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Biopolítica e Produção de Saúde – Um Outro Humanismo?

Texto elaborado a partir da conferência realizada por Luiz Fuganti durante o Seminário
“A Humanização do SUS em debate”, realizado em Vitória,
Espírito Santo, de 25 e 26 de Junho de 2008.

O tema a ser examinado aqui é biopolítica, produção de saúde e um outro humanismo. Quando procuramos inovar nas ações muitas vezes não nos damos conta de que elas podem permanecer reféns de velhos preconceitos, ou pior, de pré-julgamentos subterrâneos, como nossos próprios modos de vida o são. Ao se naturalizarem pelo senso comum, mudanças nas práticas, e particularmente nas práticas de saúde, revelam-se finalmente apenas como mudanças de fachada. Assim, podem continuar ainda a transmitir comandos implícitos velados, que se exprimem e se traem nas capturas que colocam a vida a serviço de poderes tristes. – haveriam poderes alegres? – Tudo o que é decisivo jamais se passa no campo das intenções, tampouco das boas intenções. A intencionalidade é uma mistificação de consciência que é preciso combater, sobretudo quando se fala em nome dos poderes e saberes do bem, mesmo os que se dizem porta vozes do bem da vida! Talvez não se digam aqui coisas tão agradáveis, mas não nos preocuparemos com o provável desconforto, sob pena de descuidarmos do essencial. Tentar-se-á brevemente extrair dos modos de desejar e valorar das práticas que elegemos como urgentes e necessárias à transformação do trato com a vida humana que padece de cuidados algumas das principais tendências que possam ajudar a esboçar o quadro em que se compõe o problema da implementação das políticas públicas de saúde do ponto de vista da humanização.

Um outro humanismo. O apelo para o humanismo talvez seja um convite arriscado. Esse tom nos impõe uma questão e uma atenção ainda mais urgentes: até que ponto o cuidado mais humanizado pode, inversamente, mascarar o destrato com relação às forças mais nobres da vida? Dá-se o mesmo na oposição dos valores “humano versus desumano” e na relação “civilização versus barbárie”, que opõe, de um lado, a civilização cultivada na lei e na linguagem como condição de paz, de liberdade e de progresso da humanidade e, de outro, a barbárie mergulhada na tirania, com seus correlatos de violência e de escravidão envolvidos nos caprichos imprevisíveis de um déspota que governa pelo terror e pela brutalidade. Ora, o que nunca é dito é que foi o próprio poder violento das formações sociais bárbaras que inventou e modelou, ao mesmo tempo que o poder de Estado como paradigma de organização humana, a forma da Lei que supostamente pretenderia destituir aquele poder – a lei democrática ou positiva tendo na verdade apenas uma diferença de grau, e não de natureza, em relação à lei despótica. Também não se ousa dizer que o processo civilizatório (com seus Estados democráticos) é sim um modo regulador das relações de sociabilidade, mas não por isso exconjurou as relações de violência e de barbárie. Ao contrário, é sob a chancela de um modo violento de determinado homem estabelecer seu poder – o modo de ser de um homem previamente tiranizado por certo impulso e banhado em relações de poder – que empunhamos a bandeira dos direitos universais do Homem. Movido por um interesse de conservação, este homem precisa negar e/ou limitar toda a ação intensiva de outro tipo diferencial de vida. Desqualificando, em nome do ideal da lei ou da norma, toda ação (ou ideia) interessada e destituída de finalidade, em proveito da ação desinteressada – leia-se bem-intencionada, isto é, conscientemente guiada pela utilidade passiva, pela justiça, pela verdade e pela bondade –, ele investe, na realidade, valores diretamente relacionados a seu próprio interesse de poder e ao interesse de conservação de uma comunidade que o sustenta, cujo impulso dominante (feito de vingança e de ódio contra tudo que é potencialmente autônomo e livremente ativo) promove certo humanismo, em nome do qual, na prática, acaba por esmagar e violar as intensidades vitais e suas multiplicidades qualitativas, forças mais sutis e mais nobres da vida.

O próprio conceito de homem – se considerarmos a qualidade intrínseca aos modos de pensar, sentir e agir dominantes, implicada nos valores universais cultivados por nossos contemporâneos –, numa palavra, seu modo de desejar ou existir, é concebido por Nietzsche como um modo essencialmente reativo. Atribuir uma essência reativa ao homem não significa confundi-lo com uma forma natural invariante ou com uma substância humana genérica, mas situá-lo num processo histórico que fez emergir um modo dominante de usar as forças que o constituem, cuja qualidade de relação consigo e com o mundo (que põe sob suspeita tudo o que singulariza e afirma a diferenciação vital) compõe um tipo, uma forma de existir que se chama Homem. Essa “qualidade” investe a conservação como primeiro valor, a qual se exprime nos modos de cultivar os limites do vivo. As extrações de limite determinam os usos que fazemos da identidade, da semelhança, do ideal de verdade, da objetivividade universal, da subjetividade competente, do corpo eficiente, da norma constitutiva da responsabilidade moral etc. Contraímos o hábito de interpretar a diferença constitutiva de todo ser desejante como oposição, sujeita à conciliação ou à contradição, e então submetê-mo-la à mediação do julgamento que compara e que a coloca como carecedora da ordem de um modelo finalista que a integraria a um todo, legitimador e controlador do vivo. Poderia ainda esse cultivado sentido reativo da vida, dominante na atual forma-homem de ser, esconder-se no novo apelo humanista e continuar, portanto, mediante esse apelo, a carregar consigo todas as concessões envolvidas e mascaradas nas relações de força, de poder e de enfraquecimento da vida, que continuam compondo o homem de hoje?

Nietzsche dirá que o homem torna-se efetivamente reativo quando, sob o golpe de um violento mau encontro que faz emergir o Estado bárbaro, acaba por encerrar-se na camisa de força de formações sociais derivadas, que secretam um credor como ideal superior (instauração de uma referência exterior e superior à vida) e princípio organizador de sociedades dessa espécie, segundo uma dívida de existência imputada a toda vida carente de ordem que a realize. Ideal credor e creditador em torno do qual se legitima toda ordem que salva. Seja a referência a um Deus, a um Estado, a uma lei, seja a referência a algo eminente ou a qualquer instância estabelecida como transcendente à natureza, o que importa é o efeito de desqualificação, de falta, de dependência, de regulação e de obediência imposto à vida, condenada a tornar-se função de outro ideal, e a sustentar e desenvolver saberes e poderes nele implícitos, pois que assim se pode conservar e partilhar das benesses do credor, mesmo que custe a essa vida seu rebaixamento aos mais banais e ordinários estados de existência.

Numa palavra, o princípio de decadência ou de produção de doença emerge com a inversão do valor das qualidades de forças que dominam os devires constitutivos do homem, isto é, quando acontece um rebaixamento dos modos de vida no homem. As forças de conservação tornam-se dominantes em relação às forças de criação ao mesmo tempo que a vida não só é conduzida a estados vizinhos de zero, de intensidade zero, como também é coagida a investi-los. É assim que o homem passa a valorizar mais as forças de conservação do que as forças de criação. Torna-se então reativo, desorientado, doente!

Evidentemente, por ser a visão de um plano existencial, essa perspectiva exprime a dimensão essencial das modalidades de existência. Vamos problematizar esse horizonte nessa medida e examinar o que se entende por humanismo.

Sabemos muito bem que a desumanidade, o destrato com a vida do homem é algo abominável. Ninguém diria que ser desumano é uma prática a ser cultivada. Ora, uma coisa é a desumanidade, o destrato, o descuido, e outra, é o inumano, que é uma dimensão necessariamente constitutiva do homem, extremamente rica e, no entanto, tão pouco explorada! Se ele é constituído delas, então é necessário que o homem também as cultive, sob pena de fraudar e mutilar a si mesmo. Não somos feitos apenas de uma forma humana, nem sequer somos feitos de forma. Em nós, como em tudo, a forma é efeito do encontro de forças. Essencialmente, somos compostos de forças. Há forças que singularmente criam o modo humano de ser. Se mudássemos o modo de relacionar as forças do homem, forças de imaginar, de lembrar, de perceber, de agir, de pensar, de acreditar, enfim, de desejar, poderia aparecer um novo humanismo? Se as forças que inventam singularmente o modo humano de ser se banhassem na afirmação imediata dos processos diferenciais que criam e sustentam a vida, um modo afirmativo no modo humano de ser poderia emergir? E se se colocasse em marcha um modo ativo e criativo, onde não haveria lugar para a falta do ponto de vista do desejo no homem?

Não sabemos até que ponto o homem conhece esse desejo sem falta e sem dependência. Se não conhece, deveria inventá-lo! Enquanto esse acontecimento não se produz nele, permanece refém de práticas piedosas. Penso e sinto que a piedade é o veneno maior. Ah, a piedade, a compaixão! Nossas velhas conhecidas fórmulas de travestir o ódio sob uma fórmula de amor, para melhor disfarçar nossa vontade de poder. Piedade e compaixão, contitutivas de nossa humanidade, tão pouco conhecidas como verdadeiros venenos! Porque não ousamos, não temos a coragem de encará-las realmente como venenos? O que a vida ganha efetivamente com isso? Não seria esse modo de sentir uma desistência? Não seria a compaixão a pior forma de crueldade? Não seria então cada vez mais urgente desconstruir os modos compassivos de ser em nós? Não seria esse o cuidado maior para com as forças constituintes de uma outra humanidade em nós?

As forças que singularizam o homem compõem uma maneira humana de ser, mas ele também é atravessado por forças animais, vegetais, minerais, por forças moleculares que fazem a riqueza, a abertura da vida. Se não as cultivarmos, já que são tanto mais desinvestidas quanto mais enfraquecida a sociedade se torna, o estrago irremediável em nossos porões inconscientes será inevitável. No entanto, é curioso constatar que, do ponto de vista das relações de sociabilidade que tais forças colocam em variação, simplesmente os homens não as suportam. Muitas vezes se diagnosticam como doença zonas de experiência povoadas de elementos inauditos, desqualificando-as. Se causam estranhamento ao homem normal, é porque põem sua atual forma em variações, cujos efeitos imprevisíveis não se deixam catalogar nem monitorar, pondo em xeque a norma do humano.

Frequentemente padecemos dessas forças. Pois as tememos! Desse modo, não aprendemos a lidar com elas, tampouco inventamos jeitos novos de se apropriar de sua fonte para fazer delas realidades aliadas que preencheriam nossa capacidade de existir. Só assim poderiam fazer sentido como potencializadoras de nossa diferença intensiva no processo de singularização que se instala em nós a partir dos encontros que fazemos com tais forças. Só assim poderiam tornar-se matéria de criação para novas maneiras de sentir, de agir e de pensar. Na medida mesma da limitação de nossa capacidade de existir, nos apressamos em exercer piedosamente uma espécie de redução de danos em relação às “perturbações” que atravessam as zonas desconhecidas do humano e em promover um cuidado excessivamente apressado, isto é, destratá-las! Pois aqui haveria um destratamento, um desumanismo em relação às forças não humanas do homem.

Outra coisa, complementar e paralela a essa maneira depreciativa de se relacionar com o estranho, seria servirmo-nos de uma visão e de um gosto humanistas para dizer: toda vida merece cuidado, toda vida merece bom trato. Novamente caímos numa arapuca: a arapuca da universalidade dos valores. É como se cuidar fosse um verbo que participasse incondicionalmente do bem universal, que gozasse da universalidade dos valores mais caros ao homem. Temos ainda outros valores que nos são especialmente caros expressos em verbos como integralizar, atender, acessar, humanizar. Um verbo exprime uma ação e a ação tem não só um sentido, ela tem um motor ! Esse motor qualifica o valor desse sentido. O que nos move quando queremos cuidar?

Dar saúde a todos, dar acesso a todos? Democratizar o acesso à saúde? Valores universais, todos têm direito a isso e a aquilo. Habituamo-nos a achar que os valores universais do homem são inquestionáveis, portanto a vê-los como solução. Mas investir em valores universais é sintomático. O valor universal é uma maneira de falsificar a realidade. Em nome dos valores universais cometeram-se as piores atrocidades. Nunca Bush diria que agiu em nome de parcialidades malignas, nem mesmo Hitler o disse. Sabemos que há um apelo universalizante – justificador das práticas e pensamentos mais torpes – a nomes como os de Deus, do bem, da lei, e como os da vida, da diferença, da multiplicidade, da democracia, do humanismo, ou mais cinicamente, apelo a ideais como os de Nietzsche, Espinosa, Deleuze, Guattari, Foucault… Portanto, não fazemos nada de bom, nobre, afirmativo, real e necessário enquanto fazemos ou pensamos algo em nome de. A linguagem não é neutra e muito menos o pensamento é feito de valores universais.

O que nos move na vontade de produzir cuidado? Nenhum poder – raros membros da esquerda atentam para isso – deseja excluir absolutamente. Só exclui quando não tem opção. O poder opera incluindo. Só o poder mais tosco, caricato, deseja excluir. Todo poder oscila, alguns se travestem mais, se tornam mais refinados, e inteligentemente criam políticas de inclusão; esta prática é certamente algo extremamente interessante para um poder que quer crescer. E algum poder não quer crescer? E nós, queremos também incluir? Mas incluir o quê em quê e para quê? Quem em nós quer ser incluído e incluído em quê? O que acontece com a perspectiva de autonomia dessa vida ao ser incluída?

Toda política que visa à saúde, a dar saúde, a atender a um modo de vida de um paciente e, no entanto, não investe em condições que tornam tal paciente médico de si mesmo, nem investe e sustenta em seu horizonte futuro uma vontade de, no limite, desaparecer, se tornar desnecessária, – jamais rompe com a piedade, com as velhas formas de poder. Segundo Foucault, o poder pastoral visa sempre a cuidar de cada ovelhinha do rebanho para que ela permaneça em estado de demanda de uma instância que não lhe pertence. A ovelha precisa do pastor, precisa da referência. Existiria um rebanho humano? Seria o que chamamos de povo? Seria um tal povo que precisaria do SUS, da saúde, do ministério, do governo?

Sim, é muito interessante, é muito necessário. A vida anda numa condição muito complicada. Evidentemente, sempre que se tem a ocasião, a oportunidade, o desejo de investir numa qualificação da vida, isso pode fazer bem para a vida em geral, para a sociedade… Ora, justamente o que questionamos é a existencia de uma vida em geral. Então a questão torna-se mais sutil: que vida cultivamos ao investir uma tal qualificação? A vida qualificada ativamente já em nós? Se não, se não fazemos a lição de casa, como levar saúde para outro? O que é saúde? Não há saúde numa vida dependente! Toda vida dependente é essencialmente doente.

Não há essência do mal, nem essência da doença, mas um modo enfraquecedor que pode ser cultivado, que se compadece na impotência fazendo o poder crescer, inclusive o poder dos humanistas e seus direitos, dos moralistas e sua lei, dos racionalistas e sua verdade, dos idealistas e seu bem, dos juízes e sua justiça compensatória. Há várias formas de poder. Há o poder bom? Não precisariamos distinguir antes entre poder e potência? Todo poder não pressupõe a impotência? A biopolítica, uma espécie de comando da vida, não implicaria uma diferença necessária àqueles que realmente se preocupam com a dimensão ética? Uma ética além do código, como potência de existir? Não haveria um biopoder radicalmente diferente de uma biopotência? Não deveríamos apreender o que comanda na vida? Em qual vida? Cultivamos a vida reativa em nós? Queremos dar saúde à vida reativa? Queremos dar saúde e vida longa à vontade que se nega ao negar, que se arrasta e prolifera modos tristes de existir? Queremos que esse homem produzido essencialmente em sua forma reativa se conserve? Não é em nome disso que se fala em investir nos valores universais do homem? O homem tem direito, mas quem no homem tem direito? Quem em nós tem direito? É a nossa vida covarde, fraca, doente que tem direito ao cuidado? O cuidado não seria prioritariamente fazer com que a vida se torne potente, forte, criativa, inventiva, ativa, que goze realmente, produza o gozo alegre como consumo de intensidades livres sem as quais não haveria transmutação do desejo nem saúde em ato? O homem chegou a uma condição tal que não acredita mais nisso? Acredita que a existência é essencialmente faltosa, sinônimo de imperfeição ou que a dor e o sofrimento não têm nenhum sentido alegre de ser? Desistiu de si mesmo? Fomos piedosamente modernos com nosso modo moderno de ser, no século XX? Continuaremos piedosos pós-modernos neste século XXI, que se desenha como século da inclusão, do pertencimento, do empoderamento, da pró-atividade? ou já sentimos a urgência necessária de ultrapassarmos de fato a piedade que se traveste em mil cores? Atrás de toda piedade não se esconde o amor pela fraqueza? E no amor pela fraqueza não se esconde um ódio e uma secreta inveja à vida realmente potente e autônoma? Atrás do amor pela fraqueza não se esconde uma vontade de poder?Quem em nós ama o quê ou quem no outro? Quem em nós é solidário com o quê ou quem no outro? Essas questões são essenciais, pois os valores universais e as palavras genéricas são maneiras de falsificar a realidade.

Não se trata de dizer viva a diferença! Isso não bastaria. Tampouco contentar-se com um tolerar a diferença. Mas para quê isso serviria? No filme Dog Ville um filósofo utilitarista ensina sua comunidade tacanha a tolerar a mulher estrangeira, por trazer uma diferença que, em vez de arruiná-los, poderia lhes servir. A diferença assim tolerada é tornada útil, meio de poder. Mas a estrangeira era mesmo diferente? Diferente, em sua piedade pelos desvalidos, da arrogância tirânica de seu pai ou dos modos mais explícitos de poder? Quando falamos da diferença, compreendemos realmente qual é a natureza da própria diferença? Como gostamos de confundi-la com a identidade de um individuo, de um grupo, de um movimento, de uma minoria, até de um povo! Mas diferença e identidade jamais coinsidem! Toleramos a diferença ou realmente gostamos da diferença? Algo em nós goza com a diferença, investe ativamente, se alegra ao diferenciar na vida? Fazemos disso um modo de vida? Não basta dizer viva a diferença, viva a multiplicidade. É preciso vivê-las, criar esse modo de viver por intermédio até das coisas mais simples, mais banalizadas. Se não temos o horizonte da autonomia, não moral, mas ética, uma autonomia real, potente, em que a vida se torne novamente capaz de criar as próprias condições de existência, se não cuidamos assim da vida, nos tornamos instrumento de expansão de um novo tipo de biopoder, talvez mais sórdido, hipócrita e inconfessável em suas razões do que aquele que combatemos. Um poder normatizador cuja justiça enquadra a diferença real entre a falta e o excesso, entre a violência e a deficiência, para submetê-la ao padrão da média. Mas como o domínio de um metro padrão não seria o domínio daquilo que há de mais medíocre na vida humana? Eis a aliança desastrosa para o futuro da humanidade: a de um poder cuja justiça se alimenta da vida tornada fraca com esta vida tornada fraca que, sem esse poder, sucumbiria. Poder e vidas fracas unidos numa santa aliança, num só poder de contágio das paixões tristes e de continuidade da morte em vida ou dos modos microfascistas de ser. A esse pacto para combater os supostos excessos da diferença chamam justiça!

A primeira instituição da violência é a própria justiça. A justiça atual, fundada justamente no humanismo, nos valores universais do homem, como se subtrairia a sua própria mentira constitutiva, ao seu alimento mais venenoso, a vingança? Não seria a justiça uma máquina de garantia dos modos mais reativos de viver? Não estaria ela então a serviço do mais baixo grau passional, promovendo modos de vidas os mais servis até hoje atingidos pelo homem? É o que assistimos quando ela sistematicamente projeta limites e introjeta normas. Contraídos na demanda contínua de sobrevivencia dos níveis mais humildes do humano, temperados na impotência da vida fraca, ela arremessa-os arrogantemente contra os modos ativos e intensivos de viver. Jogar a vida contra a vida, eis o seu jogo. Inocular a discórdia, a desconfiança! Injetar a contradição no coração do desejo!

Sempre cuidamos melhor quando tratamos as forças reais de frente, sem mediação, quando não buscamos subterfúgios ou intermediários. A presença de mediação autorizada testemunha a desqualificação de nossa capacidade de produzir escolha e afirmar diferenças. O apelo a juízes que tomam para si a função de atribuir ou destituir valor a algo ou a alguém, entrega o incomparável da vida à comparação pela média – mediocridade estatística -, mutila, desqualifica e rotula o que é singular por essência sob a tutela de um modelo artificial, universalizante só por contingência. Modelo secretado por um motor, motivo vil tornado significante por um modo de desejar dominante de uma época, que se exprime nesse horizonte significante, supostamente neutro como valor porque separado e equidistante daquilo que põe em jogo. Para recobrar uma postura ativa que nos torne dignos do que nos acontece e ainda mais livres e fortes por aquilo que nos acontece, sem precisar julgar o acontecimento pelo que lhe falta, é fundamental espreitar nas fronteiras das relações aquilo que se abre e acolhe forças ainda inauditas. Forças insuspeitadas e disponíveis, que temos e que sempre estiveram aí a nossa espera com seus perigosos sins, nos fazendo sinais e convites, mas que também sempre acabavam silenciadas pelos nossos tão badalados principios de identidade e de realidade, que temerosamente delas nos protegiam. Forças desconhecidas das consciências de senso comum. E temos muitas. Não precisamos agir piedosamente contemplando a fraqueza nem demandar cuidados diante do que não se pode conservar sem rebaixar a vida. Para que tamanho sacrifício na empresa da conservação de tudo o que precisa da tristeza para viver? Nietzsche, na mais nobre interpretação frente a decadência da existência, nos provoca dizendo que aquilo que pode ser destruído, merece sê-lo. Podemos nos relacionar com aquilo que não pode ser destruído? Podemos conquistar essa capacidade, essa grande saúde? Isso é um cuidado com a produção de eternidade na existência! Somos capazes disso? Talvez. E no entanto, torna-se cada vez mais necessário e urgente que sejamos!

Na medida em que deixamos que as forças de conservação nos dominem, é inevitável que nosso modo de pensar se torne dialético e piedoso. Nietzsche diagnostica, no coração da dialética moderna, o falseamento de todo o pensamento afirmativo, do movimento diferencial do corpo, da atividade criadora do desejo, da matéria intensiva das forças e o consequente esmagamento das diferenças. Vê na dialética a ideologia própria do ressentimento. A dialética valoriza igualmente a afirmação e a negação, o que já é um grande erro, mas não sem covardemente tornar a negação dominante para opô-la ao acontecimento imediato da diferenciação criativa da vida. Ela transforma toda diferença em oposição. Sem essa distorção desqualificadora nenhum sistema de mediação do julgamento resistiria. Não há oposição entre forças ativas e forças reativas, entre as forças de criação e as forças de conservação, exceto sob o domínio do modo reativo de viver. Há uma dominância! O que deve ser dominante em nós? É uma questão de primeira ordem, condição da nobreza e da saúde dos modos de existir. Deixamos que as forças de conservação sejam dominantes. E é então que investimos a dialética como um grandepathos que faz naufragar o pensamento no mar da contradição e da conciliação. Torna-o refém de uma moral legitimadora e reparadora. É quando o limite – mera função reativa – é tornado princípio de desejo, isto é, quando o desejo se reduz a um esforço de conservação, que o pensamento acaba projetando o limite daquela sobre a força de criação, fazendo desta uma oposição virtual, instaurando a condição de dicotomização da vida. Então o pensamento elege a exclusão como operador privilegiado de seleção prática. Mas na realidade o que há são sempre coexistências, coordenações, nunca oposições. Há, no limite, sempre uma valoração, aquela de um ponto de vista do que a vida pode suportar ou se tornar, pelas condições que ela cria ou que lhe são impostas, mas que sempre necessariamente a preenchem.

A ideia de que a existência necessariamente é carente oculta-se onde as forças de conservação são dominantes. Não há vida separada daquilo que pode na existência que seja capaz, enquanto tal, de apreender a perfeição da própria existência. Mesmo e principalmente quando reduzida a um preenchimento com afetos reativos ou passionais, sejam paixões tristes e seus sofrimento que adoecem, dor por falta, sejam paixões alegres, pelo prazer que engrandece, prazer por enchimento. São estes afetos que simultaneamente preenchem e separam o desejo ou a potência da capacidade ativa de existir. Tornar-se capaz de extrair do imediato de cada acontecimento da existência uma razão necessária, um ato cuja perspectiva potencializa essencialmente a vida aprendiz em variação continua, é conquistar a ótica sob a qual, como já ensinava Spinoza, a realidade da existência é idêntica à perfeição. Não somente nas melhores, mas também nas piores relações há um ponto de vista sob o qual a realidade é necessariamente perfeita. Esse ponto de vista é aquele gerado no seio de um ser comum. Um plano comum de imanência – causa de si e razão de todo encontro, causa imanente e condição necessária de tudo o que podemos chamar de real. Para Spinoza o ser comum é necessário em qualquer relação, inclusive naquelas que trazem o mal, a doença, a tirania, o colonialismo, a morte. Mesmo em uma relação em que me torno pior, até aí há algo de necessariamente comum. Um meio comum extremo, acontecimento de todo acontecimento, sem o qual não haveria nem relação nem encontro. Não comum naquilo que pode me fazer mal ou me fazer adoecer, mas é por meio de um ser comum que toco e sou tocado, que afeto e sou afetado, de bom ou de mau jeito, enfim que posso me tornar cúmplice.

O verdadeiro problema do homem está em um modo de viver que o torna cúmplice daquilo que supostamente ele combate ou quer se libertar, culplice do poder que o captura. Desconstruir a cumplicidade em nós é essencial. A psicanálise por muito tempo confundiu culpa de existência com cumplicidade nos modos de existência. Chegará o dia em que a triste ladainha psicanalítica soará como comédia. E em vez de morrermos de culpa ou de depressão, morreremos de tanto rir! Quão importante eram todos os egos sequiosos de prazer e liberdade e suas frustrações cotidianas quando desmascarou-se a cumplicidade que os transbordava! Talvez só então entenda-se definitivamente o fator culpa e o fator falta como fatores constitutivos do humano, mas de um humano e de um humanismo essencialmente reativos. Nenhum desejo real ou que se tome pelo que pode realmente, sem muletas ou tutelas, se constitui pela falta ou pela culpa. As psicanálises, e outros psys que não ultrapassam a dicotomia “cultura versus natureza”, as metafísicas da estrutura que não ultrapassam a velha dicotomia “inteligência versus instinto” disfarçando seu mal entendido sobre a natureza da memória e da diferença em trocas simbólicas que operam no seio de outra querida mania de dicotomia, ainda mais humana e moderna: “pulsões versus lei”; as filosofias que confundem memória com origem ou identidade, ligando os processos de diferenciação com o esquecimento da origem e tomando o devir como a saída, queda ou corrupção do Ser pelo tempo e pelo movimento, e muitas outras práticas e saberes humanos acabam por inflacionar a crença no postulado comum de que o desejo só é o que é porque intrinsecamente carece de objeto cuja regra extrinseca de preenchimento ou prazer está fadada ao fracasso, a frustração, tornando o gozo impossível. E assim se chafurdam num obsceno e pornografico puritanismo que reza: viva a castração que simultaneamente condena e santifica!

E quando consciente e voluntariamente se quer combater modos de dependência, frequentemente manifesta-se uma sutil arrogância sob a máscara da piedade. Pratica-se, sem nenhum pudor, o seguinte contrasenso: é preciso dar autônomia a esse e a aquele, a cicrano e a beltrano, a tal ou qual setor de uma comunidade. É preciso dar autonomia ao povo! Mas autonomia não se dá, nem se tutela, se conquista! Quem em nós quer dar autonomia a um outro, e o que realmente esse que assim quer em nós? O problema da autonomia é antes, pelo contrário, o de criar atmosferas de afirmação e com elas modos ativos de relação que acabem por exconjurar e tornar superflua qualquer instância garantidora de direitos ou provedora de compensações ou reparos justiceiros. Tornar autônomo é investir em modos de se distanciar não só do Estado, seja como tirano ou como pai, mas de si mesmo, de seu espelho, das demandas de pertencimento e “auto-estima” promovidas por um outro em nós. Conquistar autonomia é encontrar a fonte direta e não o patrocínio, servindo-se daquilo que nos acontece como matéria e combustível de criação e ultrapassamento – nunca de julgamento – operando uma catálise de devires compositores de encontros cujas condições confundam-se com as da afirmação das diferenças, dos acontecimentos plurifocais, dos movimentos pluridimensionais. A afirmação é o único comum que não se confunde nem com o público nem com o universal, muito menos com um pai universal, um ser genérico ou um Bem final e mais com uma espécie de placenta cósmica sem útero, com um pedaço da qual cada um de nós constroi sua linha de devir ou de singularização, como complemento contrapontual e não como oposição ao ser comum, como ocorre ordinariamente com nossas vidas contradizendo-se em sociedade. Ela é antes o meio extremo de encontro de cada singularidade impessoal, de cada força diferencial, de cada diferença de potêncial, de cada devir intenso que traz sempre do seio do comum um ato necessariamente singularizante, o qual constitui a essência como potência de variar, simultaneamente como horizonte absoluto e combustível de toda modalidade vivente. O sim afirmativo é uma conquista da diferença – não uma falsa dádiva solidária do sim perene de um modelo superior de tutela que implica um não aos modos ativos imanentes de viver e que piedosamente resgataria e salvaria da desordem e da doença pessoas, grupos ou sociedades, na proporção de sua elevação ao puro elemento da ordem de um Ideal sem mácula, livre de interesses e de paixões.

Este ponto nos remete diretamente ao problema do cuidado e suas modalidades. Há alguma virtude em dizer que o cuidado é um valor a ser cultivado e envolve um saber e uma prática essenciais do ponto de vista da qualidade das relações em sociedade. É certo, ao menos, que não caimos na banalização das políticas neoliberais com seu cântico enfadonho acerca da desnecessidade onerosa e supérflua de muitas instituições dedicadas ao cuidado ou trato com a vida de algum modo tornada dependente. O verdadeiro problema não está no dilema cuidar ou não cuidar, cuidado mínimo ou cuidado máximo, máximo de tutela estatal para um cuidado público e geral, minimo de estado para um cuidado privado e particular. O verdadeiro problema diz respeito a natureza ou qualidade do cuidado. Sob seu aspecto crítico, essa questão não remete a uma forma universal do cuidado, a ser entregue a forças públicas do estado ou privadas do mercado, mas a qualidade das forças que constituem essa forma que se repete e, por efeito de repetição da qualidade da relação das forças, torna-se um simulacro de forma universal. Forma universal portanto apenas na medida que é efeito, resultado de uma composição de elementos desejantes, constitutivos de uma realidade multiplipla e heterogênea. A universalidade que se dá pela repetição é um efeito que nos induz ou engana ou que a gente investe por algum outro tipo de interesse.

Por fim, não acredito em defesa de valores; todo valor é criado. Defender valor é investir numa referência inventada como boa, justa ou verdadeira, e opô-la ao mau, ao injusto e ao enganador. Mas porque acreditamos em oposiçao de valores? Não estaria aí uma forma essencialmente falsa, enganadora, injusta, malévola? Sempre que declaramos nossas sublimes e boas intenções, podemos melhor mascarar nossos desejos inconfessáveis de baixezas e malquerenças necessárias na impotência e na dependência. Como diz Nietzsche, não há vida mais injusta, mentirosa e má do que aquela dos homens justos (leia-se vingativos), verídicos (leia-se detratores das vidas livres e diferentes) e bons (leia-se, daqueles que tornaram-se impotentes e fracos). Jamais dizer viva tal ou tal valor, tal ou tal bandeira, tal ou tal ideologia, bastaria para por a vida em devir ativo, autônomo, em perfeito movimento de liberação. Jamais a vida, por uma carta ou declaração de intenções, ultrapassaria seu oposto, aquele da crença em valores que só geram depreciação do desejo, por mais supostamente nobres e libertários que fossem. Sempre mais baixeza e servidão, numa palavra, mais dependência, acompanham os empunhadores de bandeiras. Podemos conquistar a capacidade de produzir valor e nos libertar das referências universais e das práticas políticas colonizadoras, cultivadoras de dependência às quais essas referências servem. Caso contrário, teríamos que investir na crença em instâncias que nos defenderiam de toda opressão. Alguém já disse: “não fico sossegado quando qualquer sacanagem parece ser coisa normal”. Mas só precisamos das instâncias justiceiras e reparadoras ou de certos tipos de cuidados, quando não sabemos extrair dos maus encontros, maus jeitos, acontecimentos malogrados, fazer deles presentes do destino, tesouros para guerreiros ou combatentes, a ponto extrair matéria de criação até das piores sacanagens. Não uma nova declaração de intenções deve nos conduzir a cada mudança, mas novas maneiras de relacionar-se com o acaso, inclusive os piores e as piores sacanagens advindas da baixeza e da impotência de vidas medíocres! Vidas que só escolhem pela impotência do que não suportam no que há de ativo no vivo! Não precisamos combatemos o poder quando conquistamos a potência. É ele quem foge sempre impotente diante da vida vigorosamente criativa! Ele se dissipa quando fazemos a lição de casa, a lição que transmuta o corpo, o desejo e o pensamento; quando somos capazes de nos produzir como obra, obra como natureza, natureza como pot~encia de acontecer e criar. O cuidado essencial antes de tudo é o cuidado de si, das prática de si. Não se pode cuidar do outro sem cuidar de si. Nietzsche dirá que o amor ao próximo é um mau amor por si mesmo. Só se pode amar ao próximo de modo honesto, autêntico, generoso, fortalecedor, dadivoso à medida que nos tornamos potentes e criativos. Senão, o que temos a oferecer ao próximo? A própria miséria? Mas aqui até o que é próximo muda de natureza, pois o próximo interessante é justamente aquele que afirma a distância, distância imanente e necessária à afirmação dos tempos e movimentos próprios da diferença que nos sustenta e atravessa nossos devires. O amor ao próximo é também um desvio de si mesmo, um desespero das forças desconhecidas, temidas e malqueridas que acabam por produzir dor e dilaceramento, numa fraqueza insuportável. Na compaixão ver-se-ia então um amor pela fraqueza do outro, uma vontade de fugir de si refugiando-se num poder de cuidar, conquistando um poder de cuidar do outro. Talvez então o outro, no reconhecimento de seu salvador, se tornasse vítima do ser cuidado? Sufocado de tanto amor de um outro tão misericordioso, sensível às suas fraquezas. Impotência – pressuposto de toda vontade de poder. Por isso mesmo não podemos confundir poder e potência: são coisas radicalmente diferentes. Não temos que dividir o poder, não. O poder deve e pode ser destruído! Ouve-se frequentemente os movimentos excluidos que querem ser incluidos, as minorias que querem ser maioria gritarem: é preciso democratizar o poder! Vamos revezar o poder! Alterná-lo! Distribui-lo, dá-lo às mulheres, aos gays, aos negros, índios, jovens, enfim, dá-los aos sem poder para poder fazer justiça! Mas todo poder é necessariamente nocivo – seguindo um conceito rigorosoo. Poder é tudo aquilo que captura e determina a vida de fora, precisando rebaixá-la para ele próprio, como vida diminuida crescer. A potência em ato, cuja atualização é imanente ao meio comum e extremo de acontecimento no qual se efetua necessariamente, cria as condições da própria existência e da realização das diferenças que atravessam seuss devires constitutivos. Se podemos distinguir poder e potência do ponto de vista do conceito, nós que partilhamos a língua portuguesa ainda gozamos a vantagem de dispor de duas palavras distintas, derivadas do latim, para nomeá-los: os termos poder e potência. O latim distingue potestas e potentia. O francês, segue o mesmo caminho…pouvoir e pouissance; já o alemão não distingue, serve-se apenas demacht, o inglês também não, algumas línguas não distinguem…

Mas sempre que uma natureza se exerce ou se efetua, algo nela necessariamente comanda. Há comando o tempo inteiro; não precisamos confundir o comando reduzindo-o ao poder. Uma coisa é um comando de potência, outra um comando de poder. Do ponto de vista da própria Natureza, o comando como potência absoluta de acontecer ou de variar é sempre diferencial e imanente à própria natureza naturante. Esse conceito de comando destitui um valor universal, caro a democracia moderna desde a Revolução Francesa: o de que todos somos iguais perante uma lei também universal, um dever ser universal nivelador das diferenças. O comando, nas democracias modernas está sobretudo fundado na lei, lei valida igualmente para todos. Há confusão entre exercer a potência e exercer o poder. Pelo velho modo aristotélico, confundimos a potência com possibilidade. A potência não é uma possibilidade para receber forma. Não há potência que não seja em ato, sempre há um mínimo de ato que pode ser um máximo de potência, que nos abre para um movimento intrínseco de diferenciação, uma processo imanente de singularização do desejo, que não tem a ver com forma, tem a ver com linha. É necessário reencontrar o plano que necessariamente comanda na natureza ou em qualquer relação. Ter a coragem de assumir um gosto nobre pelo comando – é preciso desconstruir, desmascarar o ressentimento contra qualquer tipo de comando, quando então é ao pior deles que se submete a vida! O comando que reza: tudo é igual. Uma coisa é não se querer atribuir ou destituir lugar ao comando senão aquele da autoridade generalizada de um dever ser universal. Outra é compreender que o comando é sempre excêntrico, como motor de composição intrínseco ao próprio acontecimento. Quem comanda em última instância é sempre um acontecimento que faz crescer. Foucault desmistificou, em seu Vigiar e Punir, muitos malentendidos com relação a idéia que fazemos de poder. O comando de qualquer natureza não tem lugar central para seu exercício, senão como lugar de passagem sempre precário. Também o poder se exerce entre e sobre, e também por aqueles que o sofrem. Sobre e através dos corpos, do tempo, do movimento. Sobre o movimento que atravessa os corpos, sobre o tempo que atravessa o pensamento, sobre os afetos que fazem variar o desejo. Aí se exerce o poder, aí também se exerce a potência. Mas o uso que fazemos dos movimentos corpóreos, dos tempos semióticos e dos afetos que selecionam são radicalmente distintos e num caso exprimem modos de poder, noutro, modos de potência. Há sempre, mesmo no anarquismo mais ressentido, um comando necessário. Há sempre, mesmo que muitas vezes inascessível, algo em todo o acontecimento de existência que faz crescer a potência e afirmar a vida, do ponto de vista da própria natureza. Isso é o que é dominante, mesmo quando nem nós nem ninguém colhemos os frutos ou sentímo-nos pobres vítimas. Algo que faz, quando o conquistamos, com que não peçamos licença nem demandemos autoridade. A autoridade se baseia numa violência primeira. A primeira instituição de violência é a da própria justiça, mora no coração da instituição jurídica moderna cuja forma trai sua própria cegueira. A forma, a lei e a justiça são essencialmente violentas e ignoram as singularidades, são necessariamente microfascistas apesar de dizerem-se seus antídotos, uma vez que se tomam por universais e primeiras. Mas o que essa hierarquia invertida, com seus defensores autorizados e também seus inimigos reformistas -isto é, aqueles que só querem no fundo a verdadeira justiça – não apreendem, é que o comando real não está no eu nem no tu, nem no grupo, nem no coletivo, tampouco no Estado, em nenhum lugar. O comando é sempre o da passagem entre meios, habita-a ou com ela se confunde, confunde-se com a fronteira ou com aquilo que pelas bordas da fronteira faz crescer e diferenciar potências. Um motor do acontecimento, algo inesgotável naquilo que acontece e que necessariamente diferencia as potências do corpo, do pensamento, do desejo. O comando é sempre o de uma unidade de composição entre relações singulares, que relaciona e faz transbordar uma diferenças de potencial, que faz devir o próprio comando das forças que povoam todo o encontro; acontecimento sempre deslocado. O comando afirmativo das diferenças é sempre excêntrico. Do contrário, ele se torna coação de poder e determina a vida de fora. Necessariamente há um comando, que faz afirmar e crescer a vida, aquilo que faz a diferença diferenciar. Não há nenhuma frouxidão aqui, e sim o contrário, a única firmeza real; há necessariamente uma afirmação sem pedido de licença, uma afirmação imanente.

O que faz Estamira (protagonista do documentário de título homônimo), negra, pobre, habitando o lixão, dizer o que diz sem pedir licença? Há um comando. A natureza que ela habita, que a constitui e a atravessa é esse comando. Como em Spinoza, o da natureza naturante comandando uma natureza naturada. É esse comando que deve ser cultivado, jamais o poder!. Esta diferença é fundamental: a ideia de comando e não a ideia de poder. O poder não deve ser dividido, deve ser destruído. Temos a necessidade de exercer a potência e aí, sim, há uma diferença. Não tem nada a ver com lei, que é sempre gregaria ou de rebanho. São processos de singularização nômade.

Spinoza, no livro II da Ética, diz que nós, homens reduzidos ao modo de conhecer pela imaginação generalizamos, construimos ficções ou abstrações, confundimos signo, pensamento e imagem. Ora, uma coisa é a imagem, outra é o signo e outra coisa ainda é o pensamento. Se as palavras são signos, não podem sem mutilá-lo, substituir o pensamento. Isso é de primeira ordem. Pensar não é dizer ou falar. Um psicanalista lacaniano afirmou que Estamira não existiria sem Marcos Prado (diretor do documentário)… Isso é algo abismal, mas felizmente também serve para nos fazer rir!…pretensão de um discurso, de uma linguagem… um destrato em relação à potência; a petulância da lei, da estrutura se pondo no lugar da diferença. O pensamento é antes de tudo silencioso; a linguagem pode ser sua matéria de expressão, mas a expressão jamais se confunde com o expresso que nela se exprime. Uma árvore pensa, a minhoca pensa, o sol pensa… é uma ilusão que cultivamos, uma mistificação considerar que só se acessa o pensamento pela linguagem. Nosso pensamento é antes de tudo acontecimento, é tempo em estado puro, que ao se diferenciar de si mesmo registra-se, se acumula e muda de direção à medida que se diferencia e se acumula. Quando realmente pensamos, não brigamos com palavras, nem disputamos sentidos verdadeiros. Não haveria nenhum problema ou discórdia entre os homens, nenhuma disputa se em vez de debater palavras eles apreendessem o sentido como vetor do desejo que necessariamente se exprime naquilo que está sendo dito, que não é nem bom nem mau, nem verdadeiro nem falso, é sim uma direção da força que vale por aquilo que faz da vida. O sentido é uma direção da força, mas da força como afeto que faz variar a capacidade de existir do desejo ou da potência, nunca o resultado de uma relação separada, estrutural ou significante de signos. É algo que vem da força e, ao mesmo tempo, é o que pode acontecer com a força. Qual é o valor do sentido que criei? Ele leva a vida a uma afirmação, a um buraco, a uma ascendência ou a uma decadência? O valor do sentido é problemático. Ele pode ser criativo e de composição ou reativo e de conservação. Há também um sentido nobre na conservação, e a questão essencial é se se apreende o sentido, ou se se disputam palavras; não há o que disputar. Por exemplo, é nobre conservar e investir nas condições de criação e variação continua da vida. Mas é baixo querer conservar os produtos da crição, se apegando aos valores criados. Cada coisa é uma singularidade, se nos esforçássemos e fôssemos menos flácidos de espírito e mais potentes e desejosos de apreender o pensamento e criar pensamentos, não disputaríamos.

No entanto, a escolha da palavra tem a sua importancia. Já se ressaltou a diferença entre poder e potência na língua portuguesa. A palavra é expressão e exprime um expresso. Se não usamos a expressão certa o expresso não se manisfesta. Há algo na linguagem que condiciona ou pode condicionar o pensamento. Isso é essencial. O cuidado com a palavra é importante, mas ela não se reduz a uma forma, nem a uma substância, é veículo de sentido. Ela é uma matéria esculpida pelo pensamento, pela potência de pensar que não é de um eu, de uma consciência, de um sujeito, nem de um coletivo. Há um mito nas esquerdas de que o coletivo é feito de uma multiplicidade de indivíduos, o que é uma tolice, gera preconceitos, faz com que a vida… perca a potência. O coletivo é sempre um coletivo de singularidades, um composto de forças, de potências, mas também multiplicidades de multiplicidades, multiplicidades de indivíduos intrinsecamente múltiplos e de seus processos individuantes. O indivíduo já é um coletivo. Não há indivíduo que não o seja. Na visão individualista pequeno-burguesa, ao contrário, o indivíduo não é essencialmente relacional…não é? Mas um indivíduo que não se relaciona não existe, é uma ficção, uma quimera. Ele se relaciona de uma maneira ou de outra, quer queira quer não. Imaginamos que somos livres porque ignoramos aquilo que nos determina ou o meio no qual estamos necessariamente acoplados, agenciados. Temos consciência do que desejamos, cremos e pensamos, mas ignoramos aquilo que nos determina a assim desejar, acreditar e pensar. Estamos necessariamente em relação. Mas o homem que põe a imaginação no lugar do pensamento traduz a relação necessária como relação de dependência. No entanto o que se passa é exatamente o contrário. À medida que você apreende o relacional na relação, encontra também a condição para conquistar a autonomia e abrir-se ao máximo para essa combinação que faz da vida potência de composição e de estilização da própria existência. Eis o essencial. O nome é matéria de expressão, veículo do pensamento. mas a linguagem é também transmissora, conforme o uso que fazemos dela, de sentenças de morte ou comandos de vida, atos implicitos não discursivos que só se realizam no discurso, que só se fazem nela. O desejo inventa nomes a todo o momento. A linguagem não é algo engessado, encerrado em constantes estruturais, elementares ou relacionais; é esculpida por burburinhos, urros, gemidos, multiplas vozes. O mais direto e imediato comandante na linguagem é o discurso indireto livre. Há muitas falas em uma fala, muitas paixões em uma paixão, muitas vozes em uma voz, como diz Deleuze. Não devemos estar sujeitos à gramática, à sintaxe, à fonologia, não há nunca linguagem fora de um uso ou de uma pragmática imanente, constitutiva de nossas territorialidades semióticas, canalizadora de fluxos. Por exemplo, a gramática diz que o singular e o plural se opõem. No entanto, o plural é necessariamente singular e o singular necessariamente plural, há uma coexistência dos dois. Mas se nos reduzimos à linguagem, caímos nesses universais e acreditamos em invariantes estruturantes, normatizadoras do humano, do humanismo linguistico. Quando investimos em constantes, queremos centralizar, criar caixas de ressonância e continuidade como parte de uma corrente transmissora e de comandos. O universal não é necessário, é sempre efeito; se desejamos uma continuidade desse efeito ou daquele, como conservar tal caminho, conservar políticas públicas que fazem a vida crescer, que afirmam a vida, aí o problema é de produção de memória e não de memória que representa o passado, mas de memória de futuro, memória que torna o futuro, assim como o passado, contemporaneo do presente. É fundamental saber criar memória como condição de produção de continuidades intensivas, memória como memória de futuro. É ela a condição de continuidade dos movimentos ou dos devires ativos autossustentáveis. Não há autossustentabilidade sem criação dessas linhas, essa continuidade se dá por qualidades expressivas e não por formas representativas. As qualidades expressivas são mais linhas do que formas fechadas.

O que é a forma? É sempre efeito de uma linha de variação, e a ilusão de que a forma não é linha advém da perda do elemento gerador dessa forma, que é também aquilo que a mantém e a sustenta. Uma vez que a forma envolve um efeito de semelhança e um simulacro de identidade no processo de repetição dos modos de efetuação das forças, acreditamos que ela tem uma existência em si, mas na verdade ela é sustentada por um campo de forças, por um diagrama de forças. Isso é essencial. É necessário singularizar, mas não subjetivar. Foucault emprega subjetivar, Negri emprega biopoder, prefiro empregar biopotência, fazer o contraste com biopoder, usar processo de singularização e não produção de subjetividade, pois a produção de subjetividade geralmente coicide com a produção de assujeitamento do desejo. A produção de singularidade é importante, é uma nuance essencial porque o ato que atualiza sua potência não é uma forma, uma referência, uma finalidade a que se vai chegar. O ato que atualiza sua potência é uma condição de acontecimento, de criação das próprias condições da experiência real que atravessa necessariamente o corpo e o pensamento. Uma produção das condições que se mantêm ligadas ao movimento imediato que sustenta a vida, o corpo, ao ritmo e ao tempo imediatos que sustentam o desejo e o pensamento. Nessas condições nos mantemos sempre ligados. Investir essa manutenção, eis aí o sentido interessante que podem produzir-se através das forças de conservação. Conservar o quê? As condições da capacidade criativa. Isso é interessante e essencial. Se o SUS tem esse horizonte, viva o SUS. Mesmo com o objeto de se autodestruir no tempo mais breve. De novo Nietzsche, todas as coisas boas … acabam por se autodestruir. O que se autodestrói? Aquilo que é apenas passagem, que serve para passar. O universal também pode se autodestruir … é apenas um modo de passar… A lei não é uma natureza em si, a lei é uma regra de passagem. Se a lei for interessante que seja função da vida. Mas Nietzsche pergunta: de que vida? É da vida ativa? É da vida criativa? Ou é de uma vida que necessita de uma demanda exterior e faz crescer um poder sem o qual ela não sobrevive?

Para finalizar, passemos à quetão da rede e da produção de saúde. Escuto em aulas que ministro, e em outras exposições etc. críticas à ideia de rede, relação do PSF, Caps, centro de saúde, centros de convivência. As reuniões sobre o assunto são as mais esvaziadas. A ideia de rede está totalmente capturada numa espécie de neoliberalismo. Ela opera uma alternância entre aparelhos ou microaparelhos de poder quando, do ponto de vista rizomático ou afetivo, deveria ser zona de passagem e de continuidades intensivas em que se operariam revezamentos, mas revezamentos de diferenciação e de aumento de potência em vez de simplesmente dizer: “olha, pega o abacaxi agora pra você porque eu vou pra praia”. Haveria que se sentir de fato o gosto pelo revezamento, pela diferenciação na alternância dos cuidados. A ideia de rede é essencial, o que se questiona é ela estar estabelecida, segmentada, uma rede de segmentarização; precisamos criar um plano de continuidade, de singularidades, não de segmentação.

Não dou aula para ter alunos ou discípulos, e sim para produzir aliados, já que sou absolutamente interesseiro. Não dou aula de memória, mas criando junto, fazendo-me junto, e me faço junto atravessando o outro; não espero nada do outro, mas sinto que há uma produção de aliança e à medida que o outro se fortalece, também me torno mais forte, por isso sou interesseiro. Na prática da saúde, se eu fosse um clínico ou algo nesse sentido, operaria da mesma maneira. Investiria numa prática clínica para que o paciente se tornasse meu aliado ou aliado da vida, de uma vida intensa. A produção de aliados é o que interessa. Há um meio, um veículo de expressão, de potencialização e de expansão de um movimento, é um meio produzido, criado no sentido de um ser comum, como zona, não do público como mediação do meio, mas do comum como o imediato do meio, não do universal se opondo ao particular, mas do comum afirmando o singular Singularizar tanto mais quanto mais se encontra e se cria comum. As palavras são importantes, se você investe na produção de aliança ou de fortalecimento da vida, a vida responde com criação de mais realidade. Investir na vida é investir em maneiras ativas de existir. Simplesmente em modos, maneiras que dinamizam, liberam, ganham velocidade. A liberdade e a saúde são questões de velocidade. A vida flui no mais breve, no mais urgente, ela faz fugir as mediações, vai se liberarando das vantagens acolhedoras. Ela vai se liberar, inclusive, da necessidade do SUS, de uma instituição cuidadora, de uma dimensão da vida que salva e liga e agrega a vida a outra dimensão onde estaria desprovida de si. A vida ligada ao que pode, pode enfim se liberar do que a submete a um poder das forças do fora.

Essencialmente, a ideia de produção de saúde, desvinculada de uma integração do ponto de vista do poder, deve atuar diretamente nos modos de vida. Portanto, seria necessário também que as práticas de saúde abandonassem o atendimento amplo, que acolhe tudo, amplo acesso com efeito de ópio do povo, uma espécie de amortecimento, de descaso social. Deleuze fala em relação ao desejo, de um uso dos prazeres: usa-se o prazer para descarregar o desejo. Será que não se usa a saúde para despressurizar a panela de pressão social e abafar os movimentos políticos? A saúde pode ser uma prática de amortecimento político, assim como a escola e outras mais. A medicalização da vida, a judicialização do cotidiano patem a nossa porta como potências aterradoras! Será que ao produzir saúde não estamos anestesiando, produzindo amortecimento? “Olha como o Estado te ama, olha como o SUS te ama, olha como nós cuidamos de você! Sinta-se incluído!” Ou será que somos capazes de produzir o horizonte em que a vida se libere, cada vez brilhe mais, se afirme melhor, possa mais, em que já não disputemos potências, mas nos alegremos com o fortalecimento do outro? O homem ainda está aprendendo a se alegrar com o fortalecimento do outro, mas o fortalecimento real, experimenta-o nele. Nas palavras de Nietzsche, estamos investindo numa grande saúde.

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