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Agenciamento

por Luiz Fuganti

O conceito de agenciamento opera um duplo ultrapassamento em relação ao modo de pensar da tradição inaugurada pelo humanismo moderno: por um lado, destitui a ideia dominante de uma natureza humana a priori – cuja forma legitimaria o senso comum do sujeito do conhecimento, a partir da constituição de um modo superior de desejar, neutro e desinteressado; por outro, desqualifica a verdade dos valores universais extraídos ou descobertos a partir de um plano de objetos ideais em si, constitutivo do bom senso – plano pretensamente superior ao plano de natureza e das forças de produção das formações sociais (ainda banhado de paixões humanas interessadas e parciais por natureza), enfim, como fundamento que torna possível o conhecimento verdadeiro, imparcial e universal. Essa dupla ilusão, a de um fundamento neutro formal da subjetividade e a do fundamento ideal como valor em si constituinte da universalidade dos valores humanos, engendra a insípida ideia de autonomia moral e racional como liberdade e conhecimento possíveis do homem. Operar sua desconstrução ao mesmo tempo em que se destitui a ideia de uma interioridade como instância unitária e primeira da vontade ou do desejo, mesmo e sobretudo de caráter natural, suposta como separada e como primeira natureza do homem, juntamente com a destituição da ideia de intencionalidade ou finalidade do desejo, mesmo e sobretudo quando seu objeto se interioriza na pura forma do

Dever, é uma tarefa de primeira ordem para quem quer realmente criar um novo conceito e uma prática de educação que invistam na potencialização das capacidades criativas do homem. Para Deleuze e Guattari, criadores do conceito de agenciamento, a Natureza é Fábrica. Como em Spinoza, fábrica de si mesma e de tudo que dela decorre. E o que produz essa fábrica? Real, nada mais, nada menos do que o próprio real como produto de sua Potência absoluta de Acontecer. Ora, se a natureza não é algo dado, mas uma realidade que não para de produzir-se a si mesma, também as partes que a compõem e dela participam não param de ser produzidas e de participar da produção de si mesmas.

E se nós somos partes efetivas dela, não há sujeito ou natureza humana natural já pronta, nem mesmo em progresso ou processo de melhoramento ou reforma de uma essência original, como querem moralistas, racionalistas e humanistas. Também não podem haver objetos ideais ou valores universais que permaneceriam imutáveis num plano que a transcenderia. A natureza humana, seu meio específico e seus objetos estão em processo ininterrupto de modificação e produção de si nos devires, tempos e movimentos reais que atravessam a existência desse animal que se auto-denomina homem. A ideia de uma forma humana espiritual e superior à natureza emerge como uma ilusão de consciência, a qual pressupõe um plano de realidade separado como origem da representação do real e que legitimaria o corte homem/natureza, cultura/natureza, indústria/natureza.

A virtude dessa forma se manifestaria ao longo de sua história, no desenvolvimento de suas relações internas, desdobrando-se em uma prática moral cada vez mais desinteressada e em um conhecimento racional e científico cada vez mais universal, apesar de cada vez mais especializado. Essa forma racional de conhecer e modo moral de se conduzir tornam-se suportes de uma suposta autonomia formal, constitutiva do lugar da autoridade, autorizada e autorizante, que fariam das forças mais nobres da vida função de valores de progresso, desenvolvimento e aperfeiçoamento da Forma-homem, cujo sentido é em última instância determinado pelas forças constitutivas do tipo de poder que ela integra: nesse sentido, a organização de um corpo eficiente e a formação para uma capacitação de um sujeito competente tornam-se o horizonte comum das práticas do homem sobre si mesmo. Ora, se a educação é a porta de entrada para a inserção da vida humana nesse processo de formação, já adivinhamos sob quais pressupostos ela opera. Na verdade, todo esse plano de organização de uma formação social pressupõe um diagrama virtual e não formal de relações de forças que trabalha de modo microfísico e micrológico, atualizando-se ou concretizando-se através de agenciamentos de poder, que constituem-se como dispositivos ou máquinas concretas sociais de produção de subjetividade e de produção de individualidade. Uma verdadeira fabrica de modos de subjetivação, de individuação e de objetivação.

Esses a priori formais em verdade são resultados de compostos de forças, produzidos a posteriori. Em outras palavras, foi preciso antes que essa Forma ou Estrutura humana fosse produzida ou inventada (não por Deus ou por uma Natureza natural ou Humana em evolução espontânea ou inteligente) e constituída como condição de produção de Pessoas ou Sujeitos (morais e de conhecimento). E conforme a natureza ou qualidade das relações de forças que a compõem e que ela integra, ou conforme a natureza ou qualidade do conjunto afetivo (ações e paixões) que tece uma formação de um corpo social que a sustenta e que ela unifica, essa Forma regula o grau de captura ou de soltura do desejo. Por aqui se pode avaliar a qualidade dos modos de viver que essa formação de poder necessita e/ou é capaz de suportar, que se constitui nela e que ela constitui como legítimos modos de desejar e pensar normais. Durante demasiado tempo a modernidade permaneceu prisioneira da ideia de uma consciência em si como entidade fundante do conhecimento, da verdade científica, e também da noção de uma consciência universal do homem capaz de ultrapassar e se sobrepor aos modos ideológicos de saber e aos seus interesses sempre parciais de poder, com suas armadilhas e modos de ocultar, manipular e usurpar. Deixamos nos aprisionar por esquecimento do que nos torna cúmplices, cegueira, ilusão ou covardia? Porque insistimos em não perceber que a verdade objetiva tanto quanto o sujeito do conhecimento, seu lugar e forma de emissão de verdade, autorizado e autorizante, são produtos de um agenciamento maquínico que serve de função a algo que captura a vida de fora? Será que nosso modo de viver não está ligado a um agenciamento de poder que ao mesmo tempo nos captura e separa de nossas potências próprias de criar realidade, mas também nos sustenta e liga nossa impotência ao poder de reproduzir e transmitir ordens? Qual vantagem recebemos como recompensa pela concessão que fazemos?

Quando Foucault, inspirado em Nietzsche, veio nos mostrar que formas de discursos e formas de sensibilidade constituíam-se como verdadeiros dispositivos de produção de corpos submetidos e mentes assujeitadas, que operavam fabricando subjetividades e corporeidades, nas famílias, escolas, quartéis, fábricas, hospitais, prisões, universidades etc, logo quis-se reduzir o alcance dessa desconstrução e do papel desses dispositivos a modos econômicos de produção ou a aparelhos ideológicos de Estado, sequer supondo que ao contrário, eram os modos econômicos e regimes políticos que em certo sentido dependiam de regimes de sensibilidade e regimes de linguagem. O conceito de agenciamento torna-se então um operador de primeira ordem, uma vez que remete ao modo concreto de produção de realidade, em qualquer dimensão, material ou imaterial, e não à uma verdade que representaria o real.

O agenciamento é antes de tudo um ACONTECIMENTO multidimensional. Todo agenciamento incide sobre uma dupla dimensão: 1) uma dimensão relativa às modificações corporais (ações e paixões) ou estados de coisas que efetuam um acontecimento, remetendo-os a uma formação de potências; 2) uma outra dimensão relativa às transformações incorporais ou enunciados de linguagem (atos) que efetuam o acontecimento na sua face incorporal e que remetem a um regime coletivo de enunciação. Estas duas dimensões são necessariamente atravessadas por um duplo processo e um duplo movimento: processo de descodificação das formas (forma própria do regime corpóreo e da forma própria do regime de signos ou da linguagem); e um movimento de desterritorialização ou de dessubstancialização das substâncias (das substâncias corporais ou coisas – estados do movimento – e das substâncias incorporais ou palavras – estados do sentido ou do tempo). A forma dos corpos e seus estados remete a lição das coisas. A forma do discurso remete a lição das palavras. As duas dimensões estão em pressuposição recíprocas e se atravessam e se conjugam, apesar de suas formas próprias heterogêneas manterem-se irredutíveis e autônomas.

Esse atravessamento é provocado pela variação dos movimentos de desterritorialização e processos de descodificação do desejo, e faz mudar ora o estado das coisas e a condição de sensibilidade, ora o sentido de mundo e a condição de dizibilidade. Nessa medida, compreendemos que uma linha de fuga (ou de acontecimento) absoluta e virtual atravessa toda experiência real, pondo em variação permanente suas condições, e portando condicionando todo o processo de apreensão e produção do real. Assim também coloca-se em variação as condições de ensino e aprendizado: essa linha de variação virtual acaba por constituir, conforme o agenciamento que a efetua, os limites do que pode ser sentido, movido, dito ou pensado. Se um agenciamento liga, conecta, conjuga, compõe, combina, produz, fabrica, reveza, distribui e consome corpos e mentes, movimentos e pensamentos, então podemos colocar assim o problema da educação: a qual tipo de agenciamento acoplamos a vida que queremos ensinar e criar e a nossa que pretende ensinar? Se as ligamos a um agenciamento negativo de poder, nossa educação será uma EDUCAÇÃO PARA A OBEDIÊNCIA. Se as ligamos a um agenciamento afirmativo de potência, a educação que teremos será uma EDUCAÇÃO PARA A POTÊNCIA.

3 Comments

  • Pedro Omar Lacerda Delgado
    23 de setembro de 2016

    Muito interessante!

  • Fao Miranda
    30 de abril de 2022

    olá, no 2o. paragrafo, a palavra é Dever ou seria Devir?

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