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Spinoza, por Henri Bergson

por Henri Bergson

[tooltip tip=”Extraído das aulas complementares de filosofia e história da filosofia por Henri Bergson – Clermont- Ferrand, 1884-1886. Tradução e notas com comentários de Paulo Domenech Oneto. ln: BERGSON, Henri. Cours ID: Leçons d’histoire de!a phi!osophie moderne. Théories de fâme. Paris: PUF, 1998, p. 86-96. Para esta tradução foram omitidas todas as notas do autor e dos editores a fim de tornar a leitura do texto mais fluente. As notas aqui constantes são, portanto, todas de autoria do tradutor e têm por objetivo situar a discussão e apontar para algumas das diferenças fundamentais entre as concepções de Spinoza e Bergson. As notas contêm, em sua maioria, comentários que visam auxiliarum eventual estudo comparativo entre bergsonismo e spinozismo.”]Spinoza[/tooltip] nasceu em Amsterdã (Holanda) em 1632. Pertencia a uma família judia e inicialmente fez estudos puramente hebraicos. Mas ao aprender latim e ler Descartes, sentiu se desenvolver sua vocação filosófica. A sagacidade com a qual interpretou as escrituras levou à sua excomunhão pelos rabinos, que, graças a certas influências, conseguiram fazer com que ele deixasse Amsterdã.

Spinoza se refugiou em Haia, onde viveu o resto de seus dias, inteiramente dedicado à meditação filosófica. Teve amigos ilustres e poderia ter obtido, com a ajuda deles, fortuna e honrarias. Recusou tudo isso para se manter independente. Pobre, mas protegido contra a miséria, ganhava sua vida talhando vidros de lentes de aumento. Morreu em Haia em 1677.

Em 1663, Spinoza publicou uma apresentação da filosofia de Descartes sob a forma matemática: Principia philosophiae Renati Cartesii more geométrico demonstrata; em 1670, Tractatus theologico-politicus. Mas os dois trabalhos mais importantes de Spinoza só foram publicados após sua morte, pois o filósofo era tão pouco preocupado com a fama quanto com a fortuna. São elas: Tratado da reforma do entendimento ([tooltip tip=”Essa obra de juventude é por vezes traduzida como Tratado da Correção do Inte!ecto. O livro permaneceu, contudo, inacabado – provavelmente porque Spinoza se sentiu instado a se dedicar ao diálogo com o cartesianismo e a questões de natureza política. O período de sua redação se situa entre 1661 e 1663.”]De intellectus emendatione[/tooltip]) e Ética (Ethica more geomerico demonstrata, 1677). A Ética é o trabalho capital de Spinoza. Sua filosofia é ali apresentada de modo geométrico. A Ética procede por definições, axiomas, demonstrações etc.

Objeto de sua filosofia

O objeto de Spinoza é duplo. Pode-se considerar sua obra, efetivamente, tanto do ponto de vista moral quanto do ponto de vista metafísico.

1º.) A filosofia de Spinoza é, antes de tudo, no próprio espírito do autor, uma doutrina moral. O próprio título Ética, dado à obra capital desse filósofo, é significativo.

Não menos significativo é o início do Tratado da reforma do entendimento. Enquanto Descartes busca um método para bem pensar, enquanto o Discurso do método – em que ele nos dá o essencial de sua filosofia – contém apenas uma moral provisória e enquanto a ideia dominante do livro é a de que devemos visar antes de tudo a um discernimento entre o verdadeiro e o falso e ao juízo correto; ao contrário, a ideia indicada logo no começo do De intellectus emendatione, e desenvolvida em diversos momentos na Ética, é a de que o essencial para o homem é o bem agir, é discernir entre os verdadeiros bens e os bens ilusórios e só se apegar às coisas eternas. A filosofia de Spinoza se distingue então, logo de início, da filosofia de Descartes por seu [tooltip tip=”Caráter que é bem ressaltado por Gilles De1euze, desde o título de seu pequeno livro sobre Spinoza, Filosofia Prática, cuja primeira redação data de 1970. Porém, mais importante do que o mero título da obra é o tom assumido ao longo de suas páginas, em particular no capítulo VI – Spinoza e nós – na sua última página: O livro V da Ética de Spinoza é a unidade intensiva extrema, mas porque é também a ponta intensiva mais justa: não há ali mais nenhuma diferença entre o conceito e a vida.”]caráter prático[/tooltip].

2º.) Mas o cartesianismo, ao mesmo tempo em que colocava a moral em segundo plano por reservar seu estudo para um período posterior ao desenvolvimento da ciência, surgia com dificuldades metafísicas consideráveis, que nos limitamos aqui a enumerar:

a) Se a filosofia de Descartes gravita em torno da prova ontológica da existência de Deus, esta não é em nada concludente, pois Descartes não identifica de modo aberto real e possível. Da possibilidade da existência de Deus, que é a única coisa realmente demonstrada por meio do argumento ontológico, Descartes passa à sua realidade sem justificar suficientemente a passagem.

b) Descartes distinguiu tão profundamente extensão e pensamento que essas duas substâncias não possuem mais nada de comum. E ele é incapaz de explicar como elas agem uma sobre a outra; limita-se a constatar sua união afirmando a união da alma e do corpo.

c) Ao atribuir a Deus uma liberdade de indiferença, e ao fazer, por outro lado, do mundo material um sistema de causas e efeitos submetidos às leis da mecânica, Descartes torna ainda mais obscura do que já é para o senso comum a questão da criação. Ele colocou no mundo criado a necessidade absoluta e universal, e ocorre que essa necessidade aparece como efeito de um capricho divino. Mais do que isso, é preciso que Deus intervenha sem cessar no mundo, para manter o estado atual das coisas, para conservar as mesmas leis. Enfim, se Deus cria o mundo sem cessar, com tudo o que ele contém, ele também não cria nossas ações? E como, a partir de então, compatibilizar a liberdade do homem com a [tooltip tip=”Ou criação ‘continuada’, que, para alguns comentadores, traduz melhor a concepção cartesiana.”]criação contínua[/tooltip]? Essas três dificuldades graves, Spinoza as contorna por meio de uma concepção nova, uma concepção original: primeiramente, da relação entre real e possível; em segundo lugar, da relação de causa e efeito; em terceiro lugar, da relação do infinito ao finito. Essa concepção é essencialmente matemática, e o spinozismo não é inteligível para aquele que não acompanha com precisão a verdadeira natureza das proposições matemáticas e, em particular, da matemática cartesiana. Algumas considerações preliminares são, portanto, indispensáveis:

1°) Os objetos que o matemático estuda são objetos reais num certo sentido, pois a linha reta, a circunferência, a elipse etc. são verdadeiros seres para ele. Mas é preciso observar que a realidade desses seres converge com a sua simples possibilidade: pelo mero fato de que são possíveis, existem, no sentido matemático da palavra “existir”. Quando o geômetra quer provar a existência de duas retas paralelas, ele estabelece que é possível conceber duas retas situadas no mesmo plano e que não se encontram. E, com efeito, duas perpendiculares a uma mesma reta satisfariam essa condição. Duas retas paralelas são, portanto, possíveis. Isso basta, e, a partir de então, as paralelas existem. Mais do que isso, essa possibilidade, que existe desde sempre e é até mesmo independente do tempo, permite que se diga que o paralelismo de duas retas sempre existiu: ele é eterno. O ato pelo qual se estabelece a possibilidade de uma essência matemática é, portanto, o mesmo que aquele pelo qual se constata sua existência e até mesmo sua eternidade.

2°) Quando a definição de uma figura geométrica é enunciada, extrai-se um número indefinido de teoremas que exprimem todas as propriedades da figura. Todos esses teoremas existiam na definição de onde são extraídos e não fazem senão exprimir a infinita multiplicidade latente na unidade. Um matemático de inteligência infinita teria acesso a todos esses teoremas no próprio seio da definição a qual eles equivalem. Essa multiplicidade indefinida é equivalente a essa unidade. Está claro que é a definição que cria os teoremas. Eles são o seu efeito, já que não existiriam sem ela. Mas essa criação não é um ato arbitrário da definição. Os teoremas resultam necessariamente da definição pelo simples fato de que ela foi estabelecida. Eles não saem dela num certo momento, ainda que seja necessário tempo para que nosso espírito imperfeito possa deduzi-las. Os teoremas são eternos como a definição, eles lhe são coeternos, como diria Spinoza.

3º.) Enfim, é preciso observar que um objeto matemático é suscetível de ser expresso diversamente e que cada uma de suas expressões o contém totalmente. Considere, por exemplo, a ideia de um círculo. Ela pode ser expressa geometricamente por uma imagem circular e algebricamente por uma equação do segundo grau; ela ainda pode ser expressa de várias maneiras, mas conhecemos apenas duas delas. Mais do que isso, pelo simples fato de que o círculo é possível, todas as suas expressões conhecidas ou desconhecidas existem no mesmo grau e ao mesmo tempo, de tal modo que, uma vez estabelecido o círculo, todas as expressões do círculo, conhecidas ou desconhecidas, são também estabelecidas.

Em resumo, a existência é um conceito que tem dois sentidos: um que poderia ser chamado físico e outro, matemático. O primeiro desses dois sentidos é o mais comum. Se nos colocamos na perspectiva física, a existência não é uma simples possibilidade, pois há vários objetos concebidos como possíveis fisicamente e que não existem realmente. Se nos colocamos ainda nesse ponto de vista, a relação de causa e efeito não é uma relação necessária, pois, dada uma causa, o efeito não é dado ao mesmo tempo. Ao contrário, se nos colocamos na segunda perspectiva, se entendemos a existência no sentido matemático, o ser converge com o possível, e a relação de causa e efeito é simplesmente a relação necessária do princípio à sua consequência; isto é, no fundo a identidade. Veremos que o spinozismo consiste essencialmente em conceber a existência no sentido puramente matemático, em identificar assim a realidade das coisas com a sua possibilidade e a tratar a relação dinâmica de causa e efeito como uma relação matemática do princípio à consequência.

Resumo da Ética

Spinoza define a Substância como “o que existe em si e é por si concebido” (Ética I, definição 3). E se aceitarmos dar à palavra “existência” seu sentido matemático (o que é o postulado oculto de todo o spinozismo), pode-se concluir dessa definição que há uma Substância. Com efeito, se uma coisa não é concebida por si própria, ela é concebida por alguma outra coisa, e é forçoso que se chegue a uma coisa que só é concebida por si mesma. Portanto, a Substância existe. Em segundo lugar, não há senão uma Substância, e essa Substância é infinita. Com efeito, se houvesse várias Substâncias, ou se a Substância fosse finita, é porque uma Substância seria limitada por outras, e por isso seria necessário que essas outras Substâncias tivessem ao menos um atributo em comum com ela. Ora, duas Substâncias que teriam um atributo comum fariam apenas uma, pois o atributo, como veremos, é o que exprime a essência da Substância.

Essa Substância una e infinita é Deus. Sendo infinito, Deus possui uma infinidade de atributos ainda que não conheçamos senão dois deles: o pensamento e a extensão. Cada atributo de Deus se manifesta, por seu turno, por meio de uma infinidade de modos. Só conhecemos desses modos os que são modos do pensamento e da extensão. Se abordamos Deus em seus atributos, todos eles infinitos, diremos que ele é natureza naturante: natura naturans. Se o vemos sob a perspectiva da infinidade de seus modos e mais particularmente nos modos que conhecemos – os modos do pensamento e da extensão -, diremos que ele é natura naturada. Em outros termos, é o mesmo ser que, visto na sua unidade e infinidade, é Deus propriamente dito; e, visto na sua multiplicidade e [tooltip tip=”O termo utilizado por Bergson é indéfinité.”]indefinibilidade[/tooltip], é o mundo das criaturas. Deus não é, portanto, causa exterior do mundo, causa transitiva do mundo, como diz Spinoza. Ele é causa imanente. O mundo é co-eterno a Deus, e há entre as coisas criadas e o criador a mesma relação que entre os teoremas que saem de uma definição e a própria definição. Que diferença faremos [agora] entre os atributos e os modos?

1º.) O atributo, segundo Spinoza, é o que exprime a essência da Substância. É preciso tomar aqui a palavra “exprimir” em seu sentido matemático. Da mesma forma que o círculo se exprime a partir de si por uma figura geométrica, por uma equação analítica e, talvez, de muitas outras maneiras, e que se encontra inteiramente em cada uma de suas expressões, assim também a essência infinita da Substância divina se exprime no Pensamento, na Extensão e numa infinidade de outros atributos que não podemos conhecer porque somos apenas modos desse Pensamento e dessa Extensão. [tooltip tip=”O que elimina qualquer hipótese de transcendência ontológica, isto é, qualquer possibilidade de algo (um modo) separado desta realidade que vivemos, já que, como se vê logo a seguir, os modos exprimem os atributos, e a substância se dispensa inteiramente neles. Na filosofia bergsoniana, porém, essa hipótese não é completamente descartada, na medida em que a realidade do mundo, dita modal por Spinoza (natura naturata), não está toda ela virtualmente dada na eternidade divina da natura naturans, mas se dá a cada momento como novidade absoluta, fruto de um jorrar contínuo operando entre as coisas do mundo. A realidade é duração, mas a duração é expansão, e não continuação indefinida de certa ordem causal eterna. Cf. A evolução criadora, a comparar com as definições de eternidade e duração em Spinoza (Ética I, definição 8; e II, definição 5). Está claro que não se trata, para Bergson, de afirmar outra realidade além desta, mas de estabelecê-Ia como duração absoluta e eterna cujo sentido é oposto ao da repetição material. Desse modo, Bergson inverte o princípio da filosofia de base platônica em termos do privilégio que ali é dado ao imutável, vinculando essa esfera à materialidade, que passa a exercer um papel secundário e dependente: ‘Toda esta filosofia que começa com Platão para desembocar em Plotino é o desenvolvimento de um princípio que formularíamos assim: Há mais no imutável do que no movente e passamos do estável ao instável por uma simples diminuição. Ora, é o contrário que é a verdade’ (O pensamento e o movente, p. 245). Mas esse procedimento é precisamente o que permite pensar a eternidade-duração bergsoniana como um princípio superior e independente, reintroduzindo a transcendência em outros moldes, conforme algumas tendências ‘espiritualistas’ em que o mundo externo à consciência é apresentado como ilusório.”]Deus está, portanto, inteiramente em cada um de seus atributos.[/tooltip]

2º.) O modo. Os modos exprimem de todas as maneiras possíveis o conteúdo de cada atributo. Se supusermos de um lado a definição geométrica do círculo e de outro sua equação algébrica, extrairemos da definição teoremas e da equação outras equações. É assim que, se estabelecemos o Pensamento e a Extensão, o que resulta é, por um lado, todos os modos possíveis do Pensamento, isto é, todas as ideias possíveis; e, por outro, todos os modos possíveis da Extensão, isto é, todos os corpos possíveis.

Assim, Spinoza assimila a existência da Substância à de um objeto matemático, o que lhe permite provar a existência de Deus pela demonstração de sua simples possibilidade. A Substância que ele obtém dessa forma se exprime a partir de si mesma em atributos infinitos, e esses Atributos se exprimem a partir de si mesmos em modos. Em lugar nenhum existe uma força criadora ou uma escolha livre. Tudo o que é, existe necessariamente.

Natureza naturante

Deus que é natureza naturante se exprime em seus Atributos em número infinito entre os quais conhecemos apenas o Pensamento e a Extensão.

1º.) A Extensão como atributo, isto é, a Extensão em Deus, não é a extensão de que temos ideias. A extensão que conhecemos é composta de uma multiplicidade de partes. A Extensão divina ou Extensão como atributo é una e indivisível. Mas, poder-se-á dizer, se a extensão que conhecemos é um modo da Extensão como atributo, como a primeira pode ser divisível e a outra indivisível? Essa dificuldade, colocada ao spinozismo desde muito tempo, está longe de ser insuperável. Os modos não são partes do Atributo. Se os corpos que percebemos fossem partes da Extensão divina, é por demais evidente que esta seria divisível como esses corpos. Os modos desenvolvem o conteúdo do Atributo, mas não se assemelham a ele. É assim que, se supusermos todos os círculos possíveis como já traçados, eles são o desenvolvimento de todo o conteúdo da ideia de círculo, e, não obstante, essa ideia enquanto tal é indivisível.

2°) Deus é pensamento, mas o Pensamento divino ou Pensamento como atributo se assemelha tanto ao nosso pensamento que é um modo do Pensamento quanto o Cão, constelação celeste, se assemelha ao cão, animal que late. Os modos do Pensamento são efetivamente finitos, e o Pensamento divino é infinito.

3°) A liberdade. Deus é livre? Se tomamos a palavra “liberdade” no sentido de livrearbítrio, isto é, como livre escolha, não faria sentido, segundo Spinoza, atribuir a Deus semelhante liberdade, pois “o que Deus faz deriva necessariamente de sua essência assim como as propriedades do triângulo derivam necessariamente da essência do triângulo” (Ética, II, proposição 44, escólio). Mas Deus é livre no sentido spinozista da palavra. Spinoza define a liberdade efetivamente da [tooltip tip=”Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir (Ética, I, definição 7)”]seguinte forma[/tooltip]: “Ea res libera dicitur quae ex sola suae naturae necessitate existit et a se sola ad agendum determinatur”. Assim, a liberdade, segundo Spinoza, é o estado de um ser que não sofre nenhuma limitação exterior a si mesmo, não recebe de fora as leis de seu desenvolvimento, mas se desenvolve em virtude de uma necessidade inerente à sua natureza. A liberdade spinozista é, portanto, o que chamaríamos de “necessidade interna”.

Desenvolver-se necessariamente, mas conforme sua própria essência, eis aí a verdadeira liberdade segundo Spinoza. É assim que uma definição geométrica, se tomasse consciência de si mesma e de seu desenvolvimento em teoremas, seria livre nesse sentido em que o teorema é apenas a expressão de sua natureza e não depende de nenhuma outra causa. Uma vez que Deus é a Substância única e é todo o ser, ele não pode ser tomado por nenhuma necessidade exterior a ele. Ele se desenvolve, portanto, de forma livre, ainda que necessária.

4°) A impessoalidade. Segue-se daí que Deus não é uma pessoa. A pessoalidade ([tooltip tip=”No original em francês, ”personnalité'”]personalidade[/tooltip]) é uma determinação e, por conseguinte, uma limitação. Deus é um Pensamento infinito ou uma Extensão infinita. Ele é infinito em todos os sentidos.

Eis o Deus de Spinoza, Substância infinita se exprimindo necessariamente em Atributos infinitos e em Modos infinitos e finitos. Ele contém eminentemente – como dizia Descartes -, e não formalmente, o pensamento e a extensão que representamos; assim como uma infinidade de outros Atributos. Mas ele não é uma pessoa, porque a Substância não é uma propriedade, mas sim uma negação de toda qualidade.

Natura naturada

A natureza naturada não guarda com a natureza naturante as relações que se dão entre uma coisa criada e seu Criador. Ela lhe é co-eterna e se segue necessariamente da essência de Deus, da qual é expressão múltipla e indefinida. A natureza naturada é um conjunto de Modos, Modos da Extensão de um lado, do Pensamento de outro.

1°) Os corpos. Os Modos da Extensão são os corpos. Retomando nesse ponto as ideias de Descartes e as desenvolvendo, Spinoza representa o universo material como um sistema indefinido de elementos extensos submetidos a leis necessárias. Tudo se explica [tooltip tip=”Pode-se dizer que nisso reside o essencial da crítica que Bergson dirige ao spinozismo. Para o filósofo francês, Spinoza não levou a intuição como síntese unificadora dos fatos da consciência até o final e, por causa disso, foi incapaz de descobrir a duração absoluta, isto é, uma eternidade-duração independente dos movimentos materiais. A razão disso estaria no fato de Spinoza ter ficado preso à pesada massa de conceitos herdados do cartesianismo e do aristotelismo. Haveria, portanto, um contraste entre a forma e o fundo da Ética: entre a intuição de auto-criação da realidade e a tendência mecanicista que esmigalharia a consciência ao apresentá-la como coextensiva à matéria (cf. ‘A intuição filosófica’, in: O pensamento e o movente).”]mecanicamente[/tooltip], os corpos viventes assim como os demais corpos. Mais do que isso, todos os corpos vivem de uma certa maneira, pois a todo corpo responde uma ideia que é como a alma dele. Mas, como também veremos, não pode haver nenhum contato, nenhuma comunicação entre as ideias e os corpos. Além disso, nada é mais absurdo, segundo Spinoza, do que crer numa finalidade na natureza. A finalidade é a ideia penetrando na matéria. Ora, entre os Modos do Pensamento e os da Extensão toda comunicação é impossível e inconcebível. Os estados dos corpos e suas mudanças se explicam, portanto, por causas puramente mecânicas, e um Modo da Extensão não pode achar sua explicação e sua razão de ser senão em outros Modos da Extensão.

2°) As ideias. Os Modos do Pensamento são as ideias. Da mesma forma que o atributo Extensão se exprime numa infinidade de modos extensos, assim também o atributo Pensamento se desenvolve numa infinidade de ideia. Da mesma forma que todo modo da extensão se explica por modos da extensão, assim também toda ideia encontra sua razão em outras ideias. Essa é a razão pela qual os corpos não poderiam influir nas ideias, assim como estas não podem exercer influência sobre os corpos. De que maneira, então, conhecemos os corpos, e como se explica a ação aparente do pensamento sobre as coisas e das coisas sobre o pensamento? É que a série dos Modos do Pensamento e a série dos Modos da Extensão são duas séries paralelas. Na realidade, os Modos do atributo Extensão desenvolvem e exprimem todo o conteúdo do atributo Extensão; os Modos do Pensamento exprimem todo o conteúdo do atributo Pensamento; e como o Pensamento e a Extensão são, por sua vez, apenas duas expressões equivalentes da essência da Substância, segue-se que, para todo modo extenso deve corresponder um modo do pensamento e reciprocamente. Todo corpo também responde a uma ideia, e toda ideia, a um corpo. A alma humana não é outra coisa senão a ideia do corpo ao qual ela se encontra ligada. Como diz enfaticamente Spinoza: [tooltip tip=”A ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas” (Ética, lI, proposição 7).”]”ordo et connexio idearum idem est atque ordo et connexio rerum”.[/tooltip]

Segue-se daí que, no nosso pensamento em particular, não podem haver ideia que não representem alguma realidade e, inversamente, nada pode acontecer ao nosso corpo de que nossa consciência não esteja advertida. E, no entanto, entre o corpo e o pensamento não há comunicação possível. Suponhamos, para compreender a concepção spinozista das relações entre a alma e o corpo, a ideia do círculo se exprimindo, de um lado, por uma equação algébrica e, de outro, por uma definição geométrica; se desenvolvemos essa definição em teoremas que chamaremos A1, A2, A3, A4 e se desenvolvemos essa equação em equações que chamaremos a1, a2, a3, a4, os termos a3 e a4, por exemplo, representarão sob forma algébrica as mesmas coisas que os termos A3 e A4 representam sob forma geométrica, pela razão bastante simples de que as duas séries desenvolvem e exprimem em duas línguas diferentes a mesma essência da circunferência. Entretanto, nem uma equação poderia influir sobre uma figura nem uma figura sobre uma equação, porque a forma e a quantidade são dois atributos diferentes no sentido spinozista da palavra. É dessa mesma maneira que todo corpo tem sua ideia e que toda ideia tem seu estado corporal. A correspondência dos Modos do Pensamento e da Extensão se explica, portanto, por uma [tooltip tip=”A utilização do termo ‘harmonia preestabelecida’ parece um pouco forte para designar o necessitarismo spinozista. Ela talvez se explique pela aproximação que Bergson fará posteriormente entre Spinoza e Leibniz: ‘se eliminada das duas doutrinas (de Spinoza e Leibniz) o que lhes dá a animação e a vida, se retemos apenas a ossatura delas, temos diante de nós a imagem que obteríamos se olhássemos o platonismo e o aristotelismo através do mecanicismo cartesiano. Estamos na presença de uma sistematização da nova física, sistematização construída com base no modelo da antiga metafísica’ (A evolução criadora, p. 375). Ao situar Spinoza dentro da órbita greco-cartesiana, fica realmente difícil compreender sua filosofia como distante do mecanicismo e distinta de uma mera sistematização da ciência de sua época. Todavia, a realidade ou Substância spinozista é uma totalidade infinita de causas que, por isso mesmo, não se coaduna a ideia mecanicista de leis causais discretas e independentes umas das outras, capazes de assegurar regularidade absoluta, como na imagem do tic-tac de um relógio. Eis porque Spinoza não necessita recorrer a um Deus de tipo leibniziano para assegurar a liberdade nem tampouco à tese de uma harmonia preestabelecida que dê conta da relação entre Pensamento e Extensão. Parece bastar – ao contrário do que supõe Bergson, insatisfeito com a tese paralelista – o que ele próprio chama, aqui, de ‘desenvolvimento necessário da essência da Substância’.”]harmonia preestabelecida[/tooltip] e pelo mero efeito do desenvolvimento necessário da essência da Substância.

Entre os Modos do Pensamento, há os que nos interessam em particular. Trata-se daqueles que, reunidos, formam a alma humana. A alma não é uma substância, posto que Deus é a única Substância. Nossa alma é uma coleção de Modos do Pensamento que exprimem cada qual sob forma de pensamento um certo estado do nosso corpo. Da mesma forma que os Modos da Extensão são submetidos a um mecanismo inflexível, assim o desenvolvimento dos Modos de Pensamento é rigorosamente necessário. Não há [tooltip tip=”‘Na natureza nada existe de contingente’ (Ética, l, proposição 29).”]contingência[/tooltip], diz Spinoza, nem nos Modos do Pensamento e nem dos da Extensão: “Nullum datur contingens in rerum natura”.

Compreende-se, portanto, por que Spinoza apresentou nas três últimas partes da Ética uma psicologia que é, ao mesmo tempo, uma metafísica, em que ele trata dos estados da alma a partir da ideia da Substância e de seu desenvolvimento necessário. Spinoza classifica as ideias em ideias adequadas e inadequadas. Há duas maneiras principais de conhecer uma coisa: pode-se, de início, buscar as relações da coisa finita com outras coisas finitas. Mas, como estas dependem a seu turno de outras coisas finitas, e que, de uma maneira geral, todos os modos em número infinito de um mesmo atributo estão em conexão mútua, nunca a coisa será perfeitamente conhecida. A ideia permanecerá inadequada. Há outro modo de conhecer, que consiste em se recolocar por meio do Pensamento no Princípio em que a coisa está contida, à maneira de um Modo no atributo. Então, percebe-se de uma só vez, e numa única intuição, a relação da coisa finita com o Princípio infinito de onde ela [tooltip tip=”Aqui, mais uma vez, creio que falar de ‘emanação’ no contexto do spinozismo parece um pouco exagerado, na medida em que isso tende a aproximar demais a doutrina neoplatônica de Plotino da concepção de Spinoza. No entanto, como bem mostrou Deleuze em seu livro maior sobre o filósofo holandês (Spinoza e o problema da expressão, capítulo XI: ‘A imanência e os elementos históricos da expressão’, p. 153-169), há duas diferenças extremamente importantes a se destacar entre a ideia de emanação a partir de um Princípio infinito e a ideia de Imanência do Princípio-Substância infinita nos modos vistos como suas afecções. É bem verdade que o Princípio, compreendido tanto como causa emanativa quanto como causa imanente, permanece em si ao produzir. Contudo, na causa emanativa, o efeito produzido não reside em nenhum momento nela própria (1). Segundo a fórmula plotiniana: ‘é porque nada está nele (no Um-Uno como princípio ou causa das causas) que tudo vem (emana) dele’ (Enéadas, V, II, § 1). Na causa imanente, ao contrário, o efeito está e permanece ali, dentro do – por assim dizer – processo de produção; ele não sai ou emana da causa como no som emitido por uma corda. O efeito imanente fica na causa tanto quanto esta permanece em si mesma. Eis porque é impossível ver na imanência algo da ordem da degradação, como ainda é o caso do neoplatonismo. Em segundo lugar, a imanência implica uma ontologia em que o chamado Um é apenas uma propriedade da substância, sem designar um termo superior (Uno) aos seres produzidos. A imanência estabelece, assim, o princípio de uma igualdade do ser: ele permanece igual em si mesmo (um), mas está igualmente presente em todos os seres (múltiplo). “]emana[/tooltip] e, por conseguinte, também, a relação com a infinidade das coisas finitas que equivale a esse Princípio. Obtém-se, assim, a ideia adequada, e não mais inadequada, do objeto pensado.

Entre as ideias inadequadas, é preciso colocar as paixões que exprimem nos modos do Pensamento as modificações que o corpo recebe dos demais corpos. É ao estudo das paixões, da escravidão a que elas nos reduzem e do estado de liberdade que podemos atingir, que são dedicadas as três últimas partes da Ética. Spinoza, que trata o livre-arbítrio como uma ilusão ou quimera, não deixou por isso de escrever um tratado de metafísica que contém um sistema moral. Mas não devemos achar que Spinoza nos dá conselhos ou mesmo [tooltip tip=”Trata-se, porém, de um sistema moral-ético que destoa da moral entendida como teoria dos deveres (segundo um Bem e um Mal) para se transformar em teoria da potência, que parte de uma análise do desejo. Não se trata apenas – como coloca Bergson – de não dar conselhos ou afirmar regras de conduta. Importa, sobretudo, recusar a naturalização e reificação dos valores humanos para pensá-los em termos de variação de potência, um caminho que parece muito pouco explorado pelo bergsonismo.”]regras de conduta[/tooltip]. Tudo o que fazemos se segue necessariamente daquilo que somos, e todo conselho é inútil, assim como todo lamento acerca do que poderíamos ter feito é pueril. O papel do moralista é de definir o bem e o mal, os melhores estados e os que devemos considerar como piores. Trata-se de determinar em que condições a escravidão é produzida, em que condições se produz o estado de uma alma liberada do jugo das paixões.

Mas o moralista não reforma a humanidade ao tratar do bem e do mal, assim como [tooltip tip=”Uma vez mais, a questão parece ir além dessa comparação com a geometria. O caráter demonstrativo do encadeamento de proposições sob a forma geométrica aparece, no spinozismo, antes de tudo, como uma escolha teórica. Spinoza não é Galileu. Nesse sentido, não é a natureza que está escrita em linguagem matemática, mas é o more geométrico que serve de crivo para nossas ideias acerca da natureza por se elevar acima do nível das percepções primeiras, de caráter puramente imaginativo ou corporal. Não se trata, é claro, de tentar reformar a humanidade, mas de permitir que os homens compreendam a natureza interna e externa a cada um deles de modo a permitir que eles sejam determinados mais intrínseca do que extrinsecamente. O necessitarismo spinozista está, portanto, longe de ser uma doutrina que ensina a suportar tudo que ocorre porque ‘tem de ser assim’. A descrição feita por Bergson na passagem não ajuda a compreender a diferença fundamental que há entre os homens e os demais modos (corpos) na filosofia de Spinoza. É o preconceito contra o determinismo (identificado ao mecanicismo) que talvez impeça o filósofo francês de melhor avaliar o que está em jogo no spinozismo e, até mesmo, de ver nele um aliado na afirmação da duração. Um geômetra não pode, certamente, modificar a posição de um corpo ao determinar as condições de seu equilíbrio. Ele pode, porém, modificar a posição de seu próprio corpo diante desse outro corpo a partir da determinação das condições de equilíbrio de ambos os corpos. Ele pode, até mesmo, descobrir novas possibilidades para o seu próprio corpo em função de um desejo que não se reduz a uma mera necessidade mecânica dos corpos quaisquer que sejam eles e em qualquer situação que seja.”]geômetra[/tooltip] não modifica a posição de um corpo ao determinar as condições de seu equilíbrio.

Há, com efeito, dois estados possíveis da alma. Olhando as ideias inadequadas, e mais particularmente as paixões, a constituem essencialmente, ela é escrava. [Mas] ela é livre quando escapa à paixão, isto é, quando passa da ideia inadequada à ideia adequada, quando pensa não sob forma finita mas sob forma de eternidade, sub specie aeterni. O bem e o mal, segundo Spinoza, devem se definir em termos de aumentos e diminuições de ser, ou seja em termos de força, e existimos plenamente quando nos re-situamos por meio do pensamento em Deus, quando nos damos conta da necessidade universal. Se, portanto, a liberdade consiste, no caso de Deus, na necessidade de seu desenvolvimento interior, ela consiste, no caso do homem, na consciência que ele consegue ter de suas relações com Deus, isto é, na consciência da necessidade a qual ele obedece. É nisso que consiste a liberdade, e é nisso que também consiste a [tooltip tip=”A beatitude, ou suprema felicidade, não deve ser confundida com o estado de êxtase místico qualquer que seja ele, mas diz respeito à situação em que passamos a desejar apenas o que conduz à ação, o que nos convém, o que pode aumentar nossa potência de existir ou de agir.”]beatitude[/tooltip]. A beatitude não é o prêmio pela virtude – diz Spinoza -, ela é a própria virtude. Pois a virtude é o estado de uma alma que compreende e sente o parentesco que tem com Deus, estado de uma alma que se encontra, por assim dizer, recolocada em Deus. Aí também se encontra a eternidade, pois a eternidade não é algo que é acrescentado à alma e que prolonga de algum modo sua existência, indefinidamente. Tornamo-nos eternos pelo simples fato de que, ao pensar as coisas sob forma de eternidade, coincidimos, por assim dizer, com o eterno. O eterno não vem até nós, somos nós que entramos na eternidade, pelo simples fato de que, uma vez liberados das paixões, adquirimos algo da liberdade divina.

Extraído das aulas complementares de filosofia e história
da filosofia por Henri Bergson – ClermontFerrand, 1884-1886.
Tradução e notas com comentários de Paulo Domenech Oneto.
ln: BERGSON, Henri. Cours ID: Leçons d’histoire de la philosophie moderne.
Théories de fâme. Paris: PUF, 1998, p. 86-96.

Organizadores: Eric Lecerf, Siomara Borba e Walter Kohan.

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