante: à lei ou à forma?

A lei ou a forma, é a mesma coisa.

  • Participante: mas o desejo o que quer? Retornar.

Isso vamos esperar Nietzsche, é o eterno retorno de Nietzsche. Aí deseje que o acontecimento se repita infinitas vezes, que ele retorne infinitas vezes. É completamente diferente. É o acontecimento. Você deseja que aquele jogo retorne infinitamente – mas é um jogo, é o acontecimento, é a potência, não é a forma.

  • Participante: mas isso é capcioso: desejar que isso se repita é também desejar que uma forma possa se repetir.

No caso de Nietzsche você vai ter uma coisa superclara, que é o eterno retorno seletivo. O eterno retorno é necessariamente afirmativo e, por ser afirmativo, ele é seletivo; na medida em que ele é afirmativo, ele elimina os meios quereres, as formas médias, as formas, as figurações. Ele não deseja o eterno retorno da ordem ou da forma, ele deseja o eterno retorno da potência que se efetua.

  • Participante: no caso de Kant, do “eterno retorno dessa forma”, é uma ação que é ressentida porque ela age a partir de uma mesma marca. O que eternamente retorna é o mesmo ressentimento.

Exato. Perfeito. E é por isso que Nietzsche vai dizer que em Kant se dá o niilismo reativo. Há o niilismo negativo que vem de Platão até Kant; e em Kant é o niilismo reativo, ou seja, já existe o niilismo reativo com o próprio cristianismo, que é a má consciência: a culpa é minha; o sujeito, a subjetividade inventada pelo próprio cristianismo, inventada por São Paulo. São Paulo já tinha dado a forma religiosa da má consciência e Kant vai dar a forma humana, a forma lógica, moral e subjetiva humana. Então niilismo negativo é aquele em que você nega o outro, nega o mundo; niilismo reativo é quando você se nega a si próprio. No caso de Kant é essa pura forma negando o desejo. E depois vai haver ainda o niilismo passivo e o niilismo ativo, que é o niilismo vencido por ele mesmo. Aí é o terrorista lá.

  • Participante: sobre o imperativo categórico: eu tenho um amigo e o imperativo categórico me diz que eu tenho que dizer apenas a verdade, que eu não posso mentir. Esse amigo tem que se esconder das autoridades políticas, vamos supor; ele se esconde na sua casa, as autoridades vão lá e você entrega o cara.

Se você for realmente kantiano, sim.

  • Participante: e o outro teve o amigo que mereceu.

Quem mandou ser amigo de um kantiano? É como os americanos com os seus terroristas: eles têm os terroristas que merecem.

O que ocorre então? O que é o inocente, aí? O inocente é sempre aquele que habita uma pura forma neutra, que dá vida a essa pura forma neutra, que deseja essa pura forma neutra; e essa pura forma neutra deseja nele. Esses são os inocentes. Ou seja, são completamente cúmplices, ainda que não se apreendam nunca enquanto partícipes.

Sempre que não estamos colados à nossa própria potência, nos tornamos cúmplices de uma situação; quando você está colado, você ainda é, mas você já se liberou de alguma maneira porque você está no limite do que você pode. E se você está aí, não tem problema nem na morte – nada tem problema. Aí essa negatividade desaparece, se você está colado ao que você pode. Se você não está colado ao que você pode, você é cúmplice e acredita que é inocente; e é envolvido por uma situação “que você não determinou” – entre aspas, porque você está ali como uma parte que determina aquela situação. É a estreiteza do pensamento que não vê a relação. É o que dizia o Bertold Brecht: não somos comunistas, não somos capitalistas, não somos liberais, não somos isso nem aquilo; não pertencemos a nenhum partido, imaginamos o eu e a minha redoma.

E de repente vem um acontecimento e te envolve e aí: “olha que injusto, olha que injustiça, eu que não faço parte disso! ”. Não faz parte disso como? Somos do mesmo planeta, as relações humanas em cima do mesmo capital, das mesmas máquinas, as mesmas vias, as mesmas comunicações.

Essa rede de fato se põe como neutra, a comunicação é neutra, o avião é neutro, as máquinas são neutras, o capital é neutro. Mas quem dá vida a isso? Então essa é a mais pura forma da lei que fala em nós. Quando dizemos que somos inocentes, já estamos inteiramente mergulhados na ilusão da solda do desejo e da lei.

  • Participante: então a dissociação é uma suposta potência, nesse esquema kantiano. A dissociação no sentido da dissociação do a posteriori. Quer dizer, eu não invento, eu não construo porque já tem um a priori; se eu não invento e eu não construo, eu estou na atualidade o tempo todo, na contemporaneidade o tempo todo.

O ato. Mas ao mesmo tempo você inventa e constrói também, segundo essa forma a priori.

  • Participante: sim, mas se eu estou na forma a priori, eu estou vinculado já a uma matriz inventiva, inventora. Então eu também não estou comprometido no sentido de uma autoria, pensando a história do Foucault. Quer dizer, não somos autores, nós somos sujeitos então. Essa é diferença entre o autor e o sujeito.
  • Participante: mas ele fala em liberdade aí, não é?
  • Participante: você vai fechar Kant hoje?

Eu volto em Kant agora do ponto de vista de Nietzsche.

  • Participante: eu quero avaliar essa questão da armadilha, porque estamos vivendo de uma forma tão sutil essa questão kantiana – que é essa suposta neutralidade, dissociação e que eu vejo negação.

Você leu O processo, do Kafka? Torne a ler. No Kafka você vai ver super claramente essa questão da lei que não revela seu conteúdo – K não sabe do que ele é acusado; e, ao mesmo tempo, há uma hora em que nem se releva mais isso, isto é, não está mais em questão se a acusação é ou não pertinente. A acusação torna-se um dado. É a forma como o processo se conduz. Como um grande negócio. Inocular a dívida ou a culpa a priori. E a forma é sempre uma forma de adiamento, de indefinição e de absolvição aparente. Nunca você absolve realmente porque a inocência está eliminada de cara; se você é submetido a uma forma de lei, jamais você é inocente. E a forma da lei não dá o conteúdo; você só vai saber o conteúdo quando você for punido. É por isso que o imperativo categórico é absoluto e é vazio; ele é uma pura forma de lei: você só sabe quando você recebe o conteúdo, que é determinado por um poder. Aí você vê que o imperativo categórico é a invenção de um poder.

  • Participante: de um poder, mas não de uma potência, é isso?

De um poder e não de uma potência. É só o poder que necessita de um imperativo categórico; a potência é a crítica disso, ela elimina isso, necessariamente; só na sua atividade ela já dissolve.

  • Participante: a confusão é que quando nós estamos poderosos, nos sentimos potentes. Essa é a armadilha que eu vejo que o capitalismo o tempo todo traz.

Poder: porque ele te dá grana, ele te dá cargo, ele te dá posição, ele te dá prestígio, ele te dá reconhecimento.

  • Participante: e tudo dentro da lei.

A lei aí é a lei da axiomática.

  • Participante: e o terrorismo – não esse do dia 11, mas o terrorismo não niilista?

É a mesma. Essa que aconteceu no dia 11 é a mesma, fundada no humanismo. Nós, do

Bem, diz Bush; nós humanistas, contra o terror. Mas quem criou o terror e quem alimenta o terror é essa forma de humanismo.

  • Participante: o terrorismo do humanismo está em colocar você como ou a favor ou contra.

O terrorismo do humanismo é cínico, é um cinismo que diz assim: você é livre, você vive numa sociedade livre, você pode fazer o que você quer. Como você vai reclamar que há uma ordem imposta? Isso é Kant. Tem aí a liberdade e a liberdade é o que? Se cole a esta forma senão você é um desajustado, você é um doente. Esse é o problema. Então quando a sociedade americana não entende o que acontece: como não entende? Não entende por que? Porque está colada a essa forma. É a toupeira. Então aí fazem o que? Geram mais terror e paranoia; vocês viram nos aeroportos, até canivetinho, tudo. É ridículo.

  • Participante: um casal amigo nosso teve um alicate de unha preso em Recife. Quem que ia jogar uma bomba em Recife?

E isso se torna cada vez pior porque a sociedade não tem a confiança necessária – e não pode ter mesmo, porque ela tem um sistema completamente sacana. É um sistema que gera a paranoia: quanto mais se falar em retaliação, mais paranoia vai se produzir. Os meios ativos do niilismo, o niilismo ativo que vai bombardear tudo aí. E vai mesmo, não tem como. Como você destitui a paranoia? Hume é perfeito: quando você inventa instituições que se tornam meios para que as ações, que são individuais ou particulares, não sejam nocivas aos outros, mas ao contrário, fortaleçam os outros nos seus encontros através daquele meio inventado. Você inventa o meio que afirma as paixões particulares. É isso que não sei se os americanos vão entender um dia, mas essa é a diferença que eles deveriam respeitar. E não “todo mundo é livre para ter a sua opinião”. A diferença mais estúpida do mundo. Essa diferença é completamente medíocre; é essa que gera o terror, porque essa diferença, no fundo, não respeita porra nenhuma.

  • Participante: é o caso da própria democracia norte-americana: somos multirraciais; todos se odeiam.

Exatamente. É um ressentimento absurdo.

  • Participante: quer dizer, não é uma lei diversa, na verdade.

Não é uma lei afirmativa.

  • Participante: não é uma lei afirmativa, nem que trabalha a diversidade. Eu estou pensando em relação ao que Espinosa trabalha, que é a questão mais política.

Espinosa chama de noção comum.

  • Participante: e aqui é o senso comum no sentido da homogeneidade.

Isso. Bom senso e senso comum.

  • Participante: é a homogeneidade. Vivemos num regime democrático – quer dizer, homogêneo, na verdade.
  • Participante: que todos sejam loiros.
  • Participante: acho que eles são mais inteligentes, acho que subestimamos. Acho que hoje existe uma política e uma estratégia – por exemplo, com Clinton, trazendo mais ainda os negros, o jazz. Eu acho que o capitalismo é muito inteligente.

O capitalismo é sedutor.

  • Participante: eles atualizam. Você olha o prefeito negro em Nova Iorque. A tolerância zero em Nova Iorque em nenhum momento ficou só caracterizada como uma questão racial, que os bandidos eram negros: eles pegavam os brancos também. Tem uma engenhosidade. Tudo em nome da lei, inclusive o uso da inteligência em nome dessa lei. Quer dizer, tem algo que comove e que seduz, que afeta. Essa dinâmica, não é algo estático porque senão ele morreria, seria denunciado. Precisou um ato radical desse para desmascarar, com a intensidade da violência que eles estavam vivendo e que vivem esses povos onde estão esses grupos radicais. Mas tem uma dinâmica que eu diria que é muito rápida, eles estão sempre na frente, nesse sentido, porque a lei é um a priori. É como se eles acreditassem e fundassem de verdade o a priori.

A lei com axiomática. É junto. Seduz porque não é apenas uma lei, é que eles habitam aquela axiomática e eles ocupam realmente aquele lugar de poder, acabam ocupando. Então não é mais o estilo de vida, regras, valores diferenciais que contam; é um único valor, o valor da axiomática. É isso que inclui, a inclusão é essa; e essa é a isca, esse é o anzol – a inclusão. Vamos incluir.

  • Participante: que se chama democrático. Essa é a grande trapaça.

O cinismo é esse. É completamente cínico. Democrático? Claro. Somos todos iguais perante a axiomática. Desde que você entre nela. E se você não entrar nela você recebe o seu terror, o terror axiomático.

  • Participante: mas onde está o puro, aí? Se a lei é pura… aí, no que você fala, tem um conteúdo, tem uma forma. Onde está, dentro desse sistema, essa lei pura, abstrata a tal ponto que nós nos enganchamos?

A lei pura abstrata é a regra axiomática. É a própria regra, a axiomática é que vale. Você lê um contrato; se ele respeitar a axiomática, não é que o outro foi explorado, sacaneado e aí entra em litígio. Desde que tenha sido respeitada a relação axiomática, acabou. A lei e o contrato são primeiros em relação à instituição. Em Hume é o contrário, em Hume é a instituição e regras de passagem, não é uma lei que só vê o olhar axiomático, o olhar da troca. Então a regra é plural e múltipla. Então é uma invenção total.

  • Participante: você falou “recebe um terror”. Como é que fica, no caso dos Estados Unidos, esse terror que ele recebeu? Porque aí então ele feriu uma axiomática.
  • Participante: quem feriu a axiomática é quem não concordou com a forma norte-americana de ser.

Foram os terroristas. O que é incrível é que eles usaram a mesma lógica do capital, ou seja: a surpresa, a desestabilização, o vácuo e a acumulação – no caso, a acumulação de prejuízo. E alguns terroristas, a acumulação de lucros também, porque já foram lá e fizeram a mesma jogada que os capitalistas fazem: antecipam, provocam certos movimentos, mas antes disso venderam certas ações e compraram outras.

E a primeira tática de guerra contra os terroristas foi congelar as ações ou a grana, os bens, de quem investiu nas ações que subiram.

  • Participante: é a grana que faz andar. O que faz movimento é a grana.

A regra é a grana.

A forma vazia recebe qualquer conteúdo. O advogado está o tempo inteiro interpretando a lei; os terroristas adoram isso. A lei é inventada para ser transgredida.

  • Participante: e aí você, ao invés de ter regras ou ritos de passagem, você tem formas.

Formas absolutas. Forma do dever. Não é uma regra como uma maneira de expressar a potência, mas um limite de obediência em relação à potência: a potência deve obediência a essa forma.

Essa forma tem o poder e a potência deve a essa forma a ordem. Então é o dever da pura moral kantiana. Kant então funda a moral como uma finalidade, não mais como um meio.

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