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Formação Pensamento Ocidental -Aula 05/32 – Sobrecodificação e regimes despóticos (transcrição)

Luiz Fuganti

Leiam, se possível, os textos de Platão. E tem um texto que seria prioridade, o Fedro, um texto importantíssimo para ser lido. Se não tiverem tempo de ler inteiro, leiam ao menos o segundo discurso de Sócrates que é onde está o conteúdo principal. Quem tiver tempo pode ler o Político, que é outro texto fundamental, e o Sofista. De quebra tem o Banquete, tem Parmênides. Mas estes três textos são importantes na medida em que são os textos sobre o método de divisão platônico. Eles apresentam o método de divisão na sua integridade, na sua integralidade. Porque o método de divisão em Platão tem dois aspectos que já descrevemos aqui rapidamente – não entramos ainda em Platão, estou só pincelando e hoje também vamos dar mais algumas pinceladas nele e vamos falar um pouco de pré-socráticos também.

Mas falando no método de divisão, esse método tem dois aspectos fundamentais: um é o aspecto dialético e outro é o aspecto mítico. E como nós temos uma tese aqui de que a razão ocidental é fundada no mito, a questão do mito em Platão é fundamental. Platão inova um arcaísmo, então há uma espécie de nostalgia do Ánax micênico e do discurso mítico anterior à cidade grega, os delírios e os modos de produzir a verdade, anteriores à cidade grega que já narramos aqui também. No Fedro Platão vai inventar um quarto discurso ou delírio, que ele vai chamar de erótico, que vai ser o discurso de inspiração ou de possessão divina que vai levá-lo imediatamente para um plano que o comum dos mortais não tem acesso. Então ele vai inventar um estilo e um método de acesso à verdade que é um método direto, através de uma inspiração divina. E o aspecto dialético é o aspecto socrático que já é bem descrito nas relações agonísticas, nos diálogos do Platão onde Sócrates se envolve geralmente, que leva sempre a uma aporia. Porque Sócrates tem o hábito de encurralar sofistas através do estilo platônico. É o Sócrates de Platão que tem como prática encurralar sofistas. Platão depois refina essa dialética e faz com que a dialética atinja definições, mas as definições dialéticas platônicas são insuficientes: há uma condição necessária mas não suficiente para se atingir a verdade. A verdade é atingida e o critério de separação de verdade entre o bom e o mau, o puro e o impuro, o verdadeiro e o falso, é atingido com a narrativa mítica. Então são os dois aspectos do método da divisão.

Então esses três textos – Fedro, Político e Sofista – são os textos fundamentais sobre o método de divisão platônica. No Sofista Platão não define uma verdade, ele define apenas o ser do simulacro. É aí que, como diz Deleuze, nós temos a mais extraordinária aventura do platonismo. O próprio Platão nos indica a reversão dele mesmo – como Platão corre o risco de ser sugado pela vertigem do abismo que é o devir, ou que é o ser do simulacro. Então o Sofista tem como singularidade o fato de não definir nenhuma verdade, não estabelecer nenhum discurso mítico, mas de tentar encurralar de uma vez por todas o sofista. E ele não consegue. Ele chega a um ponto em que a definição de sofista é a mesma de Sócrates. É muito curioso esse texto.

Isso para vocês já começarem a se preparar para as próximas aulas. Hoje eu vou articular algumas linhas que já esboçamos nas aulas anteriores, vou dar uma certa sequência a isso e vou fazer um corte, que é o nascimento da filosofia como pensamento imanente, uma filosofia completamente imersa no plano da imanência, uma filosofia que se inventa a si própria. Há uma invenção da filosofia a partir de um autorreferencial ou de uma auto-posição. A filosofia não pede licença a ninguém – ela não pede licença à religião, não pede licença ao Estado, não pede licença à lei, não pede licença ao político, não pede licença absolutamente a nada. A não ser a um modo de realidade que atravessa o corpo e o pensamento e que se expressa de um modo absolutamente inédito que é através de invenção de conceitos. Esses conceitos ainda não são representativos porque o conceito representativo, que é a queda do pensamento na razão, já é a elaboração aristotélica em cima de uma base mítica platônica. Então a razão representativa já é um plano de transcendência que não nasce com a filosofia, não é gerada junto com a filosofia. Nossa questão sempre. Já vimos isso em relação à política que é o Estado, em relação à economia que é a moeda ou a propriedade privada, em relação à sociedade que é a lei ou o campo jurídico, em relação à linguagem que é a questão da palavra ambígua ou palavra eficaz em oposição à palavra diálogo, em relação a vários aspectos ou planos de realidade. E hoje vamos ver a formação de uma transcendência a partir da própria filosofia: onde na filosofia o bacilo da vingança, o bacilo do ressentimento, da má consciência, do niilismo, se introjeta. Como, numa filosofia imanente, emerge essa separação entre o que vamos chamar de ser e devir. Quando você separa ser e devir você cai numa transcendência. E toda a nossa questão é o velho combate, nós estaremos sempre exercitando isso em aula: é combater o plano de transcendência a partir de um pensamento em ato, que é pura potência em ato – ou seja, é algo que se passa no plano de imanência.

Então como a filosofia que emerge na Grécia a partir de um certo momento cai num movimento de transcendência. Ou, com outro sentido, com outra figuração, sobe para as alturas. É uma queda nas alturas, para usar um paradoxo. Então esta é a nossa questão de hoje. Eu vou fazer a articulação das linhas que eu já tinha descrito nas aulas anteriores com a emergência da filosofia platônica, mas, ao mesmo tempo, eu farei o desenho, ou pintando o quadro, o pano de fundo da filosofia através da invenção de si mesma com os pensadores pré-socráticos. E aí num instante, numa ocasião, num lugar, com alguns elementos, vai se inventar uma atmosfera propícia ao desenvolvimento da separação entre ser e devir. Então essa é que é a nossa problemática básica de hoje.

Sobre o nosso percurso, o que é fundamental é o seguinte: como nós não seguimos figuras ou formas, seguimos as coordenações, as conexões, as disjunções que as ideias, os pensamentos, os agenciamentos de desejo efetuam, nós estamos trabalhando com essas linhas nesse mesmo sentido de fazer com que um objeto seja efeito da conjunção de certas linhas. Então nos servimos do pensamento econômico, administrativo, religioso, político, social, jurídico e filosófico para que certas questões essenciais para a nossa problemática se elaborem de modo imanente enquanto problema. Quer dizer, que sintamos o problema de dentro, como é que ele se tece. Em função disso qualquer um é capaz de seguir por si só, porque a nossa questão é essa: que vocês, nessa matéria, adquiram autonomia para pensar a partir de vocês mesmos com essas linhas que vamos tecendo. Então estamos, de alguma maneira, passando uma maneira de pensar e aprendendo a pensar desse modo – porque se aprendemos a pensar desse modo nunca mais precisamos obedecer nada. Pensa-se por si só e com plena segurança, com absoluta autonomia, sem medo de errar. Porque o real tem uma consistência própria. Então precisamos tomar a consistência do real e fazer com que ela nos atravesse. Além de tomar a consistência que já atravessa o real, vemos como ela é produzida e como ela se produz em nós. Então criar consistência é o jeito que estamos fazendo aqui, é uma maneira diferente de se pensar e ao mesmo tempo ela está imediatamente colada à nossa questão ética que é a questão da autonomia a partir da imanência.

Então eu acho que vamos nos servir do pensamento pré-socrático na medida em que interessa para a imanência e onde se gera um ponto de transcendência. Então vamos nos servir hoje basicamente de dois pensadores pré-socráticos que são Anaximandro e Heráclito. Basicamente estes dois. Eu vou até falar do início em relação a Tales – e Anaxímenes depois -, mas o que nos interessa hoje para o nosso problema são esses pensadores. E em seguida articulamos novamente Sócrates e Platão. Depois nós vamos retornar, em uma outra ocasião, em relação a Parmênides, porque Parmênides tem duplo aspecto, ele é um pensador que gera movimentos ambíguos. Um que vai ser em direção ao platonismo – e Platão inclusive vai dizer que vai ser necessário cometer um parricídio (porque o pai dele é Parmênides, na filosofia), uma vez que é Parmênides que fala que o ser é o não-ser não é. E Platão vai ter o problema do sofista, do simulacro, da falsidade, da superfície que foge, e ele vai precisar dizer que o não-ser também é. Então vai ser o problema de Platão em relação a Parmênides. Mas Parmênides tem uma virtude fantástica, ele tem uma virtualidade fantástica e ele não se presta simplesmente a essa direção platônica, a essa apropriação platônica, que é um embuste. Parmênides é muito mais poderoso do que isso. E ele vai gerar uma linha em relação aos megáricos a ponto de os megáricos atingirem a tautologia absoluta do ser. Você só pode dizer que o ser é e não dizer nada mais. O ser é. Ele não é bom, não é mau, etc. – ele é. E só.

Então o que ocorre? Parmênides tem uma outra virtualidade que vai desembocar no pensamento megárico a ponto de se desenvolver um argumento lógico, que é o chamado argumento soberano, que vai servir de munição para os estoicos e para os antiplatônicos e anti-aristotélicos. Então você vê que Parmênides dá para as duas vias. E ao mesmo tempo na Idade Média vai ter uma interpretação do ser inspirada em Avicena, do Duns Scot, que é, de algum modo, uma interpretação no sentido da filosofia de Parmênides, no sentido da afirmação do ser – o ser é. Isso vai dar na via na univocidade do ser, uma via extremamente interessante, é a nossa via em oposição à analogia do ser. A analogia do ser é a via aristotélica e tomista.

Isso para dar um esboço, um desenho, de algumas linhas que se tecem a partir desses pensadores e, na medida em que formos nos servindo deles, eles retornarão. É por isso que não é uma cronologia, não é uma sequência linear abstrata, nós não estamos aqui passando informação e erudição – “fulano nasceu no ano tal, morreu no ano tal, viveu assim e assado”. Isso não interessa para nós. Quer dizer, isso é até muito interessante, existem várias obras para isso. Diógenes Laércio tem narrativas brilhantes sobre a vida dos pensadores. Este livro dos Pensadores é muito bom, chamado Os pré-socráticos: tem muita coisa, tem a relação dos principais pré-socráticos, a vida deles, as sentenças, os fragmentos, os aforismos, e a doxografia que são as opiniões a respeito deles e os escritos em relação a esses pré-socráticos. Então eu acho que não é o caso de ficarmos explicando um por um aqui. Então vamos ao que interessa diretamente.

A filosofia nasce com uma proposição na aparência ingênua: tudo é água – eis o enunciado de Tales de Mileto, que se não me engano viveu de 625 a.C. (ou seja, século VII) até 550, alguma coisa assim – ou seja, até mais ou menos a metade do século VI. Atingiu o seu acme, o auge dele, no início do século VI, por volta de 1590. E de Tales sabemos muito pouco, ele não deixou nada escrito, o que se tem são opiniões e escritos dos doxógrafos que citam mais ou menos o que ele falava. Sabemos que ele fez investigações no plano da natureza, da física. Ele tem um enunciado do tipo “a natureza está cheia de deuses” ou “tudo está cheio de deuses”. Mas o que interessa basicamente para nós é essa invenção que não é científica, que não é racional no sentido de uma razão representativa, mas que é um pensamento que vai direto ao absoluto, que vai direto ao infinito – ainda que eles não tenham essa noção de infinito. Mas podemos usar absoluto. Isso só a filosofia faz, a ciência não faz – a ciência pensa funções, conexões, ela pensa o modo como as coisas se encadeiam e se encaixam. Você ir nessa velocidade absoluta direto ao absoluto, isso já é um modo filosófico de pensar. Sem crença, sem recurso a um pensamento religioso, a um pensamento mítico, mas uma intuição pura em apreender a unidade de todas as coisas.

O que ele está dizendo? Tudo é Um – isso é o que ele está dizendo. Tudo é Um: os pensamentos, as ideias, os desejos, os corpos, os elementos – tudo se resume a uma única coisa. Isso vai desembocar depois no enunciado de Parmênides: que esse Um é o ser. E Parmênides vai dizer: só o ser é. Esse é um enunciado já propriamente ontológico, o que chamamos de ontologia, é a lógica do ser, onto-logia. Mas Tales, ao dizer que tudo é água, não é exatamente o elemento físico da água que interessa. É muito forte a idéia de que o Tales não estava pensando no elemento físico da água. Inclusive Aristóteles já faz uma interpretação segundo a psicologia dele, a partir de uma visão de que tudo nasce do úmido, que as plantas precisam disso, etc.; então depois de uma sequência lógica, de raciocínios científicos, Tales chegou à definição de que tudo é água. Nada mais antifilosófico do que isso. Tales foi direto à questão do absoluto. Isso é o que nos interessa aqui.

A questão do Uno gerou um problema subsequente: se tudo é Um, como nasce o Múltiplo? Como a multiplicidade, a pluralidade, nasce? Se tudo que vemos e sentimos e nos relacionamos é plural? Então imediatamente aconteceu um problema aí. A sequência do pensamento de Tales é de um discípulo dele chamado Anaximandro, [tooltip tip=”Anaximandro de Mileto”]Essas cidades onde nasceu a filosofia se situam na Jônia; não é em Atenas, não é em Esparta, não são as cidades gregas propriamente ditas, não são cidades do continente grego, são cidades da Jônia. Heráclito de Éfeso – Éfeso fica na Jônia. Parmênides de Eléia, Zenão de Eléia.[/tooltip]. Anaximandro vai dizer o seguinte: o tudo, o Um, é o ápeiron. Ápeiron é o sem limite, é o ilimitado. Peirón é limite ou perímetro, e ápeiron é o ilimitado. Então Anaximandro vai dizer que o ser ou o Uno é esse ilimitado e o ilimitado não tem forma, o ilimitado não é sensível, o ilimitado não é apreensível nas figuras imediatas do mundo. Você tem então um enunciado que te leva à desconstrução das figuras. Anaximandro está dizendo que tudo que é determinação já é resultado, já é sequência, já é um produto do ápeiron. O ápeiron é o princípio e o governo de todas as coisas. Assim como a água em Tales é o princípio, ou a origem, e o governo de todas as coisas, o ápeiron em Anaximandro é o princípio, a origem e o governo de todas as coisas.

Mas Anaximandro introduz uma questão muito curiosa: ele diz que as determinações, ou os limites, ou os elementos finitos, são uma espécie de usurpação do ápeiron. O ápeiron é uma diké, é uma justiça absoluta. E o que é gerado daí, a geração, é uma injustiça, a geração é um crime, a geração é uma hybris, é uma desmesura. Anaximandro está interpretando o nascimento e a morte, a geração, o vir-a-ser e vir a perecer, como uma injustiça, como uma adikía. Ele está dizendo que entre o ser do ápeiron e o devir das coisas determinadas existiria uma injustiça. E esses seres que vêm a ser perecem porque eles pagam uns aos outros, segundo a ordem do tempo, a injustiça que eles cometeram ao vir à existência. Olha um bacilo de ascetismo, de negação, entrando já no momento mesmo em que a filosofia está sendo inventada.

Evidentemente que em Anaximandro não existe nem ressentimento nem má consciência, mas há um esboço de niilismo aí. E evidentemente também há um certo contágio de seitas ascéticas, que vimos rapidamente na aula passada sobre a questão do xamanismo, que buscam a salvação individual e que veem na relação social, na relação política, na relação sexual, uma impureza e que apregoam um ascetismo, apregoam uma renúncia em relação ao corpo, uma renúncia em relação aos valores da cidade, aos valores humanos, e buscam retomar o sagrado que estava perdido desde a Idade Média grega na medida em que aquele mundo micênico se desfez, e o mundo da idade arcaica ainda ajudou a aprofundar a distância entre os deuses e os homens. Então essas seitas religiosas buscam retomar, através de exercícios ou práticas ascéticas, o contato com o sagrado, com esse mundo divino, segundo o modelo da renúncia. Então renunciar às misturas, renunciar ao corpo, renunciar às relações e buscar um exercício de si que não mais é um exercício de sophrosyne, simplesmente, não é mais um exercício de enkrateia que dobra a força dentro de si, mas é um exercício de negação de si, é um exercício de negação do corpo, é um exercício de apreensão do corpo como prisão da alma, de apreensão do corpo como túmulo da alma. No segundo discurso do Sócrates no Fedro está claramente o corpo como túmulo da alma. É explícito o enunciado dele.

O que ocorre? Aquele xamanismo sibério se encontrou com essas práticas sectárias religiosas gregas; nesse mau encontro, digamos assim, mudou os valores xamânicos da Sibéria, se serviu de algumas práticas e alterou alguns valores. Os xamãs utilizavam as práticas do ascetismo para separar a alma do corpo, para fazer com que a alma viajasse para outros mundos e ganhasse a capacidade da ubiquidade, estar em vários lugares ao mesmo tempo; já as seitas religiosas têm a idéia de que a alma que se separa do corpo não pode ter a origem no corpo ou na natureza mas que é uma alma que tem uma origem divina e que o divino já não está mais neste mundo, está fora da natureza. Estas duas ideias – a alma que se separa do corpo e que tem origem divina – vão dar a ocasião da interpretação de uma negação do corpo ou de uma desqualificação do corpo. No momento em que essa alma tem origem divina e o corpo é terreno, ele é tido como algo que emperra o movimento da alma. Tanto mais que, para que a alma ative os seus movimentos, para que ela ganhe asas, é necessário que o corpo seja imobilizado ou que seja não alimentado, que haja uma renúncia em relação ao corpo. Daí os exercícios de ficar sem comer, ficar sem dormir, ficar sem alguma coisa, ficar sem sexo, ficar sem relação social. É o ascetismo, é a renúncia em relação às relações, porque o corpo é fonte de imobilização da alma. Na medida em que a alma se encarna num corpo ativo, ela se torna adormecida. Quanto mais o corpo for passivo, ou for subjugado e reprimido, mais ela se libera.

Então nasce também no ocidente essa idéia de que a alma ativa só funciona na medida em que o corpo for passivo. E esse mito vai atravessar o ocidente até hoje, ainda que Espinosa tenha desmanchado isso com uma beleza incrível, com um rigor fantástico. Espinosa vai dizer, no século XVII, que o corpo só é ativo quando o pensamento é ativo e o pensamento só é ativo quando o corpo é ativo. Não tem um ativo se o outro é passivo. Nunca. Ou um é ativo e o outro necessariamente é também, ou um é passivo e o outro necessariamente também é. Porque há algo anterior ao pensamento e ao corpo e que atravessa os dois ao mesmo tempo, simultaneamente, que é o desejo, a potência. As expressões no pensamento, as expressões no corpo, se dão ao mesmo tempo, simultaneamente, ainda que às vezes se habite mais o pensamento ou se habite mais o corpo, mas elas estão passando nos dois.

Enfim, esse mau encontro do xamanismo que vem do norte – com as seitas pitagóricas, órficas ou sectárias, enfim – gera essa idéia. E na medida em que a filosofia está sendo inventada, como diz Nietzsche ela precisa se mascarar, ou como diz Bergson ela precisa imitar o que já está estabelecido, porque senão ela não passa; então o filósofo tem ares de sacerdote. Se você analisar a vida de Empédocles, a vida de Anaximandro, a vida de Tales, a vida de Heráclito, existe um ar sacerdotal que passa por eles, existe uma máscara do sacerdote que passa por eles. Mas isso é apenas uma máscara. Acontece que com esses encontros e essas funções demandadas pela cidade grega como a extirpação do Mal, a purificação de crimes, de elementos que desorganizam a cidade, feitas por religiosos ou sectários, é também feita por alguns sábios, por alguns adivinhos, por alguns profetas. E não só esses como também os filósofos que se confundem nesse início com gente que tem um saber além dos mortais e que são capazes de dizer o que fazer para extirpar o Mal. Então há uma certa colagem de máscaras, digamos assim, nessas funções sociais.

É óbvio que essa idéia de crime já existia entre os gregos. Você tem na Ilíada e na Odisseia uma idéia de crime, mas ela é sempre atribuída aos deuses como responsáveis. A responsabilidade nunca é atribuída aos homens. Aqui Anaximandro está generalizando a coisa, ele está jogando para o devir em geral, para tudo que vem a ser, uma espécie de crime ou de injustiça. Para explicar a pluralidade então, já ultrapassando Tales de Mileto que estava preso ainda na unidade do absoluto, Anaximandro vai justificar a pluralidade, a necessidade do vir-a-ser, por usurpações, ou por adikía, ou por injustiças. Esse vai ser modo de Anaximandro explicar. Já vai ser um modo inteiramente atravessado pela moral e pela religião. É a moral e a religião já se confundindo com a filosofia.

Mas na noite escura – como diz Nietzsche – em que se encontrava Anaximandro, chega Heráclito de Éfeso e ilumina como um raio o sentido do devir, o sentido do vir-a-ser. Heráclito diz: eu vejo o devir. E o que eu vejo no devir? Eu não vejo injustiças no devir, eu não vejo crimes no devir, eu não vejo culpa e responsabilidade no devir. Eu vejo a diké no devir e eu vejo o logos no devir. Eu vejo justiça e vejo pensamento. O devir é inteiramente justo e lógico, mas é uma lógica que não é, evidentemente, a lógica da representação humana, não é a lógica racional que depois vai triunfar com Sócrates, Platão e Aristóteles. É a lógica da própria natureza. Mas além de não ter visto nenhuma culpa, nenhuma injustiça, nenhum crime, nenhuma aberração no devir, nenhuma hybris criminosa, ele vai mais longe e diz: e também não vi o ser, o ser não existe, o ser atrás do devir simplesmente não existe. Tudo que há é devir, tudo que há é movimento. E eu vejo a harmonia na discórdia, eu vejo a harmonia na guerra. Tudo é guerra e tudo é discórdia, tudo é luta de contrários, tudo é uma grande tensão. Tudo é tensão, tudo é devir, tudo é guerra, tudo é discórdia. E é na discórdia que está a perfeição e a justiça.

Então Heráclito é o primeiro homem do ocidente que vai afirmar, com uma radicalidade absoluta, que a justiça é imanente à natureza. E talvez esse seja o único problema de filosofia: entender o problema da justiça – se se entende direito isso. Entender a questão do sentido da existência, em outras palavras. Depois vamos falar um pouco disso.

Heráclito vai dizer: a justiça é a própria lógica da relação entre as forças, da relação entre os opostos ou entre os contrários – essas palavras “opostos” ou “contrários” são ainda caricaturas do que ele está dizendo. Ele está falando em forças, no fundo; ele está falando em elementos diferenciais, ele está falando em tensões. Tudo é tensão. E ele dá exemplo: como o arco e a lira. Há uma guerra e uma harmonia. É assim que é a natureza, é assim que é a vida e é assim que é o pensamento. Então pela primeira vez é dito, com todas as letras, que não há uma justiça fora da natureza e que não há uma justiça dos homens. Não há uma justiça nem divina nem humana, a justiça é imanente à própria natureza. A natureza é imediatamente justa. O modo dela funcionar é imanente.

Se ele diz que tudo é devir, tudo é múltiplo, tudo é plural, ele não quer dizer também – como algumas interpretações socráticas e platônicas mais tarde, e hegeliana depois, também – que só tem aparência e que o múltiplo é uma aparência, que o devir é uma aparência. Ou que é uma ilusão, ou que é uma questão de opinião, que não haveria uma realidade. O que ele está dizendo é que a realidade – em toda a sua substância, em todo o seu absoluto – é puro movimento, é pura metamorfose, é puro devir. É devir enquanto devir, é metamorfose enquanto metamorfose, movimento enquanto movimento. Isso é realidade, e a realidade última de todas as coisas. Última e primeira. Então se ele diz que não é aparência, também ele não está atomizando nenhuma qualidade, nenhuma propriedade e dizendo que elas são essenciais na origem. Porque o ser de Heráclito não é igual ao de Heidegger, não é um ser aí, não é um Dasein; ele é um devir aí, não é um ser aí. Só tem o devir aí. O ser é mero resultado do devir.

Mas nós vamos mais longe: ele não é um mero resultado, ele vai ser sempre ser do devir, e não o devir do ser. Há sempre um ser do devir – é essa a questão. Uno? Sim, existe unidade. De quem? Do Múltiplo. Não é o Múltiplo que se submete ao Uno; é o Uno que é resultado do Múltiplo. E nem mais podemos falar aqui com esses termos limitados de Uno e Múltiplo, ainda que estejamos só facilitando as coisas; mas se formos rigorosos não podemos falar em Uno e Múltiplo. Temos que dizer multiplicidade e unidade. Unidade ainda pode ser dita, ou o ser. Mas multiplicidade e não mais múltiplo, porque a multiplicidade é tudo o que há no fundo das coisas. Mas essa multiplicidade não é uma pluralidade, ela não é um conjunto de indivíduos essenciais que estariam no fundo das coisas, ela é em si mesma pura metamorfose, em si mesma pura mudança. E o indivíduo ou a unidade ou o ser que surge a partir disso é puro resultado do jogo, da guerra, do tempo. Heráclito diz: o tempo é uma criança que brinca. E ele chama Aion – que não é Chronos, é até filho de Chronos na mitologia. Aion é uma criança que brinca movendo as peças do jogo para cá e para lá. Governo de criança. O tempo, o Aion, é o próprio ser do devir. O devir não é devir sem o Aion. O Aion e o devir são no fundo a mesma coisa, e neste sentido ser e devir também são a mesma coisa, exatamente a mesma coisa. Então olha a colagem que ele está fazendo aí. Aliás ele não está fazendo colagem, nunca se separou nele, isso. Ele já está na imanência.

Heráclito então diz o seguinte: a justiça é imanente, o logos é imanente, o ser é idêntico ao devir e tudo o que há é devir. Não existe a paz, só existe a guerra; não existe o equilíbrio ou uma idéia de harmonia em cima de uma concórdia, só tem discórdia. E a discórdia é o próprio movimento, a discórdia é a própria tensão. Uma vez que há tensão, há movimento e o movimento é a realidade última e primeira de todas as coisas.

Ao mesmo tempo que ele diz isto, ele está retomando uma coisa que tinha se perdido na Grécia, que é conceito de aristói. Os aristói, na época medieval grega, são aquilo que se tem ou que se vê a si mesmo como sendo melhores; o aristói é o melhor, ele é o bom, ele se vê assim, ele se vê como melhor, ele se vê como bom. Heráclito pensa a mesma coisa, ele se vê como melhor, ele se vê como bom e quer se diferenciar da turba, quer se diferenciar do povo de Éfeso na medida em que o povo é prisioneiro de opiniões a partir de seus próprios interesses. Heráclito diz: para você ser melhor, para você ser um aristocrata, você precisa fazer parte ou estar com, viver com, pensar com. Viver com, pensar com, fazer parte de, é se tornar na mesma lógica, na mesma diké, no mesmo logos do cosmos inteiro. E é aí que você perde os valores menores, os valores individuais como valores que levariam a interesses puramente passionais ou de uma guerra violenta, digamos assim.

Então quando Heráclito fala de uma guerra, ele fala do modo como a natureza funciona, ele não fala dessa guerra medíocre dos homens, dessa coisa de você gerar movimento a partir de interesses que são gerados pela separação do próprio ser e do devir. Quando você está separado você se toma como uma ação ou como um interesse à parte da própria natureza. Heráclito está dizendo: estar com, viver com, pensar com, é ascender a aquilo que a natureza tem de implacável, a aquilo que a natureza tem de imanente, a aquilo que a natureza tem de perfeito. E é por isso que ele se julga o melhor, que ele se julga bom: é porque ele vê e entra e habita esse plano. Ele está aí. Então não é uma questão de querer ser diferente, não é uma questão de querer ser melhor. É uma questão de ética ser melhor, é uma questão necessária para que a vida passe como um jogo, porque a vida é um jogo, a vida é um brinquedo. Como diria Nietzsche no Para além do bem e do mal: retomar aquela responsabilidade e aquela seriedade que tínhamos com os nossos jogos em criança, quando éramos crianças. Ser sério e ser responsável no jogo, no jogo de crianças, no brinquedo de crianças – o que os adultos perderam. Heráclito tem essa responsabilidade com o jogo, com a imanência. E é nisso que ele se diferencia do povo de Éfeso. E depois em Atenas ele diz a mesma coisa e sente até saudade do povo de Éfeso, ainda que o tenham renegado por ele desprezar o povo.
O que está sendo dito de alguma maneira aqui é que o modo como os homens vivem e se relacionam, segundo a visão de Heráclito, é um modo pequeno, mesquinho, um modo baixo de viver porque os homens não penetram a natureza das coisas e não se deixam atravessar e viver através da própria natureza das coisas. Na medida em que isso não acontece, eles também não são capazes de gerar realidade, porque todo o ser que se chama realidade, ou todo o Uno que se chama realidade, é efeito do habitar o devir, do entrar em devir, do jogar e mergulhar no devir. Então Heráclito é o primeiro pensador que vai afirmar claramente a submissão do ser ao devir, do Uno ao Múltiplo, da necessidade em relação ao acaso – ainda que ele não use isto, mas nós já podemos adiantar como sendo uma idéia nietzschiana.

Nietzsche diz que Heráclito é tido como O Obscuro por causa da estreiteza de espírito de seus contemporâneos. Deleuze diz que Heráclito é tido como O Obscuro porque ele conduz o devir às portas do sentido do ser, às portas do sentido do que o Nietzsche vai descobrir como o eterno retorno. Heráclito chega até o ser do devir, tem um leve pressentimento em relação ao ciclo, em relação ao retorno, mas ele não chega a enunciar o eterno retorno. O eterno retorno é o próprio sentido da existência no devir, é a própria consistência da efemeridade do devir. O devir, no fundo, gera a idéia de efemeridade na medida em que não mergulhamos plenamente nele. Quando assistimos ao devir, pensamos que ele é efêmero, pensamos que ele é inconsistente, pensamos que ele não tem realidade; mas quando mergulhamos no devir, é daí que surge uma consistência, é daí que o ser é gerado, é daí que o Uno é gerado, é daí que a necessidade do acaso emerge. Então a necessidade do acaso, o ser do devir, o Uno do Múltiplo, é o sentido último e primeiro da existência. A existência tem uma finalidade só, diria Heráclito, na medida em que a finalidade é nela mesma, a finalidade é o efetuar-se do devir. Na medida em que a força se efetua, a finalidade da existência ou da vida é efetuar-se, efetuar a força, afirmar a força, afirmar o devir. Então esse sentido da afirmação, Heráclito já carrega com ele.

Heráclito é um filósofo dionisíaco neste sentido, porque tudo é múltiplo. E Dionísio se afirma com várias máscaras. Dionísio se afirma simultaneamente em várias realidades. E esse afirmar-se simultaneamente em várias realidades é a própria alegria dionisíaca. A alegria que Nietzsche vai dizer depois que é essencial ao trágico – e ele vai dizer que só ele entendeu o trágico porque o trágico é alegre -; essa alegria essencial é exatamente a afirmação simultânea e coexistente da pluralidade.

Participante: Essa posição dele já faz com que de cara ele não consiga ter discípulos contemporaneamente, não é? Ele não pode ter escola. É a opinião dele no mundo, só isso.

Não, não é a opinião dele no mundo. Isso já é pensamento filosófico.

Participante: Sim, dele.

Não. Se fosse dele, aí seria uma opinião, aí seria uma questão psicológica. É por isso que ele se vê melhor, que ele se vê como um aristói. Ele se vê como um aristói porque ele já faz parte do logos da natureza, da diké da natureza. Ele não vê aí nenhuma injustiça, nenhum crime, nenhuma falta a ser expiada. Ele não vê nenhuma negação. Ele vê plenamente sentido na existência, na guerra, na discórdia, na morte, em tudo. Ele não vê motivo para se negar a existência. Se fosse uma opinião pessoal dele, essa opinião não resistiria a esse sentido. Não tem como resistir a esse sentido. Isso já é o ponto de vista da própria natureza se auto-pensando, é a natureza se pensando nela mesma.

Participante: É uma posição de vida.

É uma posição de vida, é uma vida que a natureza gera e através dessa vida, que é Heráclito, a natureza pensa. A natureza pensa no corpo de Heráclito, é isso que está acontecendo. E é por isso que Heráclito se sente como o possuído pela natureza, não mais por um deus. Então é a natureza que fala nele, não é uma opinião dele. É diferente. É por isso que é filosofia. Não é religião mais, não é moral e não é relação social, jurídica ou política. É filosofia.

Participante: Você especificou que esses pensadores não eram de Atenas e Esparta, eram de outros lugares. Essa coisa geográfica fora de Atenas e Esparta tem alguma peculiaridade para a formação do pensamento desses pré-socráticos?

É como se existissem dois elementos: o filósofo e a filosofia. O filósofo seria estrangeiro e a filosofia seria grega. O filósofo não vai inventar ou produzir a filosofia nos regimes orientais porque lá o plano de imanência está inteiramente sobrecodificado. Os regimes despóticos impedem que a filosofia emerja porque não há o meio para isso. A Grécia é o meio para isso. E a Jônia é uma colonização grega, e a colonização grega gera um estilo de vida, um estilo de sociedade, um estilo de economia, um estilo de política, que ao mesmo forma uma atmosfera. Essa atmosfera singular, esse meio é a Grécia. Sem esse meio não há filosofia. Por isso a filosofia só se dá na Grécia nesse momento. Não sei se Heráclito, mas um deles tinha origem fenícia e outros têm outras origens, eles vêm de outros lugares que não a própria Grécia. Você tem Empédocles que é um siciliano. E você tem a filosofia propriamente grega desenvolvida em Atenas, desenvolvida em outras cidades gregas. A questão aí é então: o modo liberto dos impérios, que é o filósofo estrangeiro, e o meio que ele encontra, propício para gerar esse tipo de coisa. Então esse meio é como se entrasse nele e através disso ele criasse um estilo de viver e de pensar.

O que é fundamental aqui é o seguinte: esses homens que se dizem filósofos estão inventando uma maneira de viver e de pensar que não precisa de Estado, de religião, de lei, de sociedade – ainda que eles vivam em sociedade; eles não precisam de nenhum referencial. E eles vão mais longe, eles dizem assim: olha, vocês que vivem sob o jugo das leis, sob o jugo das regras jurídicas, sob o jugo de valores religiosos, não sabem que nós temos em nós mesmos a potência de ultrapassar esses limites do pensamento e do corpo. Nós temos a potência de ultrapassar os nossos estados de alma e de corpo sem precisar de nenhuma religião, sem precisar de nenhum artifício que não a própria natureza que nos atravessa. É isso que eles estão dizendo.

Então eles estão inventando um pensamento imanente e uma vida imanente que andam de mãos dadas. Eles estão fazendo o casamento, as bodas entre pensamento e desejo, entre pensamento e corpo. Não há pensamento sem corpo e corpo sem pensamento. Eles andam juntos. E um afirma o outro, ou arrasta o outro, ou arranca o outro de arapucas em que porventura entrem. O pensamento às vezes leva a coisa muito mais longe e desterritorializa o corpo daquelas relações orgânicas que a cidade ou que aquela sociedade impunha a aquele corpo; o pensamento é capaz de arrancá-lo dali na maior consistência, não de modo leviano mas na consistência, no pensamento enquanto produção de realidade. E do mesmo modo o corpo tem uma realidade imanente, que é uma espécie de corpo sem órgãos que atravessa o corpo orgânico, e que arrasta o pensamento ou arranca o pensamento de lugares onde o pensamento pousou e se acomodou, como ideias sedentárias que são demasiado confortáveis para se arriscar novas maneiras de viver. Então esse sedentarismo que o pensamento entra, o corpo é capaz de arrancá-lo.

Então Heráclito tem duas formas de ver isso. Ele diz: nós mergulhamos, nós jogamos, nós entramos em devir – é o primeiro lance do jogo, diria Nietzsche; e o segundo tempo do jogo: contemplamos o resultado do mergulho, nós nos distanciamos e vemos o resultado. Este distanciar-se já é o ser do devir, já é o retorno do ir, é isso que ocorre, já há um retorno do ir. Mas esse contemplar no pensamento não é um contemplar das ideias platônicas, abstratas, de um outro mundo; é o contemplar do mergulho, você mergulha e volta à superfície, e você vê o resultado, apreende o resultado. Então é uma contração do ser, nós diríamos em termos modernos ou então bergsonianos.

Então dois modos: mergulhar e retornar, ou agir e contemplar, ou agir e afirmar, já ao modo de Nietzsche. Atividade e afirmação. Atividade: mergulho na intensidade. O que desterritorializa o corpo e o pensamento via corpo? O mergulho na intensidade, nos afetos; para usar a linguagem de Heráclito: nas tensões, nas discordâncias, na guerra dos elementos. Então é aí que estou desterritorializando o corpo do organismo confortável que geralmente ele assume para si. E eu desterritorializo o pensamento, ou o corpo e o pensamento através do próprio pensamento, na maneira como eu afirmo o resultado. Então ao afirmar o mergulho no devir, estou levando o pensamento além dos valores estabelecidos. Eu não preciso de religião, eu não preciso de lei, eu não preciso de nenhuma moral porque o meu mergulho gera a minha orientação, eu me auto-oriento, eu sou o meu próprio cartógrafo, eu sou o meu próprio agrimensor, eu crio as linhas de superfície e as componho – ou as decomponho, ao modo sempre de um único critério: a natureza é imediatamente justa, a justiça é imediata, a justiça se dá no modo como eu me relaciono com ela.

E tudo o que eu tenho, o que eu faço, o que eu penso, eu mereço. Não que eu seja culpado das minhas infelicidades, não é uma questão de culpa, Heráclito não está acusando nada, não é isso. Ele está dizendo que está em nosso poder, em nossa potência, o nosso merecimento, a nossa justiça. Todo erro é bem-vindo porque você afirma a outra máscara de Dionísio, você afirma uma força que te venceu porque tinha que ser. Daí o amor fati. É necessário. Heráclito diz que o movimento da guerra, dos opostos, dos discordantes, são necessários; não há um livre arbítrio, não há uma livre escolha. É necessário que isso ocorra. Então, na medida em que há necessidade, a vida, a natureza, a existência se justifica por ela mesma, ela não precisa ser justificada. O problema da dor não há como insuficiência de ser em Heráclito; a dor em Heráclito nunca é uma insuficiência de ser. A dor é um excesso de ser, é um excedente: eu sofro por excesso. E essa dor é sempre bem-vinda, essa dor é sempre afirmada. Então esse sentido da dor e do sofrimento humano nunca vai ser elemento para acusar a vida e a natureza e para inventar um juízo, uma instância que venha de fora e julgue a natureza. Nunca vai ter esse motivo.

Esse vai ser o motivo do platonismo, do socratismo, do aristotelismo e de todos os planos transcendentes que o ocidente inventou para si. Vai ser sempre um motivo de acusar a existência, de acusar a vida, sempre um motivo de depreciação. É o olhar tacanho, é o olhar impotente, é o olhar acabado que olha a vida e vê o sofrimento como um signo de culpa e depois ainda vê nessa própria reprodução da culpa um signo de expiação. Então esse duplo movimento – como diz Nietzsche, o pântano da má consciência e a máquina imunda de fabricação e de multiplicação da dor para expiar a culpa que é detectada com o próprio sofrimento – nunca vai se encontrar em Heráclito ou mesmo em Anaximandro, que já tem um esboço de negatividade lá. Nenhum grego, nem Platão, nem Sócrates, tem a má consciência neles mesmos.

É por isso que na aula passada eu insisti um pouquinho na questão da vontade grega: não há uma vontade subjetiva grega que se separe das ações, ou das reações, ou das suas ideias. A vontade, no grego, é colada na ação; é impossível para um grego deixar de agir ou deixar de reagir a partir de uma vontade que avalia a coisa segundo um saber. Não tem essa separação, essa subjetividade decadente do ocidente não se passa com os gregos. O que se passa sempre é que ainda que haja responsabilidade, ainda que haja crime na cidade, ainda que haja a justiça e que haja julgamento, essa transcendência ainda não chegou tão longe. Porque eles sempre responsabilizam em última instância um deus. É preciso que um deus o tenha cegado, é preciso que um deus o tenha enlouquecido, se apoderado dele para ele cometer esse crime. Ele acaba sendo responsabilizado, mas foi a necessidade de um deus, ele foi vítima de um deus. O criminoso é mais vítima do que culpado. Olha que visão da vida!

Então a questão de Heráclito, fundamentalmente, é uma questão de sentido da existência. Eu acho que não tem muita importância nós dizermos qual é o elemento que ele diz que é o elemento da natureza, ou o elemento primordial, ou a origem de todas as coisas e que governa todas as coisas. Ele chama de fogo. Esse fogo evidentemente ultrapassa o fogo físico, é um modo de ver como a natureza funciona. E o próprio ser desse fogo já é a própria metamorfose.

Esse ser do fogo, que é puro devir, vai gerar depois linhagens de escolas e de pensadores. Dentre as escolas mais importantes que vamos situar nesta linhagem de Heráclito aqui é a escola estoica – dos estoicos gregos, não dos estoicos romanos. Os estoicos vão dizer que tudo é corpo e que o corpo, em última instância, é fogo – isso já é uma herança de Heráclito. Agora os estoicos vão fazer uma coisa com o tempo de Heráclito. Heráclito diz que o tempo – que é o devir, é o Aion – não se separa, ele é imanente à própria natureza. Mas Heráclito não chega a fazer um recorte que os estoicos vão fazer mais tarde: eles vão recortar o Aion como um incorporal puro que envolve os corpos. Isso depois vamos ver com os estoicos, uma forma absolutamente revolucionária, uma visão absolutamente libertadora que os estoicos vão criar, inventando um novo traçado do ser e do devir.

Nos estoicos também você sempre tem a imanência, nunca uma transcendência. Aliás os estoicos reinventam o humor, o humor cínico, o humor sofista, o humor dos pensadores pré-socráticos. Reinventam o humor e vão, através do humor, fazer uma verdadeira destruição das alturas socráticas, platônicas e aristotélicas, e das falsas profundidades. Os estoicos vão fazer isso.

Eu enfatizei muito a questão da imanência em Heráclito, e da não separação entre ser e devir, porque esses movimentos sectários, ascéticos, que vão cultivar uma idéia de alma com origem divina e que se separa do corpo, e com uma eminência sobre o corpo, vão estabelecer um corte que os pré-socráticos propriamente ditos não tinham levado a cabo. Nem Anaximandro, que vê uma adikía no devir, nem Parmênides, apesar da interpretação platônica ou hegeliana, fizeram um corte entre ser e devir. A idéia da alma que se separa do corpo, que emerge do encontro das seitas religiosas com o xamanismo que vem do norte, e que cria braços ou ramificações na cidade grega, já é a idéia de uma alma não grega. Já é uma idéia de alma estranha ao pensamento grego; porque a idéia de alma dos gregos é a de uma psychê que é sempre espírito de corpo. A alma grega é sempre espírito de corpo. A ponto, muitas vezes, de não se fazer distinção entre psychê e soma. A ponto de dizer que o soma vai para o Hades tanto quanto a psychê. Então a psychê sempre é um espírito de corpo, ela sempre é um pneuma, é um sopro vital. A psychê é corpo no fundo, como dirão os estoicos depois. Os estoicos vão dizer: a alma é corpo e o incorporal não é a alma. Eles vão fazer essa distinção clara depois.

Então a psychê grega é o Thymós, é o pneuma, é o sopro, é uma energia que atravessa o corpo e que é ela mesma corpórea, é ela mesma física, é ela mesma phýsis. Não é à toa que eles mantêm pensamento e corpo unidos, porque eles não conseguem supor a separação dos dois. Há sempre um jogo lúdico entre os dois, que é o jogo do tempo e dos afetos, onde se passa o pensamento e as intensidades no corpo. Mas nunca uma separação, ou uma eminência de um sobre o outro, ou uma negação, um julgamento de um sobre o outro. Nunca isso. Essa idéia é uma idéia estranha que vai se desenvolver nessas seitas e vai contagiar a filosofia. Vai fazê-lo de um modo tal que aquela velha máscara que os pré-socráticos usavam para confundir os inimigos, que eram capazes de destruí-los, e assim eles se travestiam de sacerdotes, essa velha máscara vai se colar em Sócrates. Sócrates cola a máscara do sacerdote. E, como dirá (se não me engano) Dodds – ou alguém disse isso, não me lembro quem foi -, Sócrates será o primeiro filósofo e o último xamã. Primeiro filósofo, como diria Nietzsche, da decadência, porque Nietzsche vê em Sócrates não o primeiro filósofo, mas o início da decadência da filosofia. E do ocidente. Ele vê uma decadência fundamental encarnada em Sócrates.

Por quê? Porque Sócrates vai levar a cabo no pensamento, no discurso, no logos, um modo de operar que se funda numa instância que os gregos, até então, desconheciam, que é uma alma que se separa do corpo, é uma alma que tem eminência em relação ao corpo e que não tem origem na natureza, que tem origem num outro mundo, que tem origem divina. Então isso Sócrates vai fazer, ele vai usar esse elemento xamânico e as práticas ascéticas de esconjuração do corpo, de renúncia em relação ao corpo, na medida mesma em que ele tem a visão do corpo como prisão e como túmulo da alma, ele vai usar então essas práticas e essa maneira de interpretar a alma como instrumento para se construir o juízo ocidental. A instância do julgamento, a instância do juízo metafísico começa a ser desenhada de modo claro em Sócrates.

E o que seria essa instância do juízo? A instância do juízo é o que chamamos de plano transcendente de organização. E esse plano transcendente de organização é aquilo a partir do qual toda ordem, toda realidade, toda verdade emana. A verdade emana daí. A realidade emana daí. A ordem emana daí. Sócrates acredita nisso por um motivo simples e ao mesmo tempo muito sutil, que muito poucos souberam interpretar: na natureza, na vida, no devir não tem algo que justifique o sofrimento humano, não tem algo que justifique a dor, não tem algo que justifique as injustiças, as desordens, os desequilíbrios e as guerras que ocorrem no mundo e na natureza. E por que não tem algo capaz disso? Porque a própria natureza, a própria sociedade, o próprio corpo, o próprio desejo, a própria linguagem e a doxa, os phylodoxoi, a opinião dos homens, é o tempo inteiro inconstante, em metamorfose, em movimento. E a metamorfose, o movimento, o devir é gerador de adikía porque ele é a própria hybris, ele é a própria desmesura, e a desmesura, a hybris é aquilo que gera a usurpação, que gera a dor, que gera tudo o que há de mau na terra. Essa interpretação socrática se funda no mito ou na ficção de que haveria uma realidade limite que é permanente, que é constante, que é capaz de permanecer idêntica a ela mesma e por isso absolutamente justa e capaz de medir, ordenar e julgar os seres.

Isso vai desembocar na invenção do chamado objeto geral ou objeto universal. Sócrates diz que a idéia, o aspecto da natureza que é universal, não está na natureza, está fora dela. Evidentemente inspirado nessa visão xamânica, nessa visão da alma que se separa do corpo, que é eminente em relação ao corpo, que tem origem divina e que vê o corpo como entulho, como um estorvo, como um castigo, como uma expiação.

Acho que chegamos num ponto em que podemos fazer a narrativa platônica.
Participante: Para que serve essa invenção socrática, platônica, aristotélica? A quem serve? Para que serve?

É uma questão essencial essa. Seguindo a resposta da aula passada à pergunta que o Eduardo fez – em que contexto se dá a obra platônica: a cidade grega está se decompondo, está nos últimos suspiros.

Participante: Sim, você falou – para tentar conter essa decadência …

Essa degeneração, essa degenerescência, essa corrupção.

Participante: Então constrói um modelo ideal que segure isso?

Isso. No fundo eles têm a ilusão de que o saber é isento de poder, ele é neutro; e porque ele é isento, é universal, porque ele é neutro, ele é capaz do Bem – o Bem que estaria acima dos bens particulares. Ele é capaz de gerar essa harmonia.

Participante: E de fato funcionou para conter um pouco?

Não, os gregos nem tomaram conhecimento de Platão. Mas nós tomamos, os cristãos tomaram, o ocidente tomou.

Participante: Mas para a cidade não teve efeito nenhum?

Não. Ao contrário, Sócrates foi condenado à morte como perversor dos jovens gregos.

Participante: Mas poderia ter funcionado, não é?

Poderia se houvessem as conjunções, naquele momento.

Essa questão desmistifica uma coisa que desenvolveremos ao longo do curso: que no fundo, qualquer saber que se diz neutro está imediatamente imbuído de poder. Todo o saber é instrumento de poder, ele é imediatamente instrumento de poder. Então a representação no fundo não está representando a verdade das coisas de modo isento; ela é um instrumento de paralisação e de captura do devir. A mesma coisa que Freud faz com Édipo: Édipo não narra o fundo do nosso inconsciente, mas Édipo acaba sendo uma realidade nossa na medida em que vivemos em famílias nucleares desde que nasceu o capitalismo no século XIX. As famílias são restritas, como diria Philippe Ariès. Nucleares: é mamãe, papai e Édipo. Aí necessariamente o Édipo acaba vingando. Mas dizer que ele diz a natureza do nosso desejo, que ele conta a historinha que narra o nosso modo de funcionar e que o nosso desejo no fundo é incestuoso e parricida? Isso é um instrumento de poder para edipianizar as pessoas. Então a psicanálise nasceu para edipianizar e não para liberar o inconsciente. É essa a questão política em relação à psicanálise, é sair dessa falsa ciência – como Lacan quis transformar a psicanálise em ciência -, é sair desse falso cientificismo e colocar a psicanálise no campo político, no campo das forças. Tirá-la do campo teórico e dizer: “O que pode a tua idéia? O que quer a tua idéia? O que vocês querem com isso?” – que é a questão de Nietzsche.

E o que quer Platão? O que quer Sócrates? O que quer essa idéia de universal? É essa a questão que estamos já fazendo a genealogia de cara, sem antes descrever o sistema. Estamos indo no sentido inverso, nós já estamos fazendo o movimento. Aquilo que Platão nos ensina, por exemplo: que nós devemos atingir as ideias, contemplar as ideias, aquelas realidades que sempre existiram, que existem e que existirão e que estão fora do tempo. Ele quer nos fazer acreditar que não foi ele quem inventou aquilo, que aquilo está lá, que sempre foi assim e sempre será. Ora, ele teve que inventar antes. E é isso que estamos vendo aqui: como ele inventou isso? E como acreditamos? O que é pior. Porque se Freud é neurótico e acha que Édipo explica a neurose dele, até aí tudo bem. E muitas neuroses, evidentemente. Agora, nós acreditarmos em Édipo? Aí é problemático. A nossa questão é essa.

Participante: Por outro lado também, Heráclito não foi ouvido no seu tempo, Platão não foi ouvido no seu tempo. São opiniões quase contemporâneas. Uma apostando num tirano que ia organizar e o outro vendo o caos acontecendo e apostando no próprio caos que estava acontecendo. Ambos não foram ouvidos.

A questão é: por quê? Porque vivemos numa consciência que resolve as questões para nós de modo muito mais fácil, mais simples. Por exemplo, é mais fácil você ter prazer do que uma alegria profunda: “estou com fome” – a primeira coisa que você faz é “eu vou comer”. A vida que se acomoda ou que funciona desse modo nunca ultrapassa seus limites, seus estados de corpo. Como isso é criado? Será que o homem tem essa falta de vontade imanente a ele mesmo, será que ele deseja de modo natural a servidão? Não, não é essa a questão. A sociedade cria para si um jeito de viver, de pensar, de se relacionar que gera esse comodismo ou essa submissão ou essa forma de se limitar aos valores estabelecidos. É a capacidade de uma época, de um povo, de criar um tipo de sociedade que gera esse mesmo modo e que alimenta esse mesmo modo. Então não é que o indivíduo daquele tempo não tenha vontade de se ultrapassar, é que aquele povo foi capaz – naquele tempo, naquela época, com aqueles elementos – de produzir uma sociedade com esse grau de liberdade, com esse grau de avanço, com esse grau de ultrapassamento de si. Foi o que eles conseguiram. E foi uma coisa fantástica porque o que existia antes? Existiam impérios, existiam tiranias, existiam mundos despóticos; mundos selvagens geralmente submetidos a esses mundos despóticos; e as sociedades nômades ou guerreiras sendo, numa relação ambígua, geralmente aprisionadas pela máquina do Estado e a sua máquina de guerra transformada em exército. Então você tinha uma ausência de liberdade quase absoluta sobre o planeta Terra.

Participante: Mas ao mesmo tempo, é passando por essa coerção é que surge a liberdade.

São vários elementos que geram isso. E temos que ouvir um pouco um historiador chamado Fernand Braudel, que diz que muitos acontecimentos importantíssimos para a humanidade se dão completamente ao acaso, é pura contingência. São necessárias certas linhas e certas conjunções para que aquilo aconteça. E tem outros que têm já alguns desenvolvimentos, frutos de outras contingências, que também geram… Por exemplo, uma questão: por que o capitalismo não se desenvolveu na China, por que ele não nasceu lá? É uma questão, até podemos ver depois. Então por que o cidadão grego não ouve Heráclito ou não ouve Platão? É modo como a sociedade construiu para si. É por isso que Espinosa no século XVII, com aquelas guerras na Holanda e aqueles assassinatos e usurpações e corrupção generalizada, defenderá o regime democrático não como o melhor regime, mas como aquele que melhor tolera o filósofo ou aquele que pensa livremente.

Participante: Ele era uma vítima também, não é?

Foi vítima, com certeza. Ele sofreu tentativa de assassinato. Então o modo como a sociedade grega inventou as suas relações foi um modo extraordinário, fantástico. Então acho que já é uma bênção da natureza, uma graça da natureza, aparecer um homem como Heráclito, como Parmênides, como Epicuro, um homem fantástico, Crisipo, Zenão de Cício, Cleanto, Antístenes o cínico. Naturezas fantásticas que apareceram num meio onde isso era possível porque a sociedade grega não se rebateu num plano divino e nem num Estado humano, mas o Estado era objeto de disputa e de problematização num espaço comum. Então, o que é interessante, mas, ao mesmo tempo, é ambíguo na cidade grega é que o espaço comum, ao mesmo tempo que ele é imanente, ele pode levar para uma transcendência. Exemplo: se você acreditar que a lei – que o espaço comum, a disputa comum inventou – é uma lei essencial de natureza, você já caiu na transcendência, você já dançou, você já jogou fora aquela imanência onde aquele elemento comum nasceu. É por isso que Heráclito diz estar com, pensar com, agir com; o com é o comum não dele, ou do outro, ou da cidade. É o comum de toda a natureza, é o modo mais imanente possível, mais imediato possível. Então é se colar no imediato, não manter nenhuma distância entre a forma e a força.

O que Sócrates faz aqui? A forma tem que se destacar, ela é neutra, pura e universal. A forma é pura. Porque tudo que é material é impuro, tudo que é material é fonte de adikía, de hybris, de desmesura, de desordem, de decadência, de corrupção, do Mal. Ele quer atingir o puro em si mesmo. Então essa herança xamânica da pureza, essa herança ascética, Sócrates vai lapidar ao máximo e transformar isso em pensamento filosófico. E Platão vai fazer algo mais incrível ainda: Platão vai fazer a teoria das ideias. Porque até então não existia um sistema, só existia um esboço socrático. O modo de vida de Sócrates levava a discussões curtas, irônicas com seus inimigos sofistas; à disputa dos efebos, dos jovens efebos ou da educação dos jovens; a aquelas práticas de encurralar os sofistas nas suas aporias porque o problema de Sócrates nunca era o do sofista.

Qual é o problema do sofista? O problema do sofista é fazer do jovem um cidadão. E o que é ser um cidadão? É ser um animal político, é ser um agente na pólis, um agente na ágora. E um animal político tem que ter acesso ao discurso, à técnica do discurso, do logos, e ele tem que ter técnicas de valorizar as ideias que ele defende. E como se valoriza as ideias que você defende? Valoriza-se as ideias definindo-as e dando uma força maior do que as ideias dos adversários, fazendo com que essa idéia seja mais poderosa do que as dos adversários. Então a idéia, o saber, tem relação imediata com a potência, com a força, com o poder. Então o saber que o sofista ensina é uma função de poder. O saber é um saber de superfície, é como tecer as relações políticas e conduzir a cidade, conduzir o destino comum dos homens. É uma problematização da efetuação das forças. É uma problematização da expansão.

Então os sofistas ensinam sim uma ética, uma estratégia e uma sabedoria, e essa sabedoria implica em artifícios ou técnicas de demonstração. O modelo jurídico, já descrevemos aqui, é um modelo que a Grécia toma para si no plano do logos, no plano do pensamento, no plano da sua razão política, da sua razão moral, da sua razão social. Então esse modo de exercitar, eles vão chamar de dialética, mas é uma dialética da palavra diálogo, é uma dialética da disputa, é uma dialética da rivalidade e não da contradição, como Hegel quis depois. A dialética hegeliana é o cúmulo da falsificação da natureza. Hegel é o que menos atingiu o movimento. Ele chega ao cúmulo de dizer que a flor é a antítese da folha – que ficção, que absurdo é esse? Ou que o amor cristão é o oposto do ódio judaico – o Nietzsche diz é mera conjunção, é mera coordenação, o amor cristão é o refinamento do ódio judaico, ou do ódio que o sacerdote judaico tem. Quanto ódio nesse amor! – diz Nietzsche. Então além das grosserias dialéticas, das oposições e das contradições que a dialética vê, deve-se ver nuances.

Os sofistas ou esses dialéticos da cidade grega não são dialéticos ao modo hegeliano, eles estão disputando. Eles têm relação de amizade, de phylia, e de amphisbestesis ou de rivalidade. Então amizade e rivalidade. Rivalidade por quê? Porque ser em relação, estar na pólis, significa participar do destino comum dos homens que envolve o meu destino. Se envolve o meu destino, eu quero que a cidade e que eu mesmo tenha o melhor destino, e o melhor destino eu vou ter uma idéia disso. E essa idéia eu vou defini-la. Então usar uma técnica de discurso, uma técnica de demonstração, ou seja, uma dialética, para que a melhor idéia triunfe no campo político. Então esse saber é um saber de superfície, não é um saber de profundidade como o dos filósofos pré-socráticos que buscam o elemento comum entre o pensamento e o corpo, o que está no fundo da natureza. Não é o objeto da phýsis, não é o absoluto ou o infinito, mas é o modo político de ser, o modo de desenvolvimento e de composição das forças que atravessam aquela sociedade. Então esse saber é um saber de superfície, é um saber estratégico, é um saber de exercício de potência. O sofista ensina o jovem a se tornar livre porque exercer a potência e ser livre é a mesma coisa. Ainda que seja para poucos, na Grécia. A Grécia foi capaz de fundar essa sociedade livre para esses poucos, mas já foi uma grande coisa.

Participante: Logo no início você passou muito rapidamente em cima de uma colocação sobre a razão, a razão como fruto de transcendência. Eu empaquei nesse raciocínio. Achei que esse raciocínio valeu a minha aula. Você podia desenvolver?

Só articulando então com o que eu estava dizendo agora – eu já chego nessa questão: os sofistas, que são especialistas em ensinar essa sabedoria política, essa sabedoria econômica, essa sabedoria social e o discurso ou a retórica – eles são instrutores -, eles estão ensinando o modo singular de você efetuar a sua liberdade, eles estão ensinando o modo como você deve expressar o seu saber. Então essa sabedoria é uma sabedoria singular, é uma sabedoria daquela situação, é uma sabedoria ocasional. Então eles ensinam a pensar o ocasional. Então isso se distingue do que nós vamos chamar de razão transcendente.

Participante: Pensar o fluxo, não é?

Pensa o fluxo, exatamente. Pensa em ato o que se passa e a melhor expressão daquele fluxo. É isso que eles fazem. Sócrates usa o mesmo artifício dos sofistas, que é a dialética, que é mais ou menos um diálogo que vai levando a uma definição, digamos, ascendente da coisa. Mas esse ascendente do sofista é um ascendente na superfície: encontrar a melhor forma de expressão para aquilo passar. O ascendente de Sócrates já é outra coisa. Sócrates então se serve desse modelo dialético de modo perverso para encurralar essa sabedoria que o sofista ensina. Por que? Sócrates diz: essa sabedoria não se mantém, ela não tem consistência, ela não tem permanência, ela não tem estabilidade, ela não tem um limite, ela não tem unidade, ela não tem uma verdadeira definição, ela não está com a verdade. Porque a verdade, a Alétheia, tem uma realidade e realidade, como vê Sócrates, é aquilo que permanece, aquilo que é, não aquilo que devém, não aquilo que entra em devir, não aquilo que flui. Independente de contexto. Aqui já é o modo socrático de ver a realidade. Claro que tem a ver com o corpo cansado do velho Sócrates, mas é o modo de ele levar isso para uma metafísica. Ele está criando uma metafísica aqui. Além do físico, além do devir; metafísica, ele se transpõe. Ele está criando uma transcendência, um critério de uma razão transcendente.

E ele diz: então isso que o sofista faz sempre aponta para alguma coisa, é um saber que designa algo no mundo, é um saber sensível; no fundo é uma mera doxa, uma mera opinião. Entre a doxa e a Alétheia tem uma distância fantástica: a doxa é uma opinião, a Alétheia é a verdade. E para Sócrates a verdade não é uma questão local, não é uma questão ocasional, não é uma questão estratégica, não é uma questão de particularidades ou de superfície; a verdade é uma questão de universalidade, a verdade é para todas as épocas, fora do tempo e fora do espaço. A verdade está fora deste mundo. Então o sofista nunca vai atingir isso, segundo Sócrates, porque o objeto de saber de Sócrates não existe no mundo e o objeto de saber sofista é sempre o existente no mundo, é sempre um modo de expressão das forças que se atualizam no mundo. O objeto de Sócrates não.

Daí a ironia socrática, é por isso que ele é irônico. Ele faz uma ironia e se diverte ironicamente – não é uma autêntica diversão, evidentemente, é uma diversão triste porque usa da ironia – em encurralar os sofistas, em dizer que eles se gabam tanto que estão com o saber e com a verdade, mas que eles são incapazes de encontrar a verdade porque a verdade não está neste mundo, a verdade está num outro mundo. A verdade não é este ou aquele objeto, a verdade é “o objeto”. Ele substancializa o objeto. Então a verdade é algo objetivo, mas algo ideal e não material, a verdade está fora. E a idéia também não é algo que está na psychê; em Aristóteles depois ela vai entrar na psychê, em Sócrates não. Por quê? Porque a psychê de Sócrates tem uma parte divina que está fora da psychê humana; a psychê humana é a mera alma guerreira, a mera alma aristocrática dos gregos. Mas essa alma divina é aquela que tem a fonte do imutável, essa é que é a questão fundamental, algo que não muda. E a verdade está com aquilo que não muda, segundo Sócrates. E aí Platão vem e define: é aquilo que é idêntica a si mesma sempre, apesar do tempo, apesar do espaço. A justiça é justa, a beleza é bela. Você tem um enunciado apenas tautológico do que é a verdade, a verdade é um círculo. É por isso que o mito vai ter um papel fundamental: porque essa circularidade, essa consistência circular vai ser dada pelo movimento do mito: é o mito que tem esse tipo de narrativa.

Participante: E eles acreditam no mito?

Olha, nessa época da decadência grega eles acreditam no mito, como diz Paul Veyne, como nós acreditamos em Papai Noel. Na época arcaica há um comércio com o mito, com os deuses, ainda fundamental – a palavra ainda é uma palavra ambígua, ela é divina e humana ao mesmo tempo e é eficaz, ela não é representação, ela é imediatamente produção de realidade de um deus, é um deus que se apossa de você e você fala. Ela já é um ilocutório, ela já é um implícito não discursivo, ela já é um ato de linguagem e uma transformação incorporal de realidade. Ela já é isso. Então nessa época arcaica os mitos estão intimamente relacionados com os homens. Já com um certo afastamento, eles não têm mais aquela unidade que o mundo despótico dava porque o Ánax caiu. Então o mito que fundava a origem ou o começo daquela sociedade já também não é mais atualizado pelo rito, não há mais o ritual porque o Ánax não existe mais, o Ánax não encarna mais aquele ritual. Então ficou aquela pluralidade de deuses segundo aquela pluralidade de forças humanas que se comunicam com eles. Então ali ainda existe uma realidade.

Na cidade grega este plano já está afastado, então os mitos são usados mais como uma paideia, como uma educação, como um aprendizado em função da imitação de arquétipos; você tem a Ilíada e a Odisseia, Homero é usado como um mestre que efetua a paideia grega, que efetua a educação grega. Então esses modelos e essas misturas entre o divino e o humano agora se passam mais como referências sociais e políticas do que propriamente como uma realidade que tenha fundamento divino e transcendente. Então seria mais um modelo de comportamento. Tanto é que no segundo discurso de Sócrates no Fedro você vai ter lá a questão do cortejo das almas, vão haver doze tribos seguindo doze deuses e cada tribo vai ter um modo de se comportar segundo o modo de se comportar do seu deus. Tem Héstia, tem Apolo, tem Zeus. Enfim, vai te dar um modelo de comportamento. Então esses modelos de comportamento atravessam o inconsciente e o consciente grego o tempo inteiro. Eles brincam com isso. As tragédias gregas estão inteiramente inspiradas nesse dialeto mítico. Então há uma comunicação.

O que é fundamental aí é saber se isso vai ter uma influência para que você descole a sociedade dela mesma e gere uma transcendência, ou você use isso como um artifício ou como uma técnica, que é mais o caso dos gregos.

Participante: Eu estou pensando uma coisa. Há uma parte da sua fala, não sei se entendi errado: o devir não é para todos.

Sim e não.

Participante: Mas ele não atinge a todos. O devir é um exercício da potência.

A potência necessariamente já é devir.

Participante: Eu estava pensando assim: o devir seria algo natural ao homem?

É um falso problema você dizer que ele é artificial ou natural. É o que acontece essencialmente ao Absoluto. O que há, o que é real na sua mais íntima realidade, já é em devir, já é devir, já é isso. É impossível você imaginar – a não ser de modo fictício e imaginário mesmo – mas é impossível você pensar uma realidade plena auto-produtora como uma coisa ensimesmada, estática, imóvel. Aliás essa história do imóvel e do móvel é até uma imagem porque no fundo até você dizer que é móvel ou imóvel se torna um falso problema. Porque o próprio imóvel é em movimento. Há um imóvel no movimento.

Participante: O fato de nós estarmos conversando aqui sobre o devir é porque provavelmente nós não estamos em devir. Se nós estivéssemos em devir, se estivéssemos em potência plena, não teríamos essa necessidade de falar em devir. Então se o devir é a potência e ele não acontece assim, se ele não grassa na sociedade, é porque existe uma fraqueza nisso também.

Necessariamente o devir passa em qualquer coisa. Até na idéia platônica, até no modelo imutável platônico passa. Mesmo aquilo que Platão acredita que está fora do devir, está em devir. Porque não é o mesmo modo que eu vejo a idéia platônica, que você vê a idéia platônica, e isso não é uma questão de opinião, o meu ponto de vista já é absoluto. Ponto de vista absoluto: é isso que temos que atingir. Tudo é ponto de vista, mas absoluto, nada é relativo. É perspectivismo sim, mas é um perspectivismo absoluto que nunca se fecha num todo. É uma idéia difícil, mas se você afirma o devir plenamente você está no absoluto. O absoluto é a afirmação, é a capacidade de dizer sim. O segredo está no sim. Esse sim é o absoluto. É o sim por inteiro – isso é que é o absoluto de um ponto de vista. É por isso que nunca é uma questão de opinião.

Mas estar em devir não significa estar numa imagem de devir. Você pode estar absolutamente imóvel na aparência e estar em pleno devir. Aliás geralmente o nômade não se mexe. Ele é imóvel. Já dizia Akira Kurosawa: a montanha não se move. Ou os animais à espreita: eles estão absolutamente imóveis à espreita da caça ou de algum acontecimento da natureza, de alguma ameaça. Estar à espreita, estar imóvel, é estar em pleno devir. Então fazer uma imagem do que é estar em devir é ainda estar na representação, é ainda estar no discurso do signo que remete a signo, ainda estar numa transcendência. Então quando você diz “nós aqui estamos fora do devir porque estamos falando dele”, depende. Eu não estou. Eu estou aqui em devir. Se eu não estivesse em devir eu ia ter que ficar imaginando um modo de articular as coisas que eu estou falando.

Participante: Esta é a resposta para o Eduardo – qual é a sequência que você vai seguir? É a sequência do próprio devir.

Do próprio devir, necessariamente. Isso eu venho falando desde a primeira aula. Que é um encadeamento imanente, não é um programa que seguimos dizendo “vamos passar por fulano, sicrano, etc.”. O que interessa é a problemática, não são os autores – nunca é uma questão pessoal e nem de uma obra. É o problema. Então se foi Nietzsche que disse, nem interessa muito. Tudo bem, foi Nietzsche que disse, mas aquilo foi dito, então isso é que interessa, isso foi dito. Ou se ele não disse, então deveria ser dito, como alguém diz. Se alguém não disse, nós dizemos, inventamos. É criar o melhor modo de passar – é isso que temos que fazer. E não é nem o melhor modo, é o único modo. O único modo é a forma extrema de tudo que é. Aí voltando ao velho Nietzsche: a forma superior de tudo que é. A forma superior de tudo que é, é essa forma singular que ultrapassa o universal. Aí entramos na imanência de novo, é saber jogar, é o jogo no devir. O ser do devir é essa forma superior de tudo que é.

Participante: Esse devir produz de repente algo que vai contra ele próprio, ou a imanência produz a transcendência. Você já falou mil vezes que algum dia vamos entender isso.

A questão dele, sabe o que é? São quatro pensadores fundamentais: Epicuro Lucrécio, Espinosa e Nietzsche. Os três vão falar de três ilusões e vão vincular isso tudo ao tirano, ao escravo e ao que vive dos dois que é o sacerdote. E isso vai ter outros nomes e outras figuras e sempre são as três ilusões da nossa consciência: a causa final, a causa livre e a causa teológica. Isso é o modelo da nossa consciência. Então nisso chegamos à origem do sedentário, à origem da representação, à origem do bloqueio do devir.

Participante: Exatamente. Então tem um devir que bloqueia devires.

Há um devir reativo.

Participante: Por que não se entra em devir de uma forma natural? Ou por que se sai dele? Por que determinadas pessoas não vão? Por que são tão impotentes?

O homem é um ser social, é um ser em sociedade, necessariamente. Ser em sociedade já é ser problemático em sociedade. E a sociedade envolve sempre ou uma imanência, uma autogeração de ordem como fazem as tribos primitivas, selvagens, que não têm questão de captura de devir ou devir reativo ainda nelas; ou inventa-se uma máquina que ordena a sociedade de fora e essa máquina se chama Estado, lei, razão, moral, religião, tudo isso. Então no momento em que emerge essa máquina, o devir reativo acontece. Ela já se instaura a partir de um devir reativo próprio ao paranoico e seu bando perverso, que vai inventar esse tipo de poder; há uma vontade de negar e um devir reativo junto com essa vontade de negar. E esse devir cai e se sobrepõe sobre essas sociedades primitivas. No momento em que o poder é estabelecido há um devir não só da sociedade, mas da própria natureza. Nós vemos o nosso planeta em devir reativo. Então não é só o homem que entra em devir reativo, é a própria natureza que entra em devir reativo. O planeta fica doente, inteiro.

Participante: Então estamos sempre em devir, mas existem tipos de devires.

Saber selecionar o devir – a questão é ética. Vamos chegar.

Participante: O recorte que está se fazendo agora, parece que é um estudo de devires. Isto é mais profundo.

É isso. Nós não estamos fazendo nenhum tipo de avaliação direta como bom e mau, nós estamos fazendo com que a coisa emerja.

Participante: Mas é impossível não pensar em bom em mau. Imanente e transcendente, por exemplo: é muito difícil não tomar como bom e mau.

Mas sabe o que eu acho mais difícil do que isso? Você precisar de um referencial para você viver.

Participante: Então é impossível não dizermos que achamos isso ruim. Mau.

E, no entanto, consideramos como um mal necessário. É como o Freud: há um mal-estar mas é inevitável, é inevitável entrar no mal-estar da civilização. Para quê? Que impotência é essa, que incapacidade é essa?

Participante: Nisso eu estou com a maior clareza. É só a partir da idéia de que é possível uma consistência autogerada é que isso pode ser combatido. Mas enquanto você nunca ouviu falar nessa possível consistência, não tem como imaginar outra ordem que não seja a transcendência.

Mas aqui tem uma coisa: não é só você ouvir falar. Tem algo que se passa com você. Algo que se passa com você mesmo que ninguém nunca tenha te falado nada. Algo que se passa e aí é o devir, o devir ético. E o que gera essa postura ética é exatamente o sentimento de alegria com certas passagens ou certos acontecimentos em nós; ou sentimentos de tristeza, ou sensações ou afetos. Isso já é uma outra fala, já é uma outra escuta – escutar o corpo, escutar o pensamento.

Participante: Mas isso você precisa experimentar. E tem o medo que se coloca na cabeça das pessoas de que elas vão quebrar.

Mas será que é possível existir alguém que nunca tenha ouvido isso, que nunca tenha sequer passado por isso?

Participante: Acho possível pessoas que nunca tenham interpretado isso no que lhes acontece.

Têm medo disso, se afastam.

Participante: Interpretam de outra forma. Atribuem isso a uma outra ordem. É pavor.

É por isso que o modelo do ressentimento é a morte. Porque isso dá uma idéia imediata de morte. A passagem dessa realidade que flui. É uma idéia de efemeridade, de inconsistência enquanto é uma impressão. Mas se você penetra um pouquinho mais, se você contempla como a vaca contempla o capim, o que se passa em mim eu tenho um mínimo de tempo. Existe uma música recente do Lenine que pode até ser um pouco ingênua mas ela tem uma coisa muito interessante, ela diz o seguinte: será que temos esse tempo para perder, será que temos o tempo para perceber? Quer dizer, se dar o tempo – que é tempo aiônico; desfolhar o instante, subdividi-lo infinitamente. É neste tempo que a contemplação, a contração se dá. Será que na hora em que algo se passa em mim, mesmo que seja uma mera impressão, uma sensação fugidia, será que não há uma fissura, uma abertura onde eu envolvo esse fora e faço uma dobra? Então é esse exercício. Acho que não é necessário alguém falar. É bom. A fala é enzimática, é catalítica, a fala é política, a fala é para provocar, é para estimular, é para desencadear, ela é gatilho, um disparador. Mas existem disparadores – e é isso que temos que liberar – que são elementos ético estéticos em si mesmos, são puros elementos da natureza que nos atravessam, são as intensidades.

Participante: Mas precisa desconstruir o que tem em cima para a pessoa abrir a fissura.

Precisa liberar a superfície das marcas. É a memória das marcas. Aí a consciência, a má consciência e a consciência gerada no modo ilusório que Epicuro, Lucrécio, Espinosa e Nietzsche vão desmontar de modo belíssimo e praticamente quase que com a mesma visão, ainda que eles usem palavras diferentes. Mas é absolutamente rigoroso o modo como a transcendência sai da imanência. Não há uma origem, uma essência do Mal; o Mal é um mau encontro sempre. Essa questão é fundamental. Assim Hitler não seria mau em si. Um dia eu falei isso e tinha uma judia ortodoxa na sala e ela não aguentou, ela achou que era o cúmulo, que Hitler era a essência do Mal.

Participante: Mas porque tem essência na cabeça dela. Se não desconstruímos, as pessoas não abrem a fissura, abrem? Essa é a minha questão clínica. A questão é: como é que a fissura é tomada, é reconhecida, aceita minimamente para desencadear o processo?

É o sentido do sim, o sentido da afirmação, é saber que no devir você só tem a ganhar.

Participante: Nós sabemos. Mas a intervenção é a questão.

Exercícios. Práticas. Tem que inventar técnicas. Aí é invenção.

Participante: Então, uma aula de filosofia é isso. A questão é: o que mais? Aula de filosofia às vezes funciona – tenho certeza.

Eu acho que o pensamento é mais amplo do que os conceitos – ainda que os conceitos tenham tudo neles mesmos, não falta absolutamente nada. E a filosofia tem tudo nela mesma e não falta absolutamente nada. Mas a filosofia é um modo. A arte é outro modo e é pensamento puro. Até a ciência, se for uma ciência ativa, é fundamental. Então o que ocorre? Exercitar sensações – isso é um exercício artístico. Mas é filosófico também. E é científico também. Saber ouvir uma música, por exemplo, descobrir um modo diferente de ouvir nuances na música que não são ouvidas em certas situações. Como se gera isso? É como uma cena de teatro: você precisar criar um cenário e uma atmosfera para que as coisas se incorporem e aconteçam naquele momento. Então a singularidade não é um elemento atômico individual; a singularidade é uma conjunção de elementos que desencadeiam um processo. Então eu acho que a clínica tem que ser uma atmosfera que desencadeia os processos.

Participante: No caso, transferencial, supostamente.

Olha, esse transferencial tem que ser em relação ao devir e não em relação ao outro. É como Proust fala: a verdade do amor não está nem no sujeito, nem no objeto, ela está no que se passa entre. Então ame o que se passa.

Participante: A transferência é uma estratégia – imaginária – para isso, não é? Uma alternativa para a arte, uma alternativa para o conceito.

É que a transferência sofre da má idéia freudiana de amar o outro.

Participante: Sim, e de ser repetição de um outro primordial.

Então essa questão é fundamental e sutil. Eu não sei se seria interessante inventar uma outra palavra ou então saber bem o que está se dizendo.

Participante: Usar a máscara. Eu já penso que não é nem uma coisa nem outra. Mas entendi.

É. Aí é uma questão de inventar o jeito. Mas eu acho que isso são os catalisadores – é isso que precisamos inventar. Catalisadores ético estéticos. O Varela chama de autopoiésis, aquilo que se autocoloca, que se autofabrica, que se autopõe. Essa autoposição não é a partir de um sujeito ou de um objeto, essa autoposição é a partir de uma atmosfera, num encontro que você faz com ela. Então readquirir a confiança no devir. Então se o cara está dependente e doente, ele precisa de uma atmosfera propícia. A clínica é isso, ela tem a função de gerar uma atmosfera propícia para que ele readquira autonomia e a confiança novamente no devir.

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