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Formação Pensamento Ocidental – Aula 23/32 – Empirismo (continuação)

Luiz Fuganti

A nossa questão é bem prática, estamos usando a filosofia com o estilo de viabilizar uma postura, mesmo, não é uma questão teórica – ainda que usemos a teoria, ainda que usemos a questão especulativa para servir a essa postura prática. Então, nesse sentido, vamos enfatizar hoje o aspecto fundamental do empirismo que é a não pressuposição de basicamente nada: o empirismo não pressupõe Deus, ele não pressupõe mundo, ele não pressupõe o sujeito, o eu, ele não pressupõe nada.

Não tem substância e não tem sujeito para o empirismo; o sujeito vai ser explicado, vai ser posto, vai ser um resultado de uma relação da natureza com a própria natureza. A questão fundamental de Hume é essa: você tem uma abdicação absoluta de qualquer pressuposto; não tem o eu, não tem o mundo e não tem Deus. Não tem nem uma substância, sequer.

O que tem, para Hume? Tudo o que existe, tudo que é real são impressões, só existem impressões. E as impressões têm basicamente dois aspectos.

  • Participante: mas a impressão não se faz sobre alguma coisa?

A impressão, na realidade, é um encontro, ela é o próprio encontro. Então, na realidade, existe algo que se encontra com algo que gera uma impressão. Então é isso que precisamos ver o que é.

Se não é sujeito, se não é substância, se não é o mundo, se não é o eu, o que é isso que se encontra com algo e gera essa ideia de impressão? A própria impressão é toda a ideia, ou todo o espírito; o que Hume chama de espírito é a própria impressão. Então o espírito já é dado, a impressão já é dada antes do nascimento do mundo, do espaço – ainda que o espaço e o tempo sejam coexistentes, mas do ponto de vista das próprias impressões. O espaço tal qual conhecemos, já é a partir da formação do sujeito.

Então a nossa questão é saber o modo como você forma o sujeito e a visão que você tem do espaço e do tempo a partir dessa instância chamada sujeito. Ele não diz que o sujeito não é nada, que o sujeito não existe; ao contrário, o sujeito tem uma realidade, ele tem uma instância, ele é um resultado, ele é uma realidade viva, mas ele não é a priori. O sujeito não é uma forma e nem um desenvolvimento de formas; isso a tradição ocidental nos habituou a pensar assim: o sujeito é uma coisa a priori, uma forma, e através dele você vê o espaço e vê o tempo ou, no caso de Kant, o tempo vai ser a forma de interioridade do sujeito e o espaço vai ser a forma de exterioridade. Mas você tem sempre uma forma prévia, a priori, a partir da qual você se relaciona com alguma coisa. Então o dado sensível ou a impressão no mundo, os afetos no mundo, as paixões, as tendências, as diferenças – enfim, tudo que se passa no mundo não é um dado a posteriori que o sujeito percebe, que uma consciência percebe; o sujeito e a consciência são resultados de uma relação primordial na própria natureza.

Então a questão é saber o que seria esse estofo da natureza, que estofo que é esse, e o que existe a priori como dado que, ao mesmo tempo, não pressupõe absolutamente nada. Hume vai dizer que é o que gera ideia de separabilidade, o que é separável na natureza, o que pode ser distinguido; o que é separável ou o que pode ser distinguido gera a ideia de diferença. É porque há diferença que algo pode ser separado e algo só pode ser separado porque há diferença; quer dizer, há uma pressuposição recíproca aí: você não tem o princípio de distinção sem um fundamento ontológico da própria diferença. A diferença é o que está no fundo de qualquer relação; tudo é diferença.

E essa diferença Hume vai associar a uma ideia de realidade mínima, uma quantidade mínima de realidade; e essa quantidade mínima de realidade não é uma matéria infinitamente divisível onde você atingiria um infinitamente pequeno. Por exemplo, não adianta você dividir um grão de areia na milionésima parte ou infinitas partes, e dizer que a mínima das mínimas partes de um grão de areia seria uma diferença mínima, última, irredutível da própria natureza.

Esse mínimo, na realidade, não é um mínimo numérico, não está ligado a uma divisão infinita, mas ele é um mínimo ideal; mas ao mesmo tempo em que ele é o mínimo ideal, ele é o mínimo de impressão. A impressão e a ideia são a mesma coisa. É o mínimo, no fundo, que você pode distinguir em qualquer realidade; se você ficar numa zona absolutamente indiferenciada, numa zona noturna, numa zona misturada, aquele mínimo de realidade que você distingue – quer dizer, não é nem que você distingue, é a realidade mesmo que se põe sozinha, aquele mínimo que se põe sozinho. Este mínimo, na realidade, é o estofo da natureza, é o conjunto desses mínimos que, no fundo, são realidades, são impressões ou percepções.

  • Participante: isso não está próximo ao clinâmen?

Está, sem dúvida. É uma espécie de atomismo, o de Hume, mas não é o atomismo mecânico, não é o atomismo vulgar; é exatamente a ideia de uma singularidade que não tem uma extensão – nem igual a 1, nem igual a 2, nem igual a 10. Ou seja, a extensão da ideia é o número de elementos que são subsumidos na ideia. Vamos supor: eu acredito que tenha 5 bilhões de indivíduos no mundo; então a ideia de homem subsome 5 bilhões, é o número da ideia de homem. Isso é a extensão da ideia. No caso, esse tipo de ideia, essa ideia singular não tem extensão nem igual a 1, não é numérica a extensão dela – ela é singular, é um irredutível último. Então esses perceptíveis ou essas realidades se percebem nelas mesmas, elas se diferenciam nelas mesmas; elas não são redutíveis à percepção de um sujeito ou de um objeto. A realidade se põe por ela só e esse mínimo de distinção já dá a dimensão e a consistência ou a espessura que tem essa realidade. Isso que é fundamental marcar.

Então você não pressupõe nenhuma ideia de mundo, nenhuma ideia de sujeito, nenhuma ideia de substância; tudo é modo, tudo é afecção, tudo é impressão, tudo é percepções mínimas no sentido de que são realidades irredutíveis: você não as subdivide mais, você não encontra uma unidade menor do que a delas. Há uma unidade mínima – que, no fundo, é a singularidade.

Isso Hume vai chamar de impressão, ideia ou espírito. Então o espírito não vive no sujeito a partir do sujeito; não é necessário ter o sujeito para o espírito habitar o sujeito. O espírito, no fundo, é o que funda o sujeito; o espírito é uma realidade irredutível que, ao se desdobrar no movimento da própria natureza, vai gerar impressões de sensação e impressões de reflexão. As impressões de reflexão no fundo vão formar o que Hume chama de imaginação.

A imaginação é o conjunto das impressões que se refletem num indivíduo. O indivíduo seria formado por um conjunto de impressões – impressões de sensação e impressões de reflexão. A impressão necessariamente se reflete na imaginação – você não tem nenhuma impressão que não se reflita na imaginação. A impressão se reflete e se estende – ela sempre tem esse movimento.

  • Participante: eu estou com essa ideia de encontro – encontro de duas potências, de duas forças.
  • Participante: eu fiquei nessa parte.
  • Participante: essa coisa do se reflete e se estende é que não estou conseguindo entender. Eu não sei o que é esse “se reflete”.

Vamos dar exemplos de indivíduos. Por exemplo, eu tenho a impressão da luz de sol, uma impressão de luz no meu olho. Essa impressão é uma impressão de sensação através dos órgãos dos sentidos. No movimento de sequência, necessariamente essa impressão se reflete em mim, ela vira uma imagem, ela se duplica; então ela não precisa mais da sensação, ela se reflete em mim. E quando ela se reflete, ela ultrapassa o que a impressão me deu, ela ultrapassa o dado da experiência. Eu tenho uma reflexão na imaginação. Eu recebo a impressão, a impressão já é uma imagem, mas eu tenho um conjunto de imagens que é a minha imaginação, e na imaginação ela se duplica, ela se reflete, ela se espelha. E essa reflexão já é uma liberação do dado único da experiência, é uma liberação da impressão. Ela já é condição da formação de uma ideia geral: a reflexão vai como que generalizar a impressão singular e acidental que eu recebi. Então ela já tem a possibilidade de fazer um movimento de extensão: ela reflete e se estende, ela volta para o mundo. No fundo, as impressões são paixões, porque não há nenhum conjunto de realidade que não tenha esse movimento de impressão de sensação e impressão de reflexão. Mas a impressão de reflexão ela já é como se ela devolvesse a relação que ela recebeu; ela devolve, de alguma forma, ela se estende novamente para o mundo.

Aqui se passa algo interessante: Hume diz que a natureza funciona por dois aspectos básicos: intenção e crença ou desejo e crença. O que seria o movimento de crença? Por exemplo: a natureza te dá um campo de realidade, que é o campo da impressão; isso é o que seria o inato, digamos assim – o que é inato é a própria impressão, ou a ideia que se confunde com a impressão. Isso seria o inatismo. Mas o inatismo se dá sempre a partir do encontro. Então isso é dado, isso é a experiência.

Agora, existe algo que te faz ultrapassar a experiência, existe algo que faz você ultrapassar o que é dado. Quando você ultrapassa o que é dado você já está nesse movimento de reflexão e de expansão ou de extensão do que você recebeu como um dado. No caso do movimento de crença, passa-se do seguinte modo: você tem, por exemplo, “o sol se levanta” ou “o sol nasce” – é o movimento que é percebido pela nossa imaginação. O sol – que impressiona a minha imaginação ou as minhas paixões – arrasta junto com ele um outro conjunto que coexiste sempre no seu modo de apresentação; ele traz uma certa conjunção de impressões, de paixões, de ideias, que necessariamente se apresentam todo dia, na mesma hora, junto com o sol. Isso que ele traz junto, sempre, é expresso no que Hume chama de associação.

Associação se manifesta por três vias: pela semelhança, pela causalidade e pela adjacência ou a continuidade: algo é contíguo, algo é semelhante e algo é causa de algo. Essas relações são o que Hume chama de associacionismo; e essas relações se dão no campo dos objetos e no campo da imaginação, nos dois planos. Isso, na realidade, já é ordem de natureza, mas você conquista essa ordem imanente na medida em que você vai inferir isso da experiência. Num momento inicial você recebe isso através do hábito, através de um costume, através de uma repetição. Então o sol nasce ou se repete todo dia: naquele mesmo horário ele nasce e em outro horário ele se põe. Isso é repetição dada na natureza. Então a natureza tem um movimento próprio de repetição, independente da nossa imaginação, independente da nossa subjetividade: a natureza se repete sempre, ela se apresenta em movimentos de repetição.

E junto com esses movimentos de repetição de alguma impressão, ela traz um conjunto de outras. Então existem ideias, afecções, objetos associados a essa repetição de impressão, sempre.

Então eu me habituo, eu me acostumo – através da repetição – a esperar que o sol nasça amanhã; e eu levo a uma expansão tal do meu entendimento ou da minha imaginação que eu generalizo de modo a inferir ou então a sugerir que o sol deve nascer sempre. Então essa inferência ou essa dedução da imaginação – de que o sol deve nascer sempre – no fundo é uma dedução ilegítima a partir de uma crença que ultrapassou a experiência, mas as próprias relações que a natureza sugere. Então ela fez uma ultrapassagem – a crença se tornou ilegítima.

O que ocorre? A crença se funda no próprio hábito; mas o hábito não se constitui na repetição pura e simples da natureza. Não é porque o sol nasce todo dia que eu apreendo necessariamente, ou deduzo ou posso deduzir legitimamente que ele vai nascer sempre ou então que esse hábito ou esse costume tem algum fundamento numa universalidade. O que ocorre? Ocorre sempre que o hábito é um ultra passamento do dado da experiência, mas ele é um ultra passamento inclusive da repetição da experiência; não é a experiência enquanto repetição que funda o hábito. O hábito já é uma síntese de tempo.

Exemplo: você tem, junto com o nascer do sol, uma certa claridade intermediária entre a noite e o dia; você associa essa ideia ao nascer do sol e essa ideia, ou essa impressão, vem junto sempre com o nascer do sol. Se eu tive um dia a impressão daquele acontecimento ou daquele fato, no outro dia ele se repetiu novamente, e no outro dia ele se repetiu novamente, no próximo dia eu vou esperar que ele se repita de novo. O que existe aí? Existe uma contração de uma repetição que faz uma síntese entre o presente e o passado: porque aconteceu uma vez e aconteceu de novo, eu espero que na mesma sequência aconteça novamente. Mas isso que vai gerar o acontecimento futuro é uma contração ou é uma síntese entre o presente e o passado; a impressão é sempre uma ideia viva de um acontecimento atual e de uma sensação da ideia que já ocorreu – eu tenho uma sensação e tenho uma impressão ao mesmo tempo. Essa síntese é que dá a ideia de crença.

A crença é sempre uma expectativa, é sempre uma espera. E Hume diz: isso é fundo de natureza. Não há nada sem esse movimento de crença.

  • Participante: por que você disse “uma crença ilegítima”?

Aí já entra na questão ética. Na medida em que você tem movimento de crença sempre, através de uma síntese de tempo que gera uma reflexão subjetiva, você tende a usar isso como artifício prático, você tende a usar isso como uma invenção de mundo; você vai fazer um movimento de crença em relação à apreensão do modo como o mundo funciona, e ao mesmo tempo você vai criar uma reação em relação ao mundo, você vai inventar, você vai expandir.

  • Participante: e ilegítimo seria o uso disso?

É, o uso disso. Você faz um uso legítimo ou ilegítimo. Então a crença é um movimento que serve como a base de conhecimento de mundo – e evidentemente você a ultrapassa também, quando você entra no entendimento. A crença, na realidade, funda o hábito e funda a imaginação; mas você ultrapassa a crença na medida em que você atinge as relações imanentes ao próprio mundo.

Por exemplo, a crença te gera a ideia de que algo vai se repetir, de que algo que já aconteceu vai tornar a acontecer pelo mesmo afeto; e esse envolvimento do futuro numa síntese entre o passado e o presente envolve também as ideias conectas, as ideias adjacentes, as ideias semelhantes ou as ideias contíguas ao próprio fato acontecido. Então essa reatualização das relações da natureza mesma te mostra também uma afecção de outro nível, uma afecção que não é mais simplesmente uma impressão; é uma afecção de relação. Você tem afecção de relação de semelhança, você tem afecção de relação de causalidade e você tem afecção de relação de contiguidade – junto com essa repetição da própria natureza na imaginação.

Então o movimento de crença faz com que você, ao mesmo tempo, espere que a natureza funcione daquele modo; mas a crença leva a uma imaginação da própria relação na natureza: você imagina a natureza funcionando ou se relacionando daquele modo. Então você tem uma imagem de semelhança, você tem uma imagem de causa e você tem uma imagem de contiguidade; essas imagens são uma crença no modo como a natureza funciona. Há uma base legítima disso, mas você não atinge a ordem imanente à natureza enquanto você não atingiu o entendimento disso. Então esse seria um primeiro movimento.

O segundo movimento é o uso que você faz do que você apreende em relação ao mundo. O uso que você faz é sempre uma invenção, um artifício, uma criação que faria com que você reagisse de modo a ultrapassar o que te é oferecido na natureza; você ultrapassa não só os dados que você recolhe da experiência, mas também os dados que te são dados enquanto natureza humana. Você se torna, na realidade, uma natureza humana, você se ultrapassa enquanto natureza simplesmente e se torna uma natureza humana quando você inventa uma distância, um espaço e uma diferenciação na reação, você cria algo fora do que existe simplesmente, do que é dado simplesmente. Então você ultrapassa a experiência sempre de duas maneiras: na apreensão da natureza e na invenção de uma resposta à natureza. Esses são os dois movimentos básicos de ultra passamento. O sujeito se constitui exatamente nesse movimento – o movimento de recepção e de expansão; ele se forma aí, ele se constitui aí. Então isso é uma coisa elementar em Hume, mas que gera a necessidade de você fazer a gênese do sujeito a partir da própria relação com a natureza, com o mundo.

  • Participante: então o sujeito é atitude?

Necessariamente é uma atitude, mas não necessariamente é uma atitude ativa. É uma disposição, na realidade: a natureza dispõe a imaginação, de alguma forma, a se formar enquanto subjetividade. A subjetividade é o modo como a natureza, no homem, se torna livre; a subjetividade seria a distância que você toma em relação ao mundo. Mas essa distância, inicialmente, é passiva, é um resultado, é uma síntese de tempo.

  • Participante: ela é paixão.

Ela é paixão, inteiramente apaixonada. E ela se funda no hábito. O hábito, na verdade, constitui não só a tua relação originária com o mundo, como a base de todo o conhecimento. Ele é a base que forma o conhecimento, e numa relação íntima com a crença. O hábito é essa repetição, mas é uma repetição que não está mais na natureza, é uma repetição que não está mais na experiência; é uma repetição que se passa já na imaginação. Então a repetição que se passa na imaginação necessariamente é uma sucessão, não é mais uma simultaneidade – a repetição na imaginação envolve o tempo. E na medida em que envolve o tempo – porque há uma sucessão, necessariamente algo vem depois de algo, na imaginação – você produz a sensação de passado e de presente; e essa síntese que envolve ao mesmo tempo o passado e o presente, espera a repetição. E quando espera a repetição, a repetição no espírito, a repetição na imaginação já é o futuro que é contraído. Então você funda o tempo numa relação de subjetividade.

O tempo, na verdade, não é originário – o que é originário são espíritos, são impressões que se sucedem, mas de modo aleatório. A natureza é um grande delírio, não tem absolutamente ordem nenhuma; a ordem se faz a partir de um conjunto de impressões que se repetem. E a repetição se dá ao mesmo tempo no plano espacial – e aí é apenas uma repetição simultânea – e na imaginação, que é uma repetição no tempo. A repetição no tempo já implica uma distância entre o presente, o passado e o futuro – vai haver aí uma síntese de tempo.

Na síntese de tempo, você funda uma tendência. A tendência, ou o interesse, ou a paixão, na realidade se dá exatamente na síntese do tempo. Há uma direção do tempo aí, fundada. Então, se algo se repete fora, de modo simultâneo na experiência – mas que na relação com a minha imaginação se sucede, necessariamente, no tempo -, essa sucessão marca uma distância entre o passado e o presente e espera a repetição novamente no tempo; e a repetição no tempo é a vinda do futuro. É isso que funda a tendência. Então há uma tendência fundada no próprio movimento da natureza que se faz no homem; o homem, ou o sujeito humano, é formado no movimento – ele não é dado inicialmente como uma forma. Ele é uma repetição ao mesmo tempo na matéria e no espírito, na matéria e na imaginação; a repetição na imaginação, então, funda a distância entre o passado e o presente, que espera o futuro. A crença nasce exatamente disto: eu espero que amanhã se repita o que aconteceu hoje.

A tendência é uma organização, é uma estruturação da própria realidade; estrutura o sujeito e o mundo. É tudo feito via interesse ou tendência; o interesse é feito sempre em função disso. Isso é um movimento básico da gênese da subjetividade humana. Na verdade, teríamos que fazer um movimento diferente para dar um Hume mais claro para vocês, porque implicaria em fazer um aprofundamento maior no sistema de Hume; eu estou tentando dar a coisa muito enxuta e fica absolutamente abstrato.

  • Participante: você falou da repetição, no caso do sol. Eu estava pensando na amamentação: a criança que é amamentada e isso se repete. Ela chora e a mãe amamenta, ela chora e a mãe amamenta; e ela provavelmente espera que ela seja amamentada quando ela chora. Existem alguns instantes em que ela chora e não é amamentada, isso é um encontro um pouco diferente, quebra um pouco esse padrão de repetição. Você estava falando aí e eu estava tentando encaixar essa ideia. Porque não é uma repetição; ela gera um hábito, mas é um hábito não padronizado – ora pode vir, ora não. Como o sol: o sol nós sabemos que vai nascer ou, se não nascer, está lá atrás daquelas nuvens.

Isso gera um esforço moral – ele ainda usa este termo – de organização do mundo. Isso gera uma relação com o artifício, isso faz com que você entre no mundo da cultura; você ultrapassaria os dados imediatos da natureza – a repetição física, simplesmente – e você criaria um artifício para que a coisa se repetisse. A invenção da instituição, a invenção da família, do casamento, da propriedade privada, da posse: isso tudo são invenções de cultura feitas para que a repetição seja garantida numa ordem de interesses ou de tendências que façam aquela subjetividade se expandir.

  • Participante: a formação dos mitos entra aí. Todas as formações de mitos são estórias recontadas, mesmo que com variantes, mas o mesmo fundo da estória que é contada e vai acumulando essa mesma imagem.

No caso dos mitos ou das religiões, o que se passa é o seguinte: você tem a confusão da impressão, ou do acidente na impressão, com a própria ideia geral; você generaliza o acidente. Que é esse movimento inicial de reflexão: você tem uma impressão, uma impressão de sensação, que é imediata; daí você tem a reflexão da impressão, ou seja, você tira uma imagem do acidente. E essa imagem do acidente é genérica, é uma forma genérica. Você ultrapassa a experiência na reflexão, já.

E você projeta novamente na natureza essa ideia geral como sendo uma essência; você leva essa imagem geral novamente para aquele movimento acidental e cola a imagem geral no movimento acidental e faz disso uma essência. O mito nasce daí.

  • Participante: Platão não trabalhou em cima do nada. Ele trabalhou em cima de alguma coisa que é quase um movimento natural.

Movimento de repetição. Só que o que o Platão fala aí é que a repetição é circular, é sempre o movimento de uma circularidade eterna, vai do Mesmo ao Mesmo numa circularidade perfeita. No caso das religiões em geral você tem esse mesmo movimento de repetição, mas a sensação ou a ilusão é sempre a mesma: é a confusão entre o acidente e a ideia geral. A ideia geral, que vem da imaginação, é sempre uma ideia abstrata; ela já é um ultra passamento ilegítimo na medida em que ela é reprojetada no real. Você faz um uso ilegítimo do dado da experiência que se ultrapassou; ele se ultrapassa porque ele se destaca daquele acidente, ele te dá uma ideia de função ou de generalidade, e você reprojeta essa ideia naquela mesma situação singular, naquela mesma situação particular. Então você generaliza uma situação através de uma reflexão de imagem, no momento mesmo em que você reprojeta ou estende essa imagem.

Agora, os movimentos mais fortes de uso ilegítimo da crença – que envolvem a religião, que envolvem a política, que envolvem as instituições em geral – se dão na fantasia e na linguagem. A fantasia que se repete ou a linguagem falada ou escrita que vai repetir uma certa conjunção diversas vezes, faz com que você apreenda isso no mesmo movimento de espera que, na natureza, é legítimo; mas de uma espera que neste caso se torna ilegítima, na medida em que aquela conjunção repetida é uma conjunção imaginária. Assim, você pode repetir várias vezes uma mentira e essa coisa se torna verdade. A tática do Maluf, por exemplo: ele está sempre voltando à televisão e repetindo que ele é inocente e tal; muitas vezes funciona, dá certo. Você repetir várias vezes uma mesma imagem, uma mesma ficção, a impressão que você tem é que aquilo – uma vez que se deu num passado, uma vez que se dá em um presente – você espera que se dê novamente em um futuro. É a mesma lógica. Só que aí já é uma crença ilegítima, já é um uso ilegítimo da relação de crença.

A crença tem uma base legítima; a base legítima é uma condição mínima para que você a ultrapasse e que leve a entender as relações da própria natureza. Então você vai entender as relações de associação, de semelhança, causa, que geram um entendimento legítimo da própria natureza.

Esse entendimento, você pode fazer do mesmo modo em relação ao sujeito que inventa e cria; então aí você vai ter uma cultura legítima, uma invenção legítima, uma arte legítima, uma política legítima, uma economia legítima, uma moral legítima, em função do entendimento da expansão das próprias paixões – que foi o que nós falamos na aula passada. A questão das instituições, que seriam meios ou ambientes da ação ou das paixões para que as paixões se expandam e ultrapassem as suas parcialidades, porque as paixões são sempre parciais. No encontro de um certo ambiente que você inventa, que seria o ambiente institucional, você gera uma mediação da ação para que ela se expanda e assuma uma síntese ou uma unidade ou uma regra geral que a leve além dela mesma, além da sua própria parcialidade.

Essa seria já uma forma legítima ou um uso legítimo da regra geral ligado a moral, ligado à ética, ligado à política; ligado, em uma palavra, à cultura. A cultura seria o campo da invenção e a natureza é o campo do conhecimento que tem a base no hábito. O conhecimento não é feito, inicialmente, por um sujeito que se dirige até a própria natureza; ele se gera na repetição, fundando um movimento de reflexão, fundando uma subjetividade. E a subjetividade é uma pluralidade espiritual: num sujeito tem uma pluralidade de espíritos. Uma impressão – que é antes sensação e depois ela se reflete – já traz um espírito nela mesma, ela já traz a ideia nela mesma; então a ideia não é atributo de um sujeito que conhece o mundo, a ideia não é representativa.

  • Participante: a ideia é eterna?

Não, a ideia não é eterna. O que é eterno é o que diferencia a realidade, ou essa impressão última de realidade, essa distinção última, isso é eterno; mas é uma eternidade finita, digamos assim, ela tem um limite singular nela mesma, uma quantidade mínima, ela tem um mínimo de realidade. E esse mínimo de realidade é infinito no conjunto, mas a diferença mínima é limitada; ela é uma diferença, é um diferencial, é algo que se destaca como uma realidade única. É a diferença nela mesma.

  • Participante: enquanto ela se repetir…?

Ela gera universalidade.

  • Participante: generalidade?

A generalidade, a universalidade, a semelhança é sempre um efeito de repetição. Então você tem a repetição na natureza, que é uma repetição “mecânica” – na realidade ela é simultânea – e você tem a repetição na subjetividade. A repetição na imaginação ou na subjetividade já é uma síntese de tempo, já gera uma síntese de tempo. Uma sensação ou um sentimento necessariamente se dá porque existe uma distância de tempo entre uma repetição e outra. E ao mesmo tempo uma contração, um envolvimento numa duração – aquilo dura; entre uma repetição e outra há uma duração. Isso que é a vida, a vida é exatamente essa contração sintética entre uma repetição e outra no espírito, na imaginação, na subjetividade.

  • Participante: isso é Bergson?

É Bergson também. Bergson bebeu em Hume. Então a memória, nesse caso, é até função do hábito, e o hábito é gerado na repetição do tempo, é repetição que se passa no espírito. Isso que é o hábito. E aí Bergson – que é absolutamente humeniano, nesse caso – diz: não é natural contrairmos hábitos, mas é natural o hábito de contrair hábitos. Ou seja, o hábito em si mesmo já é artifício, ele já é artificial; mas o hábito de você formar hábitos é que é fundo de natureza; a natureza está justamente fundada nisso que Hume chama de hábito básico que é uma repetição imanente a ela própria.

  • Participante: e isso todos os animais, não é?

Todo animal funciona assim. Necessariamente. É uma repetição de tempo – e é isso que organiza tudo. A organização se dá assim.

  • Participante: e a primeira repetição? A repetição primordial. O primeiro imprint. Isso seria só uma impressão.

Você tem uma impressão, mas a impressão nunca está sozinha, ela sempre envolve outras impressões. De que modo ela envolve? Ela está associada a um outro conjunto, ela se associa a um conjunto. E essa associação, você a percebe por semelhança, contiguidade e causalidade. Então uma impressão inicial envolve ou se associa com um conjunto de outras impressões. Aquilo acontece. Então eu tenho a sensação da impressão e a reflexão da impressão. A reflexão se dá na imaginação – é a própria imaginação. O que é a imaginação? É uma impressão refletida. Então, na medida em que eu tenho uma impressão, essa impressão envolve ou se associa a um conjunto de impressões que me impressiona – ou seja, eu tenho a sensação de impressão e a reflexão disso. A reflexão já é a minha imaginação. É isso que se dá inicialmente.

Então a imaginação não é o hábito, a imaginação não é a repetição no tempo. A repetição no tempo é quando algo se dá lá fora novamente, aquela mesma impressão se repete ou me impressiona de novo: um segundo movimento. Nesse segundo movimento eu vou criar uma síntese de tempo em mim. Quer dizer, não é que eu, o sujeito, cria; aquilo se forma em mim – por isso que é uma síntese passiva, o sujeito é passivo; ele se forma, ele é fundado. Apesar do que eu fizer – porque não tem o eu ainda, ainda não tem o sujeito. O sujeito se forma, ele se funda assim. Então há uma distância na repetição que envolve o tempo. É essa sequência, é essa sucessão da repetição na imaginação, que funda o hábito. Então a imaginação se distingue do hábito exatamente aí.

A crença não é a mesma coisa que a experiência: você tem a experiência primária e você tem a repetição da experiência na própria experiência – que ainda é uma repetição exterior – e a repetição da experiência no sujeito, que já é um hábito, que já é uma síntese de tempo, que já funda o sujeito enquanto sujeito passivo. Já é a fundação de uma tendência, a fundação de um interesse – você funda o interesse assim. O interesse é exatamente a distância entre uma impressão e a sua repetição; é aí que se funda o interesse, é aí que se funda uma tendência e é aí que existe a paixão do sujeito – ela é exatamente esse movimento. Então o espírito envolvido em uma impressão de sensação se torna um espírito complexo, não mais simples, quando ele se reflete no sujeito e se relaciona a uma nova impressão semelhante a aquela impressão inicial.

  • Participante: então forma um jogo de espelhos.

Forma uma complexidade de sujeito. Então você já tem uma tendência da própria imaginação. Você tem uma que é fundada no mundo, você tem uma impressão inicial de sensação, aí você tem a sensação ou a impressão que se reflete, e na impressão que se reflete e encontra a sua repetição no mundo – que é a sua semelhança, a mesma causa e o que lhe é contíguo, o que lhe é adjacente – gera uma ideia de articulação, de síntese, de efetuação do que a própria tendência esperava.

Então aquilo se cumpre novamente, se preenche – aquela tendência se preencheu. No momento em que ela se preenche, ela gera outra tendência a partir de si mesma, ou seja, você fundou um solo subjetivo; você cria um outro campo de interesses que não é mais aquele campo emergencial, inicial, de uma sensação primeira e de uma reflexão primeira.

Então, no fundo, o espírito se torna complexo; você tem um espírito simples numa impressão primeira, depois você tem o espírito complexo, já num distanciamento da natureza em relação a ela própria. É isso que funda a natureza humana: a natureza humana é exatamente essa duplicação do espírito. Então você tem o espírito no sujeito.

  • Participante: isso que é o famoso duplo?

É um duplo, sem dúvida.

  • Participante: é o trauma que forma o ego. São os primeiros traumas que vão formar o ego.
  • Participante: mas classificado como trauma?

Não, aqui não; aqui você tem uma positividade pura, ainda que seja passiva. Porque aqui o espírito é plural, ele não está reduzido a uma unidade. Ele se manifesta ainda segundo a sua própria singularidade, ele é a manifestação própria. Uma tendência é independente. O que ela quer? Ela quer se efetuar, ela quer que o futuro se realize. Ela contrai o futuro, ela espera o futuro, ou o futuro a espera. Há uma relação de atração do futuro.

  • Participante: a tendência é um efeito?

Ela é um efeito e ao mesmo tempo ela é causa. A tendência é fundada; então a esse nível ela é um efeito. Ela é fundada na repetição de uma impressão na imaginação. Mas ela se torna causa quando ela interfere no futuro que ela espera. Ela espera algo. Então existe uma causa originária, que é a natureza nela mesma; e o sujeito já é uma causa secundária, digamos assim; ou é uma quase-causa, como os estoicos diriam: é quando a tendência, na subjetividade, assume o comando ou efetua uma invenção, cria uma realidade no mundo, ultrapassa a experiência a partir de uma invenção. Então isso seria já um critério ético, um uso legítimo dessa invenção de tendência ou de interesse.

  • Participante: essa é a primeira marca por onde a potência vai ser canalizada. São as primeiras marcas: entre todas as possibilidades de um virtual, esses são os primeiros condicionamentos de energia.

E não tem bom senso aqui, e nem senso comum. É por isso que ainda não é traumático, você não tem um uso ilegítimo disso, você não tem uma submissão ilegítima em função de uma regra genérica que submeta essas tendências. Essas tendências ainda são nômades, ainda são livres – ainda que elas sejam formadas passivamente.

  • Participante: ainda que elas sejam condicionantes.

Sejam condicionadas. Porque elas são fundadas, elas são geradas, elas são produzidas na relação, na impressão; então tudo advém do meio, da impressão – e não de uma substância originária, não de um Deus originário, de um mundo originário ou de um sujeito originário. Não tem sujeito que se reflete no mundo ou que percebe o mundo; a coisa funda o sujeito e o próprio mundo, funda o sujeito e o objeto. Então é a impressão de sensação, é a reflexão da impressão e a repetição daquela impressão de sensação numa impressão de reflexão; aí você tem já a síntese do tempo, você tem já a distância. Na medida em que você tem a síntese do tempo, você tem o movimento de espera, o movimento de crença, o movimento de expectativa, a tendência, o interesse. Então, isso tudo é fundado. Você pode chamar de instinto também, mas você vê que é um instinto que não é um instinto orgânico; é um instinto puro da própria natureza.

  • Participante: pulsão, não é?
  • Participante: como é que chama? O que dá a diferença?

Um elemento mínimo diferencial.

  • Participante: está presente na tendência esse mínimo diferencial?

Está. Aliás, ele que é a singularidade: é o que age em nós, é o que pensa em nós, é o que experimenta em nós. É sempre esse mínimo. Então isso são as diferenças puras nelas mesmas, não são as diferenças representadas, não são as diferenças sob uma falsa unidade ou uma unidade genérica. A diferença traz a sua própria identidade, a sua própria unidade, digamos assim; ela se diferencia nela mesma, ela se coloca nela mesma. Então esse elemento, na realidade, não estaria submisso à nossa subjetividade, ainda que um uso ilegítimo faça com que isso se submeta. A questão ética em Hume é o uso legítimo ou ilegítimo dessas sínteses de natureza; tudo é síntese, não é analítico igual Kant. Kant vem lá de uma forma e um desenvolvimento de forma que reduz a natureza a uma análise, a um comando analítico; em Hume tudo é efeito de encontros, tudo é sintético, é uma produção sintética; é no encontro que a coisa acontece.

  • Participante: e o que têm a ver as três leis do associacionismo com o Kant?

Vamos ver em Kant, depois. Kant vai dizer, na realidade, que a única forma de ultrapassar a experiência é atingir a pura forma de lei. Na realidade, é o que Hume chama de uso ilegítimo da regra geral. Kant vai dizer que não, que isso é que funda a natureza humana, é essa pura forma de lei.

Kant vai soldar a lei, a forma pura, ao desejo; e Hume faz o contrário: a forma é sempre um efeito, é sempre uma síntese, é sempre um resultado de um encontro. Então, mesmo na crença, se você faz um uso legítimo da crença, é que a crença seria uma ocasião para te levar ou te conduzir até as relações reais da própria natureza. As relações não são interiores a uma ideia, como em Kant, não são intrínsecas à ideia ou à impressão; as relações são exteriores, eles são o puro fora da natureza. A natureza encontra o seu fora na própria relação; e a relação é ontológica, ela tem realidade própria em Hume – nos objetos e nas ideias, nas duas coisas. Então as relações são fundantes; elas não são uma interpretação da ideia, elas não são uma regulação interna da ideia; ao contrário, elas é que regulam as relações entre ideias e objetos, são as próprias relações.

Então, o que é a crença legítima? É a que te leva a encontrar a relação na própria relação, a exterioridade pura da relação, o fora puro da natureza; é uma relação não objetiva e não subjetiva, ou é uma objetividade pura, digamos assim: não um objeto já que estaria submisso a um sujeito, mas é uma objetividade liberta do sujeito e do objeto. A relação é uma objetividade pura. Em Kant não, em Hegel não, na metafísica ocidental inteira não; ela é sempre interna, espiritual, submissa à unidade, à interioridade da ideia.

  • Participante: categórica.

Ela é categórica. E, nesse sentido, ela submete a diferença. No caso de Hume não, a diferença pura é afirmada na própria relação porque a relação é exterior, ela não é uma capa, ela não é uma camisa de força para a diferença; ela é o meio onde a diferença se efetua. Mas esse meio é uma exterioridade pura, ele é o plano de imanência, na realidade.

  • Participante: mas que é motivado também por elementos condicionantes. De um condicionamento orgânico, ou de uma objetividade pura, como você chama. É provocado também por condicionamentos. Não condicionamentos por uma imagem, mas um condicionamento por um ir e vir da relação com a natureza. Existem certos sulcos que vão sendo trilhados, vão sendo marcados, mas pela experiência direta.

Sim, mas estes sulcos se dão sempre na causalidade, na semelhança e na contiguidade, sempre aí. Isso é o modo como Hume interpreta as relações puras. Espinosa dá outros nomes, interpreta diferente, mas no fundo eles estão falando do mesmo plano de natureza, dessa ordem imanente, primária, que não precisa de uma instância exterior a ela para dizer como ela funciona. Ela se põe por si, ela funciona por si, ela se interpreta por si, ela se auto comanda, ela se autogere. Então é esse plano que ele atinge na medida em que ele diz que a natureza funciona num associacionismo – mas é um associacionismo com esses três aspectos ou essas três formas de expressão, três formas de relação ou tipos de relação, essa tipologia relacional.

É isso que Chauí falaria em relação a Espinosa: a nervura do real em Hume. São essas três relações. É isso que faz com que as diferenças se relacionem e que você atinja a diferença nela mesma. Então o sulco que você fala já é uma dobra. Então quando ela se organiza, se estrutura, gera estratos, ela funciona do mesmo jeito, mas já com esses sulcos que são ou determinados de fora, ou determinados por um sujeito – o sujeito cria outros canais, outros sulcos, para expandir as suas paixões, mas sempre em relações de semelhança, contiguidade e causalidade. É sempre através disso.

Só que você entra em outras dimensões, mas o modo relacional é o mesmo.

  • Participante: eu estou pensando na descaracterização dessa força de encontro para que se dê a potência. Todo a nossa trajetória é: você está no plano e está inventando. Como é que Hume trabalha isso, essas saídas? O próprio Hume deve ter saídas.

Ele chama de ilegítimo. A questão ética é essa. Ele diz: existem regras. O que é uma regra em Hume? A reflexão já é uma regra.

  • Participante: mas ela não é uma regra que está no jogo e já é o jogo-encontro. É legítima.

Ela é legítima nesse nível do jogo, mas se ela quiser ultrapassar esse nível e impor essa relação, que é uma mera repetição de um acidente, a uma outra relação, ela já está num uso ilegítimo.

Ela tem que encontrar algo que realmente expresse uma relação mais ampla, um nível mais amplo.

Se ela forçar a barra com o seu uso individual, particular, egóico, reduzido a aquela experiência individual, ela já está no uso ilegítimo, ela já está gerando violência. É aí que se dá a questão ética, mesmo. Ela se dá nos dois planos: ela se dá no plano da cultura, das invenções, e se dá no plano da natureza em relação ao que você conhece. Porque a natureza te gera uma matéria básica a partir do hábito; o hábito é o solo mínimo a partir do qual você começa a entender as relações de associação entre as coisas. Mas a crença não te permite afirmar necessariamente se você não tem a penetração suficiente no plano das causas, das semelhanças e dos elementos contíguos; ela não te permite você generalizar e afirmar que amanhã o sol vai nascer de novo. Isso já seria um uso ilegítimo. Você não pode dizer “aquilo necessariamente vai acontecer”.

No plano moral ou então cultural, você impõe um dever, você diz “essa relação, esse modo de relação, tem que se repetir”. Aquele futuro já está codificado, já está recortado; você faz do futuro um campo de possibilidades e esse campo de possibilidades é uma probabilidade em relação ao Bem e em relação ao Mal: você vai eliminar o campo do Mal e selecionar o campo do Bem, mas já a partir de formas refletidas, regras gerais refletidas e projetadas nesse campo. Então você repete essa forma no gesto, você repete essa forma na escrita, você repete essa forma na oralidade, nas leis, nos discursos, nas instituições de modo tal, que você acaba acreditando que essa forma é da natureza, que ela é fundo de natureza.

Então a crença é absolutamente ambígua: ela te liberta e te aprisiona, dependendo do uso que você faça dela. E isso é a diferença que ele faz entre uso legítimo e ilegítimo – porque tem leis de natureza que te levam em direção à liberdade e leis de natureza que te levam em direção à escravidão. As leis de natureza que te levam em direção à escravidão são um reducionismo de uma reflexão, é um reducionismo de uma impressão que se reflete numa subjetividade. Sempre é um reducionismo. Aí te leva para uma escravidão: você reduz a natureza a aquela ideia geral que surgiu ali numa reflexão acidental e que na realidade é a mais estreita possível. Você pode até dar ideia que ela é genérica, é universal -por exemplo, a propriedade privada serve hoje para todo mundo; então seria uma ideia universal, um valor universal inalienável ao modo de vida humana, à cultura humana. Isso é um uso ilegítimo dessa síntese.

  • Participante: a linguagem também seria? Por exemplo, uma pessoa que fala uma determinada língua e se expressa de uma determinada forma – por exemplo, em alemão. Numa outra língua as pessoas se expressam de uma outra maneira. Eu estou encontrando esse tipo de problema na escola em que eu trabalho onde tem um pessoal que é alemão e eles pensam de um jeito. Você vê nitidamente que existem diferenças na forma de se comportar.

Perfeito. Hábitos de um povo, hábitos de uma linguagem, maneiras de sentir e de perceber através da língua. Hume dá um exemplo assim: o irlandês não é espirituoso, o francês não é sólido.

Isso o que um inglês ou que um escocês diria na época dele, naquela sociedade. Então isso é um uso ilegítimo de uma regra geral: já é a regra geral virando transcendente – você leva além, você afirma mais do que você sabe, você afirma mais do que você conhece. Uso ilegítimo é esse.

  • Participante: estereótipos.

Você gera. Porque você acredita que é melhor que seja assim.

  • Participante: fala de novo daquelas três leis, três regras. Não entendi direito.

A causalidade…

  • Participante: sim. O que essas coisas têm a ver com todo esse percurso que você fez nessa explicação? Não entendi. Não estou conseguindo fazer a conexão entre esses três elementos e toda essa história.

Você tem, na imaginação e no uso ilegítimo, esse mesmo modo de funcionar. A natureza funciona realmente assim, no associacionismo; ela se associa sempre por esses três aspectos – relação de causa e efeito, relação de adjacência ou de contiguidade e relação de semelhança. O que seria a semelhança na imaginação e na impressão? Vamos supor: o sol nasce – eu tenho lá um acontecimento, o sol nasceu hoje, eu vi o sol nascer hoje. Amanhã o sol nasce de novo, do mesmo jeito; eu digo que esse acontecimento é semelhante ao de ontem. E existem causas que fazem com que esse efeito do nascimento do sol seja produzido, existem causas que produzem esses efeitos, que fazem com que esse acontecimento se repita. E existe a adjacência ou a contiguidade: a ideia de dia, por exemplo, é envolvida no nascimento do sol – com o sol vem o dia. É um exemplo de uma ideia contígua ou adjacente, um afeto adjacente, uma afecção, uma impressão adjacente.

  • Participante: eu poderia dizer, por exemplo, que um bezerro que nasce é como o sol que nasce. Isso também é uma ideia contígua?

Sem dúvida. Há uma repetição aí.

  • Participante: porque na realidade o sol não está nascendo.

Ah não, isso é imaginação mesmo.

  • Participante: mas isso é contíguo também.
  • Participante: é da linguagem.

É da linguagem e da imaginação.

  • Participante: é uma associação. Há uma ideia de contiguidade, também.

É por isso que ele diz: isso se dá em todos os planos. No plano da impressão de sensação, no plano do espírito, na impressão reflexiva, na subjetividade, na crença. Ele se dá em todos os planos, é o mesmo modo de relação. Só que, na imaginação… por exemplo, você observa um vizinho chegar sempre às 6 da tarde na sua casa; mas antes dele chegar ele dá um toque em alguma campainha ou ele passa na padaria. No outro dia você espera a mesma coisa. A associação na imaginação é uma associação de imagens. O que é contíguo, o que é adjacente, é uma imagem na sequência da outra; e o que é semelhante é aquele movimento se repetindo; e a causa daquilo é sempre a mesma, ele vai à padaria porque ele precisa comprar pão, ele chega em casa porque ele precisa da mulher, etc. Aí você tem sempre as mesmas relações que se repetem na imaginação. E você tem a causa real que se passa na natureza. Causa, semelhança, contiguidade – é sempre o mesmo modo de relação. Mas dependendo da instância em que aquilo acontece, você pode fazer um uso legítimo ou ilegítimo disso. A questão é sempre essa.

O que leva à transcendência é o uso ilegítimo; a regra é sempre uma regra geral na medida em que ela quer expandir – ela não quer reduzir a relação, ela quer expandir as paixões. Essa é a função ética da regra. Mas a regra é sempre singular, é sempre em movimento, é sempre ocasional.

  • Participante: e de qualquer forma esses três modos de operar a imaginação tanto podem levar à legitimidade ou à ilegitimidade do mesmo evento.

Sem dúvida. O que é ilegítimo? Ilegítimo é você deduzir que a causa, por exemplo, de ele ter ido à padaria comprar pão, é para ele se alimentar, se ele está levando o pão para a filha dele e ele não come pão, por exemplo. Mas você deduz, imaginariamente, que é porque ele quer se alimentar.

Então isso é você já afirmar mais do que você sabe, é o uso ilegítimo. Então o uso ilegítimo é você ultrapassar a natureza simplesmente por um movimento de crença, de desejo, de interesse, que não dá conta das relações reais.

  • Participante: que tende à previsão e controle, não é?

Exatamente. E essa previsão e controle são sempre em função de uma fraqueza, de uma impotência, de uma limitação, de uma redução. Então aí que se gera a transcendência, aí que se gera o uso ilegítimo.

  • Participante: o complicado disso é que isso também se volta à previsão, controle e interpretação. A partir desses mecanismos você vai congelando porque você prevê, você tem condição de controlar e, logo, você tem condição de interpretar o movimento das pessoas, o movimento das instituições.

E daí a ideia de poder e de repetição das regras. Na verdade, o poder se dá onde, inicialmente? Onde nasce o poder? Ele nasce da distância temporal. Você tem algo, aí você tem a repetição desse algo e você tem a expectativa desse algo. Mas no momento em que você tem a expectativa, não necessariamente isso é algo que se atualizou. O poder é você habitar uma região que envolve o presente e o passado, que espera o futuro, mas que é capaz de fazer com que o futuro daquele modo que você espera. Isso seria o poder. Então, na medida em que você está no uso ilegítimo das sínteses, no uso ilegítimo das regras, você começa a inventar um meio, a instituição vira um meio de repetir as regras a ponto de que os outros acreditem nessas regras e que adiram a essas regras, que invistam nessas regras. Então a questão é sempre essa: você repetir algo não apenas que é artificial, mas que falsifica a natureza. Porque o artifício é da natureza também, a natureza cria artifícios, o artificial é natural também.

Mas uma coisa é o artificial que inventa, que põe realidade, que é um sujeito livre já que faz isso. E outra coisa é o artificial falseado, falsificado: é quando você repete segundo uma ligação, uma associação imaginária. A associação imaginária envolve uma causa imaginária, uma adjacência imaginária e uma semelhança imaginária. Você força uma relação de associação através de uma repetição e, na repetição, você gera no sujeito à espera de que aquilo venha de novo; você fica na expectativa, você começa a desejar aquela ficção, você investe na regra como sendo algo que vai te liberar, que vai te expandir nas suas paixões, e na verdade aquilo está submetendo as tuas paixões a um limite individual, propriedade privada, etc. Quer dizer, você está encerrado numa regra abstrata. Então a questão em Hume absolutamente ética é do uso das sínteses – uso legítimo ou ilegítimo.

  • Participante: então dá para entender perfeitamente como a topologia contemporânea tenta derrubar o muro que se construiu entre natureza e cultura. Porque se tentou acreditar que quando a cultura se forma, forma-se uma natureza peculiar à cultura que não tem absolutamente nada a ver com a natureza natural, porque essa tem que ser dominada. Descartes já disse. E aí se tenta dizer: “olha, calma com isso porque o homem é bicho também – é um bicho que pensa, mas é bicho – e vamos tentar superar essa fronteira entre natureza e cultura porque tudo que é cultural é também natural”.

Hume rompe absolutamente com essa ficção e diz que é um uso ilegítimo da ideia de sujeito.

Antes de você dizer que existe um sujeito que percebe as coisas… porque é isso que gera a divisão e a ficção entre homem e natureza, entre a civilização e o que é natural: é a ideia de que o homem está numa instância separada e essa instância separada é uma forma ideal pura, é uma subjetividade pura. Hume diz: precisamos antes fundar o sujeito, você não tem que dar o sujeito para interpretar a natureza; ao contrário, você tem que entrar na natureza por ela mesma e fazer nascer o sujeito nesse movimento. É dizer assim: existe sujeito, existe a consciência, existe a organização, mas o que vem antes de tudo? E ele diz: não é a substância, não é o sujeito, não é Deus, não é o mundo; é aquilo que se diferencia enquanto diferença pura, é a diferença mínima, é o mínimo de diferença que se põe por si só. É um clinâmen, sem dúvida que é um clinâmen. Ele se põe sozinho e aquilo se apodera de você de alguma maneira. Então essa distinção que você faz já é a coisa divergindo nela mesma, não é um sujeito que distingue; o sujeito que distingue já é uma dobra de uma dobra, já é uma reflexão de uma reflexão, já é um interesse redobrado do interesse inato que vem de uma impressão de sensação que, em seguida, reflete.

Então ele diz assim: vamos pensar a natureza a partir dela mesma. Não é uma origem anterior a ela, que seria divina ou que seria sobrenatural ou subnatural; é a natureza na natureza. Ou seja, ele atinge o meio da natureza. Então a natureza não tem princípio, não tem fim, não tem origem – a natureza se produz, ela funciona, ela se movimenta. Então atingir os elementos mínimos da natureza, atingir o que funda a extensão na natureza, antes do espaço e do tempo, ou no próprio espaço e no tempo, é atingir o espaço e o tempo dos próprios elementos puros. Elementos puros e relações exteriores a eles mesmos. Aí sim você atinge o plano diretamente de imanência da natureza.

E é isso que faz com que você interprete de modo legítimo o jeito, a maneira como o sujeito emerge e a relação que ele vai estabelecer com a natureza doravante; ou seja, ele, enquanto sujeito, vai ter uma relação de cultura em relação à natureza. A cultura é um movimento de invenção; então ele é um inventor, ele é um produtor de artifícios a partir do ponto de vista que ele se torna um sujeito.

O sujeito é isso.

Então o sujeito não é um animal racional, não é um animal moral, não é um animal que tem uma natureza divina. O sujeito não tem nada a ver com essas formas substanciais – nem a substância do mundo, nem a substância do eu, nem a substância de Deus. É uma pluralidade de diferenças enquanto diferenças que, nas suas relações, geram dobras, reflexões, interesses, tendências ou paixões. Modificações: a natureza se auto modifica e cria espaçamentos, distâncias nela mesma; ela se diferencia, o movimento dela é diferenciação. Essas distâncias são diferenciações em relação a ela mesma; a natureza toma distância dela mesma quando ela cria o sujeito. Ela funda o sujeito assim.

Porque o movimento é de pluralização sempre; é de invenção de distâncias, invenção de tempos novos: quando você inventa o sujeito, você inventa um tempo novo na natureza, um espaço novo, um objeto novo, uma forma nova de se ver e de se relacionar.

Cada sujeito é absolutamente singular, ele tem mundo próprio; mas o uso ilegítimo disso faz com que eles tenham um mundo comum, um mundo genérico, e tenham a ideia de senso comum. A ideia de senso comum é um uso ilegítimo, absolutamente ilegítimo. Nós somos absolutamente singulares, absolutamente inéditos, na medida em que nos conectamos diretamente com esses elementos mínimos. São elementos mínimos, mas não são numericamente mínimos – não é que você atinge uma divisão espacial tipo grão de areia que se divide numa milionésima parte e você vai atingir a milionésima parte. A diferença que forma o grão de areia já é uma consistência como uma autopoiese; ela se autocoloca, ela não pode ser negada, ela já é uma realidade imanente à própria natureza.

Então é essa diferença pura que é atingida.

E no sujeito a diferença pura é atingida no tempo. Ou seja, a repetição na matéria das impressões, das sensações, você observa como sendo a mesma no plano espacial, mas no sujeito ela é diferença. É por isso que Heráclito dizia: você não entra duas vezes no mesmo rio, porque não são as mesmas águas, não é o mesmo sujeito, não é o mesmo tempo, não é o mesmo espaço. Ou seja, a repetição que se dá no tempo gera ou introduz uma diferença, mesmo que seja mínima, mas é irredutível a qualquer identidade; então a semelhança nunca vai ser identidade em Hume, nunca vai ter identidade. A semelhança, no máximo, é a repetição de um acontecimento que sempre traz a diferença em si mesma. Ou seja, a diferença não se submete à repetição do Mesmo – nunca. A semelhança sempre traz um diferencial mínimo. No fundo, você tem a diferença. E a diferença, fundamentalmente, se dá no tempo, no espírito – espírito enquanto tempo, espírito enquanto estruturador ou como a estrutura do tempo. Espírito e tempo são a mesma coisa.

E aí em cada diferença mínima que gera consistência, da natureza, você tem um espírito ou um tempo imanente a aquela diferença. O espírito é o próprio tempo da diferença. Então a natureza inteira é cheia de uma pluralidade de tempos próprios singulares, irredutíveis, implacáveis. E esses tempos estão sempre se diferenciando, estão sempre gerando distância em relação à vida; e na hora em que ele reflete, ele se duplica, ele se repete, ele gera uma diferença nele mesmo. Ou seja, você se torna diferente de você mesmo na medida em que algo se repete. Agora, você não é capaz de introduzir a diferença quando você se submete a uma regra ilegítima. A questão sempre é essa.

  • Participante: e a questão do senso comum e a cultura?

O senso comum é ilegítimo porque ele dá a ideia de que há um solo comum, de que é o mesmo sujeito que faz, que pensa, que age, que reage e que entra em ressonância social; haveria uma comunidade de forma e segundo essa comunidade de forma você expandiria as suas ações, as suas paixões, os seus interesses. Isso, na realidade, é uma visão negativa porque uma sociedade que precisa disso – e geralmente as sociedades precisam disso – interpreta as diferenças, ou as paixões, ou os interesses, como elementos faltosos, elementos negativos, elementos que trazem o Mal neles mesmos por serem parciais. Você pega em Hobbes, você pega em Rousseau, eles dizem sempre a mesma coisa: nós, na origem, vivemos em estado de natureza, e estado de natureza do homem é o indivíduo em guerra constante, em guerra permanente, é a guerra de todos contra todos. Porque as paixões são egóicas, são parciais, são interesseiras e elas necessariamente entram em conflito com as outras paixões, elas destroem as outras paixões, elas querem eliminar o outro que, necessariamente, nesse nível, é inimigo. Então eles dizem que é preciso encontrarmos uma forma para o mundo, um senso comum, uma forma de vivermos em paz, na medida em que precisamos viver em sociedade, precisamos um do outro; mas ao mesmo tempo precisamos limitar a ação do outro porque a ação do outro é sempre parcial e traz um mínimo de criminalidade, de injustiça, de Mal. Então você tem que reprimir o Mal, você tem que reprimir a paixão porque ela é sempre excessiva.

Aí uma regra geral que, na verdade, é um uso absolutamente ilegítimo. Hume diz: nenhuma força, nenhuma diferença, nenhum instinto é mau nele mesmo; todo instinto quer se expandir, quer se ligar. E como ele se expande e se liga, no caso do homem? É se articulando em sociedade.

  • Participante: se associando.

Se associando. Então, ao se associar, ele se expande; mas o homem, na medida em que limita a sua regra a uma reflexão de imaginação, faz um uso ilegítimo da regra; ele quer impor ou fazer com que se respeite aquela regra imaginária dele em relação ao outro. E como você vai ter uma pluralidade de regras imaginárias que reduzem as ações uns dos outros, que limitam as paixões uns dos outros, você vai ter que inventar uma forma comum. Então todo mundo segue nos seus acidentes, nas suas diferenças, nas suas falsas generalidades – porque essa generalização que você faz na reflexão da impressão é uma generalização super reduzida, super limitada; então você reduz, reduz aqui, reduz lá, nivela todo mundo por baixo, elimina as arestas e cria uma forma comum. E aí você se articula em sociedade já com as paixões necessariamente submetidas ou neutralizadas. Você submete a paixão a uma lei ou a um uso ilegítimo da regra que é ver a lei nela mesma, e não a lei como função reguladora de uma ocasião, de uma oportunidade, de um espaço e de um tempo que são sempre singulares. A lei ou a regra tem que ser uma invenção contínua, uma invenção permanente.

É necessário então, em relação a isso, você ter a instituição como base e não a lei como base, e não o contrato como base. Mas a instituição. Por que? Porque a instituição é exatamente o meio que lapida as ações ou as paixões, ou os interesses, ou os instintos, de modo tal que eles não entram em oposição, em guerra, em contradição, mas simplesmente entram em composição. A instituição vira um plano de composição e de organização dos instintos, dos indivíduos, que geram uma regra por efeito e não uma regra que é origem e causa final das ações humanas. Então a regra é um mero efeito, ela é um meio regulador das atividades primeiras ou das tendências primeiras que são essas tendências fundadas no tempo próprio das repetições, das experimentações, dos encontros que cada um faz com a natureza e com a sociedade. Na repetição, no encontro, nas relações, você tem sempre a ocasião de se diferenciar. Mas a lei e a regra impedem essa diferença, ela regula essa diferença, ela submete essa diferença a um uso ilegítimo que é o uso utilitário, é a demanda útil a uma sociedade comum. E a demanda útil da sociedade comum é sempre um elemento limitador: você deve sempre algo a essa sociedade, você necessariamente está endividado com a sociedade.

  • Participante: já nasce devendo.

Nasce devendo. Então eu acho que isso é o que Hume tem de mais essencial para nos ensinar. Não dei um Hume aqui como eu quero dar; numa outra ocasião espero dar um Hume forte. Mas eu acho que os elementos essenciais da obra do Hume foram passados – mesmo de modo meio torto, mas acho que foram passados.

  • Participante: esses elementos essenciais que você trouxe encontramos naquela obra do Deleuze, Diferença e repetição?

Encontra logo nas primeiras páginas daquele capítulo chamado A repetição nela mesma. Aí ele já começa a falar de Hume e de Bergson. Vai falar das sínteses passivas. Agora, uma obra que analisa Hume mesmo, mais profundamente, é o Empirismo e subjetividade.

  • Participante: mas esse elemento que hoje está voltando, da diferença e da repetição, nessa obra chamada Diferença e repetição, também tem muito disso aí.

Sem dúvida. Inclusive essa obra é inteiramente inspirada em Hume. Não só Hume, evidentemente.

  • Participante: quem mais?

Em Nietzsche, fundamentalmente, porque a diferença é a vontade de potência e a repetição é o eterno retorno. Você tem a má e a boa repetição. Em Hume você tem a má e a boa repetição, que é o uso legítimo e ilegítimo da repetição e da crença, do hábito. Isso tudo passa. Você tem Bergson que é a virtualidade, a diferença pura. E a memória é o retorno ou é a repetição; mas a memória em Bergson já é a memória ontológica e não mais psicológica. Então existem algumas obras que influenciam Diferença e repetição, mas Hume está na base disso, e ainda que é a obra primeira de Deleuze. E ele vai, inclusive, dizer que o princípio do empirismo não é a sensação de uma impressão, uma ideia de impressão; o princípio do empirismo é a diferença pura, é o que faz a diferença nela mesma. É isso que é o princípio fundamental do empirismo.

  • Participante: mas ela é entendida ou ela é vivida?

Ela é vivida e entendida. Mas inicialmente ela é vivida, ela é sentida. Não é uma diferença física ou uma diferença ideal; é uma diferença na sensibilidade, e a sensibilidade se dá exatamente nessa síntese do tempo. A sensibilidade, o sentimento, a sensação, é tudo em relação com a síntese do tempo. Não tem sensibilidade, sensação, espírito, nada, se não tiver o tempo. Mas o tempo emerge junto com a repetição. Então a diferença e a repetição implicam uma à outra, há uma pressuposição recíproca.

Mas a diferença é fundo de natureza. É ela que se repete. É a diferença que se repete. E a repetição da diferença nunca é repetição do Mesmo; a repetição da diferença faz com que a diferença se diferencie. Essa é a máquina da natureza: a natureza é uma diferença que se diferencia – em qualquer relação que você faça, em qualquer movimento que você faça, em qualquer ideia que você tenha. Sensação, ideia, impressão, sentimento, ação, reação – o que quer que você faça, é sempre esse o sentido: a diferença quer se diferenciar, a natureza quer se diferenciar.

  • Participante: mas para ela se diferenciar, necessariamente tem que haver um encontro.

E a repetição do jogo. O encontro é exatamente o jogo e a repetição do jogo.

  • Participante: nesse encontro ela se valida, ela se consolida.

No encontro é que ela gera consistência, ela cria essa distância no tempo. O que Leibniz chama de dobra – ela funda essas dobras. Ela envolve o fora em um dentro e esse dentro é a própria consistência, é a própria realidade, é a própria invenção de realidade. Então a invenção de realidade se dá ao mesmo tempo dentro e fora, sempre. No fundo, o princípio de diferenciação é a própria superfície de registro, é a própria relação nela mesma – a relação é que já é diferencial, é ela que necessariamente abre a diferença. O mundo é aberto por causa disso. É por isso que Hume insiste que a relação é externa, a relação é o fora da natureza; então esse relacional é o que abre sempre a diferença para diferenciações ainda mais expansivas. Ou seja, é a diferença que se expande e não o Mesmo, não a identidade, não uma forma, não um encontro com uma finalidade ou com uma origem.

Nós não estamos atrás de uma origem nem de uma finalidade.

Quero fazer um movimento agora nas próximas aulas do seguinte modo: vamos discutir mais ou explicitar mais a natureza da lei – isso já usando Kant, usando Kafka, usando a ideia de juízo, usando já a ideia de síntese ilegítima do Hume, e vendo como Kant inverte Hume. Porque Hume, na realidade, faz a verdadeira crítica em relação à consciência, em relação aos usos ilegítimos, em relação à moral; Hume faz a crítica a partir da imanência do sujeito. E Kant quer fazer a verdadeira crítica e vai separar o que é religião, o que é moral e o que é razão; e vai dizer que os domínios são autônomos e independentes e que cada um tem uma forma pura. Isso é uma arapuca mesma que o Kant traz. Depois vem Nietzsche e bombardeia inteiramente essa forma do Kant; ele diz que na realidade Kant é um padre, é um reformador, ele vem reformar o ocidente inteiro, ele vem salvar a religião.

Essa ideia de homem que não necessita mais de religião na razão, não necessita mais da forma Deus na forma homem, é mera balela; essa história de dizer que Deus morreu é uma falsificação. Na realidade, Deus está super vivo nas formas que Kant inventa como formas puras que são capazes de criticar as formas que seriam os imperativos hipotéticos ou as parcializações que estão muito misturadas com os conteúdos materiais. Kant atingiria a forma pura nela mesma – é uma forma pura de dever – que seria a única capaz de fazer com que o sujeito fosse realmente livre, sujeito legislador que ele quer criar.

Vamos dar Kant junto com Nietzsche, já, para que Kant não fique muito desértico; então já vou estar dando Nietzsche junto.

  • Participante: você quer sugerir algo de Kafka, logo de saída?

Se vocês quiserem ler O processo, de Kafka, é fundamental. Kafka diz o seguinte: que a natureza da lei, ou a natureza das instituições jurídicas, ou de um processo jurídico, é de instituir o ilimitado e a absolvição aparente. O processo rola indefinidamente, não acaba nunca, é um processo indefinido – na realidade isso tem a ver com a dívida infinita – e a absolvição nunca é uma absolvição real, você nunca paga a dívida, é sempre uma absolvição aparente. Ele fala isso com todas as letras – é o discurso daquele pintor que o K. encontra nas instalações judiciárias; o pintor vai descrever como é que funciona ou o modo de K. se safar do seu processo. Mas só é possível a absolvição real se ele for inocente; mas a inocência é solapada de cara, necessariamente você já é condenado. Você já é condenado de saída, essa é a regra da lei, não é exceção da lei; essa história de você dizer assim: “ah, você é inocente até que se prove o contrário”, é exatamente o contrário que se dá na prática. Mas o que é louco no Processo é que você não vê o conteúdo da acusação; não tem conteúdo.

Então é a forma pura da lei, é a lei formal que não tem conteúdo. A obra inteira do Kafka é uma lição, é uma exposição da natureza jurídica moderna fundada por Kant.

  • Participante: você falou que vai trazer Kleist?

Kleist inventa uma literatura que é a máquina de guerra na literatura. Os personagens sempre saem de uma situação de Bem – é um homem de Bem que é injustiçado e inventa uma máquina de guerra. Alguma coisa sempre se passa assim: é um afeto enlouquecido que vai desorganizando a sociedade e ataca a sociedade.

  • Participante: linha de fuga?

Linha de fuga. Então a literatura dele é cheia desses elementos. Vou enviar por e-mail uma relação de obras literárias do Kleist e do Hölderlin, que dá a interpretação em relação à tragédia, o que seria a tragédia; e a morte da tragédia com Kant, por exemplo – é uma outra maneira da tragédia morrer -, e o renascimento dela com Nietzsche, de novo.

Uma coisa que vocês podem ler já, junto com O processo, é A genealogia da moral, do Nietzsche, que é uma obra sobre a natureza da dívida, sobre a natureza da relação social – que não é uma relação de troca, mas é uma relação de dívida, mas o devedor se torna o próprio credor da sua dívida e é uma dívida finita e pagável. Com a emergência do niilismo, essa dívida se torna infinita. Aí você reencontra Kant, por exemplo, e reencontra O processo do Kafka. Seria uma forma de você fazer um passeio diferente e ao mesmo tempo articular o que é essencial, o que solapa, o uso mais ilegítimo que tem das nossas práticas, do nosso desejo, do nosso inconsciente. Ou seja, o que impede que produzamos a nossa superfície imanente de liberação – ou seja, o nosso corpo sem órgãos, o nosso inconsciente. Então é retomar as sínteses legítimas, esse modo ético de criar relações singulares. É criar o meio, é recriar o meio, é reinventar o meio. Isso é uma coisa que tem que ser feita, não está pronto. É o único modo de sermos livres, mas é um modo lúdico, no fundo, não tem nada a ver com uma tarefa árdua, uma obrigação moral como Hegel diria naquele trabalho do negativo dialético até chegar à síntese universal. Nada a ver com isso, é um movimento completamente contrário; não é trabalho, é uma dança. E isso se dá nem nenhuma referência prévia, isso se dá com a crença no real – é esse conceito que Hume libera: a crença é positiva na medida em que ela é um campo de atração que te orienta ou que te faz sinal; mas ela se torna ilegítima quando a partir dela você infere ou você deduz mais do que você pode saber. Aí ela se torna ilegítima. Então a crença é uma potência.

  • Participante: ambígua.

Ambígua.

  • Participante: pode ser limitante, nesse sentido.

Ela é limitante quando, a partir de uma redução parcial da sua paixão, você projeta, através das experiências que essa paixão tem, das reflexões que essa paixão tem, você reprojeta a própria regra que se destaca na reflexão. Porque em cada reflexão que ocorre numa relação, uma regra se destaca; e o uso ilegítimo é quando você projeta isso para o outro, como se o outro devesse funcionar do mesmo modo. Que é o que Espinosa chama de ilusão de causa final; a ilusão de causa final é algo que te produz e você acredita que aquilo que você sente ou que te acontece era o objetivo do outro, é uma intenção. Você faz isso quando você reveste a causa final numa causa primeira da sua vontade livre; aí você reage a aquela causa final. Quando você reage, você já está numa reflexão pura e essa reflexão nada mais é do que a ideia abstrata que se destaca ou que se repete na imaginação que emergiu da experiência. Então daí você tem o uso ilegítimo da crença.

O que é a crença legítima, na realidade? É aquilo que te joga para o mundo, que te joga para a natureza, que faz da natureza um campo atrativo, um campo de atração; que faz do futuro algo desejado por você, que você queira que aquilo aconteça, que você queira o acontecimento. Então o campo de crença, na realidade, é o campo de atração do próprio acontecimento, é o acontecimento que te espera. É essa a crença do Hume, é essa a crença legítima.

Mas você ultrapassa a crença quando você entende o modo como aquele acontecimento emergiu ou como aquilo funciona. Aí você está no entendimento. É você levar a paixão à ação, na expansão, e a imaginação ao entendimento ou a subjetividade ao entendimento. Entendimento e ação, entendimento e ação.

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