fbpx
Ler outros textos

Formação Pensamento Ocidental – Aula 20/32 – Leibniz e a singularidade

Luiz Fuganti

Participante: dá para falar de intensidade, quando falamos do atributo Extensão? O que é?

É um modo no atributo. Vamos usar uma imagem bem simples: o atributo é o ambiente do corpo, o atributo Extensão é o meio do corpo.

Participante: que está entre aquela coisa do lento e do veloz.

Isso, velocidade e lentidão, movimento e repouso.

Participante: tem aí, então, um território demarcado ou um limite.

Sim e não. Aliás, essa é a grande sacada de Espinosa, já a partir de uma ideia que Duns Scot inventa chamada distinção formal, e que vai ser uma das poucas ideias que Leibniz vai usar de Espinosa, também. O atributo é realmente distinto, mas ele é realmente distinto na expressão, na forma; ontologicamente ele é uno. Como seria isso? Eu dei um exemplo bem simples com o planeta Vênus: o planeta Vênus seria o ser; Estrela Dalva seria uma maneira do ser, Estrela da Tarde seria uma maneira do ser. Então seriam duas maneiras de ser ou dois atributos do mesmo ser. Então esses dois atributos são realmente distintos na forma de expressão, mas eles não dividem Vênus em dois seres.

A mesma coisa o atributo Pensamento e o atributo Extensão: eles constituem a natureza de Deus ou da Natureza Naturante, só que eles não dividem a natureza em duas – é a mesma natureza que se expressa num e noutro ao mesmo tempo, ou em seus infinitos atributos. É por isso que essa natureza é absoluta, ela é mais do que infinita – ela é absoluta porque ela tem infinitos atributos que, por sua vez, são infinitos.

É infinito: então não é limitado. É infinito e ao mesmo tempo é distinto; é infinito no seu gênero, na sua forma, no seu meio; então a Extensão é infinita e, por isso, é autônoma. O corpo é absolutamente autônomo, ele não depende do pensamento e nem o pensamento depende do corpo; no entanto uma modificação se dá sempre simultaneamente em todos os atributos. Agora, você pode apreendê-la mais num do que em outro, isso pode acontecer; às vezes você pega essa modificação via ideia, via atributo Pensamento, ou via Extensão. E em ambos os atributos – Extensão e Pensamento -, na medida em que eles são infinitos, eles têm o mesmo estatuto, então um não é superior ao outro; se é infinito, não tem como um limitar o outro ou interferir no outro.

E o que se passa nos atributos são as modificações; as modificações é que são as intensidades. Os modos é que são as intensidades. Modificações, afetos ou afecções da substância.

Participante: quando você fala “modos”, são modos do atributo?

Modos do atributo ou modificações da substância.

Participante: então existem modos do pensamento? O pensamento é um atributo.

A imagem é um modo de pensar, imaginar é um modo de pensar. É um modo do atributo

Pensamento.

Participante: me veio uma ideia quando você estava falando sobre o exemplo de Vênus, Estrela da Manhã e Estrela da Tarde, que é a mesma substância, vamos dizer assim, e que recebe dois atributos ou mais.

Na verdade, ela é um modo, eu só fiz uma analogia bem sem-vergonha; o exemplo às vezes limita e às vezes até confunde; eu prefiro ficar no abstrato, muitas vezes.

Participante: me ocorreu a seguinte ideia: os seres da natureza, os diferentes modos em que a natureza se apresenta, são seres, a própria natureza, são modos.

São modos e o atributo se expressa neles. O puro expresso neles é o atributo ou o sentido.

Participante: eu estava lendo o trabalho do Maturana e do Varela que diz o seguinte: quando você olha para uma coisa, você vê segundo a sua estrutura. Então aquela manifestação que você está vendo é segundo o que você é.

Isso se você estiver no estado de corpo ou de alma; se você estiver reduzido aos seus estados, você projeta no outro os teus efeitos como sendo a causa final da ação do outro. É a confusão de consciência. Na realidade, Leibniz vai dizer a mesma coisa, nesse sentido: a lei das séries é exterior à mônada. E em Espinosa o atributo é exterior ao modo, também; aliás, não é que ele é exterior, ele é independente, ele é autônomo.

Participante: ele se manifesta no modo.

Ele se manifesta no modo, mas não se reduz ao modo. Ao contrário: na relação de modo com modo, o atributo é a própria noção comum. Mas quando você atinge a essência, o atributo vira essência também; aí você atinge a essência do atributo. Você pode atingir a essência do corpo como a natureza de Deus, em Espinosa; isso é uma heresia para os cristãos: imagina se Deus vai ter corpo!

Deus de Espinosa tem corpo na essência e ele está no corpo o tempo inteiro, o corpo é imanente a Deus. Então no momento em que você atinge a essência do atributo Extensão, você atinge a essência do atributo como constituindo Deus, a essência de Deus. Aí você atinge a potência infinita do atributo; aí você vai na potência do atributo e não na expressão; a expressão ainda é uma noção comum. Digamos assim: a expressão é superfície e a potência é profundidade. A intuição atinge a potência; e a razão ou o entendimento – o que ele chama de razão por entendimento – apreende a relação e a noção comum, que é a condição de relação.

Participante: eu estava pensando um pouco naquele livro que você trouxe de etologia – a vista do inseto, a vista do ser humano, formas de ver. Cada um tem a sua forma de ver. A estrela que está lá é uma estrutura que está lá; mas à tarde ela é uma coisa, de manhã ela é outra, à noite ela é outra. Eu estava tentando estabelecer uma relação com isso – diferentes formas de se ver a mesma coisa, como naquele livro que você trouxe na aula passada: a forma do inseto ver, a forma do ser humano ver e a forma de outras estruturas verem a mesma coisa. Então essa mesma coisa seria uma essência e esses modos estão vendo de formas diferentes.

Sim e não. Sim no seguinte sentido: tudo se passa no interior de um atributo; então é o mesmo atributo. Quando você capta o atributo, sim. Mas na medida em que você vai singularizando a relação, e a relação se torna absolutamente próxima ou imediata, a condição daquela relação é uma singularidade; então você só vai ter aquela expressão naquele encontro. Ainda que essa expressão ressoe com outras e outros possam até acreditar que veem a mesma coisa, mas não veem a mesma coisa. É sempre um diferencial irredutível. Nós vivemos num mundo completamente singular, os mundos são completamente singulares; no entanto, nós temos um plano comum de imanência e de composição.

Participante: e essa foi a sacada do Espinosa.

Isso. A univocidade do ser. O ser é o mesmo.

Participante: é a nervura, é onde encontra. É isso?

É. E o que nós vamos chamar em Leibniz de linha. Agora, a potência que se expressa em cada singularidade em um sentido, também, é a mesma. Se ela vai ao limite do que ela pode, é a mesma que um ou que outro pode ver. Ou seja, é a mesma na afirmação; o único mesmo que existe é na afirmação. O resto todo é diferente. Então é aí que você diz “eu vejo a mesma essência que o outro”.

Participante: todas são diferentes porque são singulares; agora, se elas estão se expressando na máxima potência, aí é o plano comum.

É comum e ao mesmo tempo é o mais singular; é simultaneamente as duas coisas. É por isso que eu disse sim e não. Na afirmação é o mesmo ser e naquele encontro ele é único, ele se expressa daquele jeito.

Participante: são dois atributos que o ser humano pode conhecer, mas são infinitos. Nós só conhecemos dois atributos.

Na realidade, quando você encontra o infinito, você conhece todos.

Participante: esse atributo já é infinito.

Ele é infinito, mas nós estamos na finitude. Quando estamos nos estados de corpo e de alma, não tocamos o infinito, ainda que ele nos envolva, que ele se expresse em nós apesar de nós, mas não colamos no infinito, não montamos no infinito.

Participante: isso vai remeter ao ultrapassar do determinismo estrutural.

É, você só ultrapassa quando você toca o infinito.

Participante: porque se coloca a estrutura como um determinismo. Ela determina o seu ver, ela determina a maneira como o mundo entra, como o mundo sai.

Exato, mas essa estrutura tem vários níveis, várias camadas, vários estratos ou várias dobras, como diria Leibniz: ela se dá ao mesmo tempo no indivíduo, no social, no religioso, no econômico – ela atravessa vários planos. Então ela é uma estrutura mais ou menos abrangente, segundo o nível de relação que o indivíduo estabeleça com a coletividade ou com a natureza. Então ela varia como estrutura perceptiva, digamos assim. Mas no fundo ela se dissolve no toque de qualquer intensidade. A intensidade desestrutura. É por isso que a intensidade gera medo, gera pânico, gera pavor: porque ela te puxa o tapete, mas ela te puxa o teu falso tapete, o teu falso solo, o teu falso fundamento.

Participante: segura na broxa que vão puxar a escada.

É isso. É a vertigem da altura, porque você se cola numa altura, você se pendura numa altura. É o que Artaud chama de cu de rato morto pendurado no teto do céu. Quando o céu desaba numa superfície, se você se entrega a essa superfície você percebe que a vertigem se dá de modo lateral e não mais numa linha vertical. É na lateralidade. Você cai num campo expressivo, você cai no estofo do real, mesmo, daquilo que é composto o real; você não precisa mais de representação, porque a representação é ainda a que se liga às alturas. É a questão das ilusões de consciência, são as ilusões de causas finais, de causas livres ou dos decretos livres e a das ilusões teológicas; são as mesmas ilusões. E essas três ilusões é que formam um estrato ou um plano transcendente de organização, esse teto, esse céu onde o desejo, separado do que ele pode, se pendura. Ele se pendura ali, investe ali, espera a salvação dali e teme os castigos dali. Porque isso organiza tudo, esse é o solo, esse é o fundamento – na realidade o solo, o fundamento, é um teto. Se você cai no atributo, você cai na superfície.

Participante: desejo separado do que pode causa impotência na pessoa.

Não, ele já está impotente; não é que causa, ele já está na impotência. A causa é um mau encontro e o que você faz com esse mau encontro. É por isso que tudo está no modo de vida, é o modo como você se encontra e o que você faz com esse acontecimento. É por isso que a moral estoica ou a ética estoica, que diz “seja digno do que te acontece” é fatal, e ela elimina todo tipo de ressentimento. Fique à altura do acontecimento; às vezes a vida é demasiado grande, demasiado intensa, demasiado imensa para um corpo frágil ou para um pensamento confuso; e aí esse corpo frágil ou esse pensamento confuso pode se fixar ou perder o movimento. É por uma impostura, sempre, que se perde o movimento, é sempre por um mau jeito; aí ele já moraliza, já está na impotência e já precisa desse plano transcendente de organização. O próprio estado de corpo dele já é o estofo do plano transcendente de organização; o afeto já fixado, as paixões tristes já são os conteúdos e as formas dos julgamentos que ele começa a emitir ou que ele recebe. Quanto mais ele sofre, mais ele é julgado por fora, mas ele quer julgar também.

Participante: esse descolar dessa estrutura em que a grande maioria fica, que é um trabalho, possivelmente, dos psicoterapeutas – arrancar essa pessoa daqui e colocá-la na potência.

Sim e não: uns fazem, outros fazem o contrário, alimentam mais isso. Aliás, eu posso te garantir que a maioria dos terapeutas investe neste plano transcendente de organização – questão de mercado. É preciso descobrir ou inventar um jeito de liberar a vida e não morrer de fome; é um problema ético. Mas não ter medo de liberar e perder o cliente; o cliente tem que ser autônomo, o mais cedo possível.

Participante: uma terapeuta disse para um paciente que dizia que estava com depressão: “você não está com depressão, você está com tristeza profunda. Só que é o seguinte: nós vamos resolver este problema, só que você vai ficar pouco tempo comigo. Você tem duas opções: você fica um tempo curto ou um tempo médio, não tem um tempo longo. O tempo médio dela seria 3 meses, mais ou menos. Para resolver o problema você vai ter que tomar pancada”. Provavelmente seria cair mesmo nesse plano e encarar. Eu acho que é uma honestidade profunda.

Porque o terapeuta que precisa disso para viver já está pendurado nesse teto do céu. Esse que é o problema. Então ele próprio precisa de terapia. Por isso Lacan é tão interessante, tão sedutor: o tempo lacaniano é um tempo muito interessante para o capital.

Participante: a questão do cair viabiliza uma expansão?

Viabiliza, é a condição da liberação; é uma espécie de uma violência, ou, sendo mais exatos ou rigorosos, é uma crueldade. Saber exercer a crueldade e desinvestir a piedade. O que é a piedade? É fazer com que você invista de novo nesse plano porque é ele que te dá a ordem – senão você fica confuso, você fica caótico, você fica desordenado, você fica louco, você fica fraco. Então esse plano te salva, ele te dá ordem; é a piedade em relação a uma vida incapaz de ter ordem própria; toda a terapia que faz esse tipo de investimento é uma terapia piedosa. E contra a terapia piedosa sugerimos uma terapia cruel – sem ser tratamento de choque, violência, coisas assim, mas encarar o real, encarar essa covardia diante da existência, destituir ou desvalorizar essa impostura. Porque se valoriza essa impostura como sendo a postura do homem de bem, a postura correta, a postura que vai levar à salvação ou à felicidade ou ao progresso ou à riqueza ou seja lá ao que for. Então é desqualificar essa postura como sendo realmente uma impostura; isso é uma impostura, isso é uma obscenidade com a vida. Isso é completamente antiético, isso é moral, e toda moral é obscena.

Participante: é uma postura antiestética.

Claro, se é moral é contra a estética, porque a moral não aceita uma parte da estética e ela submete a outra parte da estética às formas desse plano transcendente de organização. Então o belo é o belo platônico – é uma estética platônica. Precisamos liberar a estética. Leibniz ajuda muito nesse sentido.

Dados históricos muito rápidos: Leibniz nasceu na Alemanha em 1646 e morreu em 1716. Viveu 70 anos. Leibniz é um pensador muito ambíguo e muito eclético na aparência; como diria Deleuze, é um pensador de fachadas. E, aliás, isso é uma das sutilezas que leva Deleuze a associá-lo ao barroco: Leibniz seria um pensador barroco. Ele está absolutamente ligado às questões sociais e políticas, ligado a corte, ligado aos juristas, ligado aos homens de Estado. E é completamente diplomático, ele se safa sempre dos conflitos e intrigas da corte ou entre reinos, ele sempre tira de letra, escreve obras específicas para elogiar ou valorizar os bons costumes, os valores estabelecidos; e a obra forte dele não aparece, não é publicada. Essa obra mais forte dele só é publicada postumamente. E ele é um pensador que chega a dizer que a filosofia não deve perturbar os valores estabelecidos. Nietzsche fica horrorizado com isso, Nietzsche desce o cacete no Leibniz.

Vamos eliminar o juízo e vamos entrar na obra para vermos o que tem de interessante, o que realmente tem de reacionário, o que compromete e o que não compromete. Precisamos nos associarmos com aliados e os aliados são impessoais, os aliados são ideias, são intensidades, são linhas, são canais, velocidades, lentidões, movimentos – esses são os nossos aliados. O aliado é o acontecimento.

Então em Leibniz acontece muito, ou muitas alianças podem ser feitas com o pensamento leibniziano; porque no fundo, como diria Deleuze, mesmo Leibniz, sendo um pensador de fachadas, tem um lado que é ligado ao barroco chamado a câmara escura, ou o dentro, que estabelece uma dimensão de liberdade ou de lapidação do ser extremamente sutil, extremamente refinada; poderíamos dizer que Leibniz é inventor de uma micrológica e de uma microfísica. E de modo a, em certo sentido, ultrapassar a própria representação; em outro sentido, como ele é um pensador de fachadas, ele também tenta salvá-la, levando a representação para o infinitamente pequeno. Ele tenta salvar a representação quando ele leva as séries para uma unidade, para uma identidade ou para um centro; ele centraliza todas as séries com a ideia da chamada convergência – há uma convergência absoluta de todas as séries. Precisamos saber o que é série, precisamos saber de uma série de coisas.

Participante: parece que tem fachadas e coisas escondidas atrás, e não que essas fachadas façam parte de uma multiplicidade.

Essa ideia de fachada vai ficar muito clara quando falarmos de dobra – existe uma dobra voltada para a matéria e uma dobra voltada para a alma, digamos assim. Então daqui a pouco desenvolvemos um pouco isso.

Leibniz associa ou descreve o mundo como um edifício com dois andares. O andar de baixo é o andar do corpo, o andar da matéria, o andar da sensibilidade; o andar de baixo é cheio de janelas e de portas de entradas e de saídas. O andar de cima não tem janelas e não tem portas, é um espaço fechado e escuro. O mundo seria uma casa com dois andares cujo andar inferior é ligado à matéria, ao corpo, e o andar superior seria o andar da alma, o andar espiritual, o andar metafísico. Então você tem um plano metafísico, que seria o andar de cima, e um plano físico, que seria o andar de baixo.

Mas o que é interessante em Leibniz é que é o mesmo mundo, não são dois mundos, como em Platão ou como em Descartes, é o mesmo mundo; ainda que Leibniz sutilmente preserve a eminência de um sobre o outro. É o que eu falei no início, é extremamente ambíguo e tem uma série de obras de Leibniz que são inacabadas, então elas sugerem muitas coisas. E como não lidamos com pessoas ou com uma obra fechada em si mesma, nós lidamos com ideias ou com acontecimentos, o que nos interessa são essas ideias, esses acontecimentos, esses encontros que liberam a vida. Inclusive fazer Leibniz dizer o que ele não disse – por que não? Às vezes ele sugere coisas muito interessantes e não foi longe o suficiente; vamos fazê-lo ir.

É essa a atitude do pensador porque o pensador não é um historiador, não é um comentador; quando você faz o comentário de uma obra você se reduz a uma consciência, você se reduz à história se você fica simplesmente comentando como ela se estrutura, como ela se compõe, como ela funciona; mas entrar na obra mesmo e pensar com a obra é completamente diferente, já é fazer uma nova obra. Por isso que Deleuze, quando pensa Leibniz, ou Espinosa, ou outro qualquer, ele pensa com e pensa no interstício; ele cria, ele produz, ele inventa, ele não é um comentador. Temos vários comentadores – por exemplo Bertrand Russel que faz muitas confusões com Leibniz; o próprio Gueroult, ainda que seja mais refinado, fica ainda prisioneiro a uma estrutura da obra do Leibniz. Você tem outros como Michel Serres que pensam com Leibniz, o que é completamente diferente; Michel Serres abre o sistema de Leibniz de uma forma belíssima; acho que, com exceção dessa obra do Deleuze chamada A dobra ou Leibniz e o barroco, a obra do Michel Serres é a mais bela obra sobre Leibniz, sobre o sistema de Leibniz.

São pensadores, então, que se diferenciam porque eles não estão preocupados em saber o que Leibniz disse, exatamente, mas eles captam o movimento do pensamento, eles estão no movimento – e é isso que interessa. É por isso que Leibniz é tão rico, apesar de ser um pensador de fachadas, de acordos, de negociações, um diplomata por excelência, porque é um político.

Participante: quando você fala “fachada”, eu não consigo compreender. Fachada é só para inglês ver?

É, mas ele joga o tempo inteiro, ele é um jogador. Só em dizer que a filosofia não deve perturbar os valores estabelecidos, quando a obra dele desmonta Descartes, desmonta Aristóteles, desmonta a escolástica, atinge a singularidade, atinge infinitos singulares por vias inauditas que ele inventou, inventa o cálculo infinitesimal, diferencial integral, ao mesmo tempo em que Newton inventa de uma forma diferente. Ele, na realidade, joga politicamente quiçá para executar a sua obra na sua mais plena força, na sua mais plena potência. Então é melhor abolirmos o juízo e entrarmos na obra.

E, claro, há muitas coisas com que não vamos concordar – por exemplo, a ideia de uma disjunção exclusiva; vamos fazer Leibniz, com seu próprio sistema, entrar numa disjunção inclusiva. Então damos umas enrabadas nele, também. Mas se servir de Leibniz é muito interessante; de fato, o que se passa na obra dele gera uma aliança, um plano de consistência muito forte; acho que vale a pena. Só que não vamos nos deter muito, eu vou só pincelar algumas coisas fundamentais.

Então voltando à ideia de que Leibniz divide o mundo em dois andares – não dois mundos, mas o mesmo mundo dividido em dois andares. O andar de baixo seria o andar do corpo, da matéria, da sensibilidade; o andar de cima é o andar do espírito, da alma ou dos elementos incorpóreos e metafísicos. O que divide um andar e outro? Não é uma estrutura, não é um plano de representação; é uma linha, uma linha que só é linha porque é movimento. O ponto dessa linha é apenas uma determinação de uma extremidade, mas uma extremidade é sempre interrupção de uma série. Então o ponto nunca é uma parte isolada como um átomo e nem uma parte infinitamente divisível como um instante de Descartes, que mantém a ligação entre um instante e outro numa exterioridade. A linha ou o ponto, em Leibniz, é uma linha ou um ponto de inflexão.

Por que inflexão? Porque a linha reta é uma abstração. O universo, ou o pensamento, o corpo, a matéria, os fluxos, tudo que se passa no universo, se passa de modo que haja uma curva e uma tangente, curva e tangente, curva e tangente. No ponto onde a curva toca a tangente, quer dizer, na própria tangente à curva, eu posso dividir aquele ponto e encontrar uma nova curva e uma nova tangente; e quanto mais eu subdivido, mais curvas e tangentes eu encontro. Então eu atinjo uma variação infinita, eu ultrapasso a variável de uma curva e a constante de uma tangente ou de um ângulo, eu entro numa variação infinita; o ponto ou a linha de inflexão é uma variação infinita. Então em cada elemento que eu apreendo há uma inflexão, há uma curvatura, há uma dobra; o universo funciona sempre por dobraduras, tudo por funciona por dobraduras. Então as partes em Leibniz não são nem átomos nem instantes, são dobras de movimento, dobras de matéria, dobras de tempo. As dobras de tempo nós vamos chamar de dobras propriamente ditas, as dobras de matéria nós vamos chamar de redobras; mas, no fundo, são as mesmas coisas, só que uma é relacionada à matéria e outra é relacionada ao pensamento.

A separação então entre os dois andares: imaginem um S; os dois lados côncavos no interior do S vão formar um lugar, um puro lugar vazio, mas que é imediatamente preenchido, segundo Leibniz, por aquilo que ele chama de mônada. Eu já estou dando um salto aqui; eu não ia já introduzir a mônada mas vamos fazer assim, uma vez que só vamos pincelar o Leibniz, é melhor já irmos nomeando.

Essa imagem ajuda muito: você tem tangentes; você vem subdividindo – e ele, inclusive, inventa o cálculo infinitesimal – e você vai ter infinitas tangentes ou infinitas curvas; ou seja, você vai ter uma variação infinita na própria curva. Então a curva não se fecha num círculo, como em Platão; a curva é sempre centrada. Vamos fazer uma espécie de gênese estática do mundo; a gênese dinâmica se dá simultaneamente. No fundo essa linha é o que separa os dois andares. Isso aqui é um espaço, é um lugar, é um foco; na realidade, é o que Leibniz chama de ponto de vista; então tudo, no universo leibniziano, é ponto de vista ou perspectivismo – há um perspectivismo fundamental no universo leibniziano.

Novamente as tangentes e as ortogonais a essas tangentes (ortogonal é um ângulo reto, essa linha é ortogonal a essa). Isso aqui é tangente à curva, ela toca minimamente a curva; então você forma, nessa curvatura, um centro que é definido pela equidistância das linhas ortogonais à infinidade de tangentes. E você forma aqui um lugar. Esse lugar já é a condição do dentro; isso que é uma dobra de matéria. A questão é saber: isso aqui se fecha? Ainda que Leibniz diga que a mônada é fechada – vamos ver em que sentido.

Participante: se se fecha, aí se repete tudo novamente.

Você cai na forma pura. Aqui eu estou na linha, não estou na forma. Isto aqui é condição da forma; a forma é real também, mas a forma é secundária em relação a essa linha com a variação infinita. A linha com a variação infinita gera as constantes e as variáveis, mas a variável não é a variação, a variável já é um efeito de uma relação entre elementos: ora você fixa um e os outros são variáveis em relação a ele, ora você o deixa móvel e o liga aos outros elementos; vira uma forma fixa, uma constante, e você liga essa forma às variáveis. Então variável e constante já são secundárias em relação a essa variação infinita.

Então o que ocorre? Essa linha de variação infinita, na realidade, é o que Leibniz chama de linha de inflexão; a linha de inflexão ou o ponto de inflexão, que é sempre um ponto em movimento.

Então ele forma uma linha.

Participante: o que você chama de inflexão?

Inflexão é o mínimo desvio. Essa é uma linha reta; um desvio mínimo já é uma inflexão. Você flete.

Participante: é a dobra.

É, já é uma curvatura, uma dobra. Agora, a questão é que a curvatura vira infinitesimal e você vai num único ponto… é por isso que Leibniz diz: num vértice de um cone você tem já todas as figuras que você obtém seccionando esse cone: se você faz uma seção que seja ortogonal, você tem um círculo; se você faz uma seção em diagonal, você vai ter uma elipse; se você faz uma seção ortogonal e uma outra seção no outro sentido do círculo, você tem uma hipérbole ou uma parábola. Então isso tudo está contido já no ponto de vista. Este ponto de vista é o lugar, já, que é determinado pela curvatura. A curvatura, ou essa variação infinita, compreende já todos os ângulos ou figuras que vão estar sob a condição desse ponto de vista; então esse ponto de vista traz uma capacidade de apreender uma variedade de formas, de linhas, de figuras, mas que encontram a condição de realidade no próprio ponto de vista. O que é interessante é que no ponto de vista eu não tenho um sujeito.

E, fora, haveria o mundo. Vejam no desenho: uma curvatura, outra curvatura. Você tem um ponto de vista, você tem outro ponto de vista, você tem outro ponto de vista, e você forma um encontro de curvaturas. E cada curvatura é côncava e convexa ao mesmo tempo; o convexo leva para o fora, o côncavo leva para o dentro. A linha ou a laje, o elemento que separa os dois andares, no fundo é a linha do tempo; seria uma linha metafísica. A linha do tempo dobra a alma e redobra a matéria; a linha do tempo, no fundo, é sempre dupla porque há uma relação topológica de um ponto de vista com outro ponto de vista, há uma interação, há uma vibração. Agora, em um ponto de vista não tem uma identidade.

Participante: aquela fita de Moebius: ela entra e sai ao mesmo tempo.

Participante: você traz dois grandes símbolos da Idade Média: o labirinto e o anel.

Os estoicos já tinham inventado isso; é por isso que Leibniz, nesse sentido, reinventa o acontecimento pela segunda vez; depois ainda tem Whitehead.

Participante: depois o grande reinventor é Deleuze.

Agora, a lógica do Leibniz é uma lógica do acontecimento. O que existe aqui? Uma espécie de vale. Ou até uma ogiva.

Participante: você está falando do contato das duas linhas, do toque das duas linhas, a tangência.

É. Isso. E existe um ponto aonde elas convergem, existe o ponto onde elas divergem. São as duas sínteses fundamentais das séries leibnizianas, que Deleuze vai usar muito numa obra chamada Lógica do sentido. Disjunção e conjunção. Ou o que Leibniz chama de divergência e convergência. E existe também a conexão, como relação de causas – você pode fazer a conexão entre dois pontos de vista.

Participante: com isso tudo que você está dizendo, você está querendo nos mostrar o que divide um andar do outro. Uma linha que não é um plano de representação.

No fundo, a linha é o que Deleuze chama de plano de imanência. Só que essa linha não tem dimensões, ela está entre as dimensões; ela tem ‘n’ dimensões e ao mesmo tempo não tem, porque ela está entre as dimensões. Ela é que é a condição das ‘n’ dimensões.

Participante: por Espinosa, é o instante em que as singularidades estão se tocando.

É o puro atributo, em Espinosa.

Participante: Agora eu quero usar Espinosa para compreender Leibniz. Como é que eu poderia ver isso na linha? Você falou que no toque há infinitos pontos; esses infinitos pontos seriam os modos.

Sim, infinitas modificações. Perfeito. É a afecção. Onde há o toque, a curva se desvia. É o clinâmen de Epicuro e Lucrécio. Sempre desvia; ela não forma um círculo, é uma curvatura.

Participante: e você viver nos infinitos modos é você estar no atributo.

Você está no plano de imanência, você está na pura potência do atributo e você toca o infinito.

Participante: essa é a nervura da Marilena Chauí.

É. existe aí uma certa rivalidade entre Espinosa e Leibniz. Leibniz visitou Espinosa um ano antes de Espinosa morrer em Amsterdã, em 1676. E Leibniz se gaba, por exemplo, de ter ensinado a Espinosa a ideia de atributo ou de distinção formal. Em 1676. Espinosa começou a escrever a Ética em 1661, quinze anos antes. Espinosa já está doente na época em que Leibniz o visita; e, na verdade, ele aproveita e rouba algumas ideias – o que é muito bom. Só que ele não foi suficientemente nobre, suficientemente ético. Ele chega a elogiar Espinosa num ou noutro ponto, mas depois ele mandar ver. Ele descamba mesmo em Descartes; Espinosa não tem muitas coisas, ele respeita, diz que é diferente, e tal. Aí existem outras brigas que se desenvolveram em torno disso, mas vamos sair desse plano.

No momento em que existe essa linha de inflexão, em que ela opera na pura curvatura, ela gera ao mesmo tempo o lugar, o topos, o espaço interno onde vai se alojar o sujeito. Mas sujeito, em Leibniz, é uma coisa muito diferente do que Descartes chama de sujeito, do que Aristóteles chama de sujeito, do que a escolástica chama de sujeito; e o objeto também. É porque a relação desse lugar com a linha que o determina como dentro define ao mesmo tempo a condição topológica do fora como lugar do mundo. De modo que a própria relação entre lugares já é esse topos privilegiado que constitui todo ponto de vista como pura perspectiva sem intencionalidade. Por exemplo, é a relação entre dois pontos de vista que, ao emergir na tangência ou bifurcação de uma curva, coloca esses pontos – que só se constituem na distância irredutível em relação à uma linha singular que cada um tem como horizonte ou condição comum do encontro – topologicamente em contato. É, portanto, a curvatura ou inflexão da linha ou do movimento que constitui o lugar como um polo virtual capaz de fazer convergir as séries do mundo. Constitui-se lugares como pontos de vista e condições de convergência – das séries do pensamento e séries do corpo ou da extensão. Eles são a condição ou, digamos assim, a regra de unificação das séries; e fazem com que Leibniz diga que o mundo inteiro é envolvido num único ponto de vista ou numa única mônada. A mônada ocupa esse lugar.

A mônada é uma ideia neoplatônica – de Plotino, Proclus, etc. A mônada é um estado do Uno, ela é sempre uma unidade numa determinada camada do ser. É a mônada que faz a comunicação entre o Uno e o Múltiplo; mas a mônada está sempre do lado do Uno. A mônada, segundo os neoplatônicos, submeteria o Múltiplo: o Múltiplo estaria reduzido a esta unidade.

Leibniz pega essa ideia de mônada e vai dizer que cada ponto de vista, na realidade, é o lugar de um indivíduo; se é o lugar do indivíduo, ele explodiu com a ideia de universalidade ou de unidade. Unidade sim, mas é uma unidade individual. E vamos romper, inclusive, com essa unidade individual, nós vamos atingir a singularidade, que é uma unidade já na univocidade do ser, que é uma unidade que afirma a diferença.

Participante: mas é único.

É único.

Participante: então é inédito.

Sempre é inédito. É esse o plano de produção de realidades – ou de efetuação do real – e de atualização do virtual. É segundo o lugar, o topos ou o ponto de vista ocupado pela mônada na relação com o mundo. Então a mônada – nessa curvatura, nessa câmara fechada na qual ela está inserida, segundo Leibniz, nesse andar de cima – faz com que a série infinita do mundo se expresse nela.

Logo, o mundo inteiro, infinito, se expressa num indivíduo. Uma ideia revolucionaríssima – ainda que Espinosa tenha plenamente isso também, mas Leibniz inventa uma outra forma de dizer isso.

Participante: porque ele traz a mônada para o indivíduo.

É. A mônada é um ponto metafísico que unifica as partes do indivíduo.

Participante: um compossível, ele fala.

Um compossível. Ela é condição de compossibilidade das séries. Agora, a lei das séries não está nela, a lei das séries está no mundo. É o puro Fora. É por isso que essa mônada fechada do Leibniz é ambígua, também.

Participante: a ideia de fazer a convergência é para não abrir.

Exato. Só que ela não é localizável; e esse não localizável da lei de composição das séries faz com que a mônada esteja imediatamente colada ao Fora, que esse Dentro esteja topologicamente ligado ao Fora. Ou seja, o ser da relação é um ‘entre’, ele não é da mônada; ainda que a mônada já seja uma dobra ou seja a condição da dobra; seria uma unidade – ele chama de alma – que envolve a dobra, que mantém a dobra dobrada ou encerrada nela mesma, segundo Leibniz.

Participante: ou que compõe a dobra.

Ela envolve a dobra.

Participante: é como uma membrana?

É como uma membrana; a ideia de membrana ajuda muito. A ideia de ovo, a ideia de semente, a ideia de embrião, de panos dobrados, de papel dobrado. Tudo que é dobra ajuda a imaginar.

Porque não é apenas uma imagem, isso já são as redobras da matéria mesma; a matéria funciona exatamente isso. O que é um embrião? Uma célula que se subdivide e vai se retorcendo e dobrando.

Totalmente topológico. O modo como isso funciona é completamente real, não é uma representação do movimento, é o movimento – mas o movimento é sempre infletido, há sempre uma inflexão no movimento, há sempre uma curvatura.

É como a relação com o universo, com o cosmos, ou com o átomo, ou com as partículas. O que é um buraco negro, por exemplo? É uma curvatura que não se mostra nunca, ela tem uma velocidade tal de condensação que ela não gera superfície, segundo outros pontos de vista. Absorve, absorve, absorve.

Então, no fundo, a matéria é sempre turbulenta. E a nossa alma também. Nós somos seres completamente turbulentos. Existe um matemático chamado René Thom que tem uma obra que eu já falei algumas vezes, mas citando apenas; chama-se Parábola das catástrofes e que produz uma matemática das singularidades e das turbulências. Na verdade, você tem sempre espirais, tipo um tornado, que se tocam em outras espirais, que por sua vez se tocam em outras e assim por diante; e os intervalos entre elas, essas formas, esses vácuos, são preenchidos por novas espirais. Ou seja, você vai no infinitamente pequeno, no infinitamente dobrável. Mas aí que está: o infinitamente pequeno não é partícula de matéria que vai se subdividindo até se esfarelar e virar um nada. É sempre uma dobra de tempo. Não é pedaço, é uma linha contínua, no fundo; só que ela se dobra com uma certa frequência, menor ou maior; e mesmo você esticando a linha, deixando-a absolutamente lisa, isso é um tipo de dobra.

Participante: fractal?

Com certeza, é totalmente fractal.

Participante: se você pegar um pedacinho dela, dentro dela ela tem todas as possibilidades de reestruturação. Aí você vai no infinitésimo daquela figura e toda a complexidade está lá dentro; se você pega outro pedaço, a complexidade está lá dentro novamente.

Então o que é a mônada? Na realidade a mônada é a própria variação infinita, ou a curvatura infinita, que é a condição exatamente desse infinitesimal e do infinito. Você vai para o infinitesimal e vai para o infinito segundo a mesma variação; mas a variação nunca é a mesma em um ponto que você analise: a síntese que você vai analisar sempre é uma síntese diferente a partir daquele ponto de vista. Porque em cada ponto em que ela se dobra, ela gera um ponto de vista. Esse é ponto.

Participante: segundo Espinosa, é o modo. E quando você está na mônada, que é a linha, é o atributo.

Pensar assim ajuda. Mas quando você estiver no pleno pensamento do Leibniz, você não vai precisar comparar. Eles se bastam por eles mesmos.

Participante: isso é uma coisa que você traz sempre aqui e é difícil para quem está sendo introduzido (ou estuprado).

Participante: iniciado. Para quem está saindo da inércia, tem um esforço. É isso: se basta, não precisa fazer metodologia comparada, filosofia comparada.

Na realidade, são planos de imanência e de composição que às vezes se tocam, se sobrepõem, se atravessam. É por isso que cada um precisa inventar o seu próprio plano, o plano não está pronto. O que faz o comentador? Uma que ele nem descobre o plano, ele nem chega lá, ele chega só naquilo que já se organizou, ele só atinge a organização – ele não atinge nem a composição nem a própria imanência. Fica na representação. É um pensamento orgânico.

Participante: eu acho que é a nossa tendência.

E quando dizemos “fabricar o próprio inconsciente”, ou “fabricar o próprio plano”, é trazer isso no modo de vida, no modo de viver e pensar; fazer com que isso seja a própria carne, a própria relação da nossa vida. A vassoura de bruxas, mesmo; ou, digamos, a nossa casca mais refinada. Fabricar uma casca como um templo da vida; que corpo e pensamento sejam levados à sua mais alta potência, segundo o refinamento dessa casca. Em cada encontro você a vai refinando, em cada produção você vai esculpindo os canais.

Participante: vai compondo e decompondo.

Geralmente você compõe; o que você decompõe é apenas um efeito de um ultrapassamento.

Então é por isso que a crítica não é igual à criação, ainda que não tenha criação sem um efeito crítico. Você sempre cria destruindo um pouco e desconstruindo; mas é que você já entra em outras ressonâncias e em outros infinitos.

Participante: nessa medida, o que você falava de espiral é o ponto de cima. Ou o outro ponto; passa perto, mas não é ali.

Leibniz ainda usa essa ideia: alto e baixo. Aqui é a espiral; imagine que aqui seja o alto e lá no fundo seja o baixo. Então esse ponto vem para cá e vai para lá. Aliás, Leibniz diz que uma das qualidades da matéria, uma das forças da matéria, é a mola; e você já tem aqui um encontro com a mola. E você tem uma força plástica, uma força elástica, uma força de fluxo. Nisso eu entro um pouco na aula que vem, nessa questão da diversidade das forças na matéria e diversidade das forças na alma.

Mas você pode imaginar então que esse ponto está lá no fundo ou aqui em cima; ou está no meio, e o que está em cima é a parte mais ampla, o raio maior da espiral, e lá em baixo também é o raio maior da espiral. Você pode fazer com que isso vibre em todas as camadas, em todos os estratos, em todas as dobras.

Aqui existe um eixo vertical. Imagine esse eixo como um feixe luminoso. Tem esse eixo e existe uma espiral em torno dele. Aí o eixo faz isso, faz isso, faz isso, faz isso – ‘n’ dimensões.

Então, na realidade, o universo, o pensamento e a matéria funcionam sempre nas ‘n’ dimensões, é completamente transversal, um atravessa no outro. Então a ideia de alto e baixo é uma ideia que podemos usar no seguinte sentido: superfície e profundidade. O alto seria a superfície; seria o duplo do acontecimento, naquela linguagem estoica; ou seria a pura expressão na linguagem de Espinosa; e seria, na linguagem de Leibniz, o alto de uma luz própria da própria mônada – a mônada que recebe a luz do infinito. Então ela iluminaria do alto, e de dentro, a câmara escura. E a profundidade seria essa matéria que tende para a superfície ou que tende para o alto. Na verdade, podemos dizer: uma potência que se efetua ou que se atualiza, uma virtualidade que se atualiza ou uma matéria que se realiza. São sempre esses planos: virtual e atual, atualização e virtualização, efetuação de um real ou de um possível.

Participante: então ele inventa não uma máquina de guerra: se aproxima muito mais de uma máquina mágica. Porque parece que o real é composto como uma mágica, no sentido de que essa relação eu-mundo traz o eixo da designação, é isso?

Ele entra diretamente no campo da expressão, é isso que ocorre com ele. A designação, a significação e a manifestação – ou eu, mundo e Deus – ele tenta salvar depois.

Participante: mas é só eu e mundo, por enquanto. Que é essa coisa que você trouxe do sujeito.

Fica uma discussão: o sujeito para um, o sujeito para outro. Mas o sujeito, para ele, é uma magia, uma mágica. Depende do ponto, depende da dobra.

O sujeito ocupa sempre um ponto de vista; então, como diria Whitehead, é um superjecto ao invés de ser um subjecto. E o objeto seria um objectio. Porque esse ponto de vista não é um solo fixo; ele é uma condição, na verdade, de apreensão ou de convergência do mundo em direção à mônada.

Então não é que o sujeito, habitando esse ponto de vista, vai dar a direção do que ele vê, do que ele pensa, do que ele apreende; não é o ponto de vista relativo a um sujeito. Ao contrário: o sujeito já é determinado pelo ponto de vista, o ponto de vista está no meio. É por isso que não é um relativismo vulgar, não é um perspectivismo vulgar. O próprio ponto de vista já é uma síntese.

Participante: por isso que é mágico.

Eu não sei em que sentido você quer afirmar que é mágico. Eu posso dizer que não é representativo.

Participante: é uma coisa de cartola. Se eu caio num ponto de inflexão, eu puxo uma coisa do mundo; se eu caio em outro, eu puxo outra.

É mágico, sem dúvida. É mais próximo do que Bergson fala, então: é uma fabulação.

Participante: isso.

Você pode entender o mundo mágico assim também. Acontece que Leibniz diz que tudo tem uma razão, tudo tem uma causa; tudo se sucede e tudo que se sucede tem uma razão de sucessão.

No fundo, é o sentido do acontecimento. E nesse sentido, não tem magia, não tem algo que venha de tudo ou que venha de nada, sem nenhum critério; há uma ordem universal.

Participante: que os vários sentidos determinaram.

Que os vários sentidos determinaram. Agora, a questão da magia que, talvez, te pegue um pouquinho, é que essa ordem dos vários sentidos é uma ordem infinita; esses vários sentidos se colam numa variação infinita; a curvatura infinita te dá uma multiplicidade infinita de sentidos. Talvez isso que te dê a ideia de magia. E você pode até viver simultaneamente esses sentidos.

Participante: simultaneidade é diferente de sucessão.

É. Então aí já é um outro processo. Aí é o que nós vamos chamar de disjunção inclusiva. Eu invento uma série única disjuntiva das outras, mas no modo de afirmação eu arrasto as outras todas e as incluo nessa única série. Uma série disjuntiva incluindo as outras todas simultaneamente. As outras coexistem nessa série, eu faço com que as outras ressoem nessa única série. Mas aqui saltamos muito, eu acho que fica melhor eu explicar um pouco mais adiante.

Participante: conclusão: a mônada é ponto de vista.

A mônada não é o ponto de vista. Ela ocupa o ponto de vista.

Participante: você estava no “envolve”, acho que paramos aqui. Você falou de “encadeamento” e “sucessão”. Estamos nessa questão de semântica; você fala: “toma cuidado porque isso não é antes, é ao mesmo tempo”. Aí traz a questão do paradoxo.

O andar de cima é uma dobra, é uma caixa, é uma esfera – não importa a figura que você utilizar aí. Ele é uma dobra que já é traçada pela curvatura do ponto de inflexão, ou a linha que se flexiona. O lugar gerado por essa inflexão é ocupado pela mônada. A mônada acaba sendo a causa da manutenção da dobra. Mas a dobra existe, de um ponto de vista estático, antes da mônada; de um ponto de vista dinâmico, a mônada vem antes. Mas essa questão do estático e do dinâmico não importa agora, porque antes e depois não é uma sucessão de tempo cronológico – há uma simultaneidade.

A mônada vê o mundo e envolve o mundo ou a série infinita do mundo segundo essa curvatura; então ela ocupa um lugar individual, ela é a condição do indivíduo; ela é o princípio de individuação. Então ela subjaz ou ela subsume tudo que se dobra na alma ou na mônada; ela dobra e dobra e dobra. Mas essas dobras, essa pluralidade de dobras – que no fundo tem uma correspondência com as redobras da matéria – são mantidas ligadas, ordenadas ou sintetizadas pela própria mônada; a mônada é a condição da unidade das dobras ou da pluralidade das dobras. A mônada é a modulação do movimento da alma ou do pensamento, no mesmo sentido em que a nossa sociedade atual é uma sociedade de controle, que só funciona no modular; não é mais uma forma disciplinar que encerra o indivíduo. É uma modulação aberta, em tempo aberto. Leibniz é absolutamente moderno neste sentido. É uma modulação porque é uma variação infinita; não é uma constante que subsume variáveis, mas é um moldar permanente segundo o movimento – molda no movimento. Então esse moldar é movimento contínuo. A mônada é essa modulação de todas as dobras da alma.

Ao mesmo tempo em que ela modula as dobras da alma, ela dirige ou rebate as redobras da

Matéria. A linha que envolve e que funda o lugar ou o ponto de vista – funda o lugar do superjecto – se desdobra numa linha que envolve a matéria, que dobra a matéria – ou melhor, que redobra a matéria. Então essa linha sempre é uma linha disjuntiva, mas ela vai formando círculos; ela vai num sentido e no outro ao mesmo tempo; aqui ela vai, vai se abrindo e formando círculos, dentro e fora; dobras e redobras, dobras e redobras – no sentido do passado e no sentido do futuro. Mas em cada ponto de um movimento, de uma curvatura, eu já tenho uma nova linha com uma nova curvatura.

Então é o absolutamente infinito. O mundo, a vida, a alma, o universo, tudo funciona segundo essa lei de dobra e de redobra. Ele dá um exemplo muito comum em relação ao mármore: os veios do mármore. O nosso amigo Orlandi fez uma belíssima tradução do A dobra, do Deleuze, mas ele fez um pequeno errinho nessa ideia de veios do mármore: ele diz que são veias do mármore. Na realidade são veios – veios de matéria, veios do mármore, como você acha o veio de uma rocha, de uma pedra, o veio de um estrato. A veia é uma redobra, mas ao mesmo tempo é uma dobra de dobra orgânica; e o veio é uma redobra primeira, digamos assim: ele é o primeiro movimento de inflexão da matéria.

O que gera estria é o veio; o veio é por onde essas linhas disjuntivas se curvam. Você tem uma linha aqui, você tem outra linha aqui, e o veio é exatamente esse elemento invertido do encontro entre duas ogivas. É esse vale aqui em baixo: isso é um veio. E a dobra está mais ligada à ogiva porque a alma, ou o ponto de vista, está do lado do côncavo; a matéria está do lado do convexo, digamos assim. Podemos associar então o convexo à redobra da matéria e o côncavo à dobra da alma.

Sempre você tem o convexo e o côncavo ao mesmo tempo. E essa linha que bifurca no fundo é a mesma linha; essa é que é a superfície metafísica, é essa linha que bifurca o tempo inteiro: ela redobra a matéria e dobra a alma, redobra a matéria e dobra a alma. Ao mesmo tempo.

Participante: a realidade é esse ‘entre’?

A realidade da imanência, digamos assim. Você tem a realização da matéria que é, já, essa redobra; a matéria se realiza ou se efetua. Vamos manter o termo realização em relação à matéria e atualização em relação à alma. A alma que atualiza o virtual e a matéria que realiza o possível. Vamos usar essas distinções que ajudam a esclarecer.

Então o que é fundamental é que isso vai gerar um plano de composição e de imanência absolutamente aberto; a obra de Leibniz, ou o universo de Leibniz, é um universo infinito e aberto. Ainda que o próprio Leibniz – não se sabe muito bem se por alguma conciliação política, se para não ferir os valores estabelecidos, etc. e tal – mantém a convergência das séries lá em cima, na ideia de um Deus que, daí, passa a ser transcendente. No fundo, quando Leibniz pensa o indivíduo, as mônadas, as singularidades, as séries, as dobras e as redobras, está completamente no plano de imanência.

Essa matéria ou esse modo de pensar gera uma consistência, gera uma instrumentalização para uma máquina de guerra extremamente refinada. Uma nomadologia nômade. Só precisamos, sutilmente, deslocar o centro leibniziano; fazer simplesmente com que ele perca a necessidade, a sua razão necessária e a sua razão suficiente – para usar os dois termos do próprio Leibniz – para que não seja necessário ter um centro e para que a ideia de centro nunca baste, nunca seja suficiente.

É quando você reencontra a ideia de disjunção inclusiva. A disjunção inclusiva é o que faz você afirmar a diferença no limite do que ela pode; e o limite do que ela pode é sempre ultrapassar-se a si mesma. Ou seja, o limite é sempre flutuante, não há um limite de fora. Esse não localizável da lei das séries do mundo na mônada é a condição da ressonância do ser ou da afirmação em todos os seres, ou em todos os pontos de vista, ou em todas as séries. Esse não localizável não é localizado e ele é um elemento paradoxal – como diz Deleuze em A lógica do sentido – porque ele não está em nenhum lugar e, ao mesmo tempo, está em todos ao mesmo tempo. Ele é a condição de comunicabilidade das séries, ele é que ressoa em tudo. Ele, no fundo, é o ser do retorno. É por isso que a lei das séries permanece exterior às mônadas; é deste modo que a mônada fica inteiramente articulada com o Fora; o Dentro da mônada é apenas o côncavo da membrana metafísica, mas é um côncavo que nunca encerra.

A fenda, no fundo, não é um abismo, não é a rachadura da superfície; a fenda é, no fundo, o intervalo ou o entre – entre dobras – que faz com que a dobra seja uma condição operatória da vida.

Você nunca encerre a dobra numa circularidade, num fechamento. É nesse sentido que o objeto perde a identidade e o sujeito também: você não tem nunca um ponto da dobra que envolva plenamente o objeto; e nem um ponto da mônada que envolva plenamente o mundo e o centro do mundo. A mônada é sempre acentrada em relação ao mundo.

A mônada traz zonas claras e escuras – daí a ideia de barroco. E a zona clara e a zona de luz são sempre uma parte intensiva da mônada que se expressa, sendo que outras partes, outros estratos, outras dobras ficam no escuro. Não significa que não são atuais ali na mônada, não significa que não estão atualizados; mas não se manifestam ou não coexistem junto com esse ato pleno que leva uma das séries. Então aqui entra o problema de saber o que seria a liberdade em Leibniz.

A liberdade vai ter a ver com a articulação ou o ponto tal, o foco tal, do acontecimento ou do lugar, do ponto de vista, onde as séries, ou a série infinita do mundo se expresse plenamente na mônada com todas as suas coexistências num único ato. O ato, na verdade, está na mônada, mas, ao mesmo tempo, ele está no acontecimento porque a mônada é acontecimento, a mônada não é sujeito. A mônada é acontecimento porque o ponto de vista é o lugar do encontro, do desencontro ou das conexões das séries; é o lugar onde tudo acontece, onde tudo se passa. É por isso que o lugar da mônada, o lugar do sujeito é puro acontecimento; se é puro acontecimento, na relação com outra mônada, com outro “objeto” ou com outro “sujeito” eu estou me relacionando com o objectio e não com o objeto, eu estou me relacionando com o outro enquanto acontecimento, eu estou me relacionando com acontecimento, eu estou em devir.

Eu acho que é isso é um esboço do que seria Leibniz e na aula que vem entramos em mais um.

Participante: quando eu entro em acontecimento, quando estou em devir com o outro… quando Leibniz comentava que as mônadas produziam conhecimento, esse conhecimento é acontecimento. Quando elas se tocam geram emergências. Essa é a colocação do estudo das mônadas, que eu nunca consegui entender. Ele falava: você pega um mônada, quando ela está em contato com outra, ela produz conhecimento.

Na realidade é o foco. Ela se encontra no ponto de vista e a sua dobra absoluta. Aqui eu usei um paradoxo. Eu sempre uso isso para falar de Nietzsche, para falar de outros pensadores: o ponto de vista é absoluto no seu ponto de vista; a perspectiva, naquele lugar, é absoluta. Mas é o absoluto daquele lugar, é o absoluto daquele foco, é o absoluto daquele acontecimento.

Participante: como você é acontecimento, que subsume uma série de coisas em si, você é um acontecimento. E com o outro você gera um acontecimento também.

Mas qual é o acontecimento dos acontecimentos? Segundo Leibniz, é quando as séries convergem, as séries todas do mundo convergem. Segundo nós, é quando você afirma numa única série todas as outras ao mesmo tempo. Esse é que é o foco.

Participante: afirmar todas as séries ao mesmo tempo é o ponto básico do nosso curso aqui.

Participante: quando você afirma a disjunção trazendo todas.

Disjunção inclusiva.

Participante: do lado, há umas 3 ou 4 aulas nós nos perguntávamos: como é que pode haver uma relação na imanência, se todas estão querendo se afirmar? Se elas estavam querendo se afirmar, é a própria razão de ser que é a afirmação das singularidades. Então não há inconsistência aí.

E podemos inclusive usar isso como arma: o que as instituições humanistas, filantrópicas, de serviço social, etc., buscam quando querem incluir uma diferença? Será que elas estão fazendo isso?

Ou elas estão obrigando a diferença a entrar num regime de exclusão? Será que, na exclusão, não se está muito mais próximo de uma inclusão libertária do que essa inclusão que a sociedade busca com os indivíduos marginais? Então quando se quer incluir, “dar direitos humanos aos desvalidos”, aos não garantidos, aos excluídos, que diabo de inclusão? Leibniz contra eles. Quer dizer, Leibniz enrabado, não Leibniz com seu Deus transcendente.

Participante: a questão da liberdade em Leibniz. Dá para aproximar da máquina mágica do Don Juan? Poder deslocar o ponto de aglutinação?

Perfeito. É aqui, esse feixe. Feixe luminoso é isso. E o encontro dos feixes ou das séries, ou o foco, você o desloca o tempo inteiro. Aí você toca o foco com a mônada no infinito. Quando a mônada, o foco e o infinito se unem, você desloca o seu ponto de aglutinação com velocidades absolutas.

Aí você entra nas dobras de luz, nas dobras de som, nas dobras de voz, nas dobras do que você quiser. Dobras e redobras simultâneas, ao mesmo tempo.

Participante: o que teríamos de Leibniz para entrar nesse ponto?

Eu aconselho que vocês leiam A dobra do Deleuze, ainda que seja um texto difícil. Mas difícil de que ponto de vista? Se você quiser entender as dobras da matéria e as forças da matéria, leia o primeiro capítulo que chama As redobras da matéria. O segundo: As dobras da alma. O Orlandi está praticamente impecável – tem uma ou outra coisinha; claro que não dá para você dar conta de tudo, é muito difícil você fazer uma tradução completamente impecável.

Participante: o Michel Serres?

Não tem o Leibniz traduzido, dele; é um livrão.

Participante: a Filosofia mestiça, dele?

Não sei, esse eu não li.

Existem obras do Leibniz mesmo nos Pensadores. Tem o I, que é Leibniz e Newton, e tem o

II que é só Leibniz. O II chama Novos ensaios acerca do entendimento humano. Existem algumas coisas em espanhol e existe alguma coisa em português.

Adicione seu comentário