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Fuganti – Onde há presença da potência o poder não cola (conferência transcrita)

Transcrição da palestra proferida por Luiz Fuganti no 1º CULPSI – Cultura & Psicologia, evento realizado pelos estudantes de psicologia da Faculdade de Tecnologia e Ciências
Campus Universitário de Vitória da Conquista-BA
Entre os dias 02 e 04 de maio de 2007

Aplausos…

Essa expressão me emociona… Antes de tudo, boa noite a todos. É uma alegria imensa, é uma honra estar aqui e ser chamado pra ocupar um lugar, um tempo… Espero que esse tempo seja proveitoso para vocês e que… A gente sente que tem a dizer em relação aos problemas mais essenciais que atravessam as nossas vidas. Então, eu dizia que os problemas essenciais que atravessam as nossas vidas muitas vezes não são tocados, a gente apenas apreende os sintomas e os efeitos desses problemas, e a gente de alguma maneira tenta resistir, ou gritar, ou fazer com que algo em nós (algum tipo de voz, algum tipo de força) se manifeste. Mas, enquanto a gente não apreender mais do que os sintomas ou do que os efeitos; enquanto a gente não sair simplesmente de uma resistência; enquanto a gente ainda focar o outro ou uma referência (seja do ponto de vista do mal, seja do ponto de vista do bem… “evitar ou combater o mal”, “seguir e fazer o bem”), eu penso que a gente não está fazendo nada efetivamente. Estamos fazendo muito pouco, ou quase nada.

Me incomoda um pouco mais a palavra “resistência” do que talvez o conceito de resistência. Porque eu acho que mais que resistir, ou talvez, a melhor forma de resistir seja criar; a melhor forma de ocupar o espaço e o lugar é inventar lugar, esquecer os espaços dados. É inventar o próprio tempo, e não “ter tempo pra gastar”. Então, eu acho que não existe saída – mais até do que liberdade –, não existe saída senão a partir do crescimento de nós mesmos. Eu acho que antes de tudo a gente tem que começar a aprender a abrir as portas pr’as forças que nos atravessam, mais do que querer ocupar um papel ou uma função que talvez nos tenha sido designada (esses papéis, essas funções…) por forças que nós já esquecemos e são forças de poder.

Eu não acho que é uma boa saída, uma boa solução a gente ocupar o poder, ocupar lugares de poder. Eu acho que nossa questão é desconstruir o poder. O poder – se ele é masculino, se ele é feminino, se ele é negro, se ele é branco, se ele é índio… – só acontece a partir da impotência. Não há poder que não se alimente da impotência, que não precise das paixões tristes pra viver. Todo poder, ele está fundado na impotência. Então, isso pode até gerar algum tipo de confusão porque vocês podem pensar: “bom, mas então o que sobra? Se não tem o poder, se os que ocuparam o poder, os que ocupam o poder, os que têm poder, os que exercem poder simplesmente… devem ser varridos, devem ser eliminados e não ter mais poder de forma alguma?”. É exatamente o contrário: o que sobra é o que há de pleno na vida.

O poder é que deixa a vida imperfeita, que deixa a vida triste, que deixa a vida tediosa, que faz nos sentir ridículos, impotentes, tristes, entediados, depressivos e todas as desqualificações que a gente possa aqui enumerar. É o poder que na verdade obstrui os poros, as passagens dos afetos, das forças, dos tempos próprios que nos atravessam e que nós não sabemos mais tocar, nós não temos mais a sensibilidade pra essas forças, não temos mais a visão do tempo ou do imperceptível pro tempo próprio que nos atravessa, pro ritmo do nosso coração (não simplesmente como uma metáfora do coração, mas de fato um ritmo)… Não há ser neste universo que não tenha ritmo próprio, que não tenha vibração própria, que não crie tempo, que não crie espaço, que não crie corpo, a não ser quando ele perdeu a capacidade de reencontrar a fonte que o alimenta. E na medida em que a gente perde a capacidade de reencontrar a fonte que nos sustenta – que nos faz respirar, que nos faz ouvir, que nos faz falar, que nos faz pensar, que nos faz escrever, que nos faz andar, que nos faz ler, que nos faz acontecer… –, na medida em que a gente perde a relação com essa fonte, a gente pensa que o acontecimento é o lugar de uma banalização, de uma vulgarização, de uma desqualificação da vida. A vida não está mais no acontecimento. E a gente desinveste o acontecimento em prol de uma referência.

Essa referência, ela tem vários nomes: você pode chamar isso de Deus, de Estado, de Lei, de Capital, de Função, de Profissão, de Papel Social, de Devoção Pública, de “salvador-de-meninos-carentes”… O que eu quero dizer é que sempre que a gente foca o nosso desejo num objeto, algo falta ao nosso desejo. E essa visão – ela já está sendo investida há pelo menos dez mil anos –, ela vem atravessando os modos humanos de ser. Na medida que falta algo ao desejo, falta algo essencialmente à existência. E na medida em que falta algo à existência, a gente busca uma “verdadeira existência” em algum lugar, em outro mundo, em Deus… Mas esta existência se torna imperfeita, se torna desqualificada; nós não sabemos mais encontrar a fonte da plenitude, aquilo que faz sentir que ao desejo não falta nada. Aquilo que põe a potência não no lugar do poder – porque nós temos que destruir o lugar –, mas a potência no acontecimento. E o acontecimento não tem lugar, ele faz o lugar; ele não tem tempo, ele faz tempo. Nós fabricamos tempo, nós fabricamos lugar, nós fabricamos os corpos, os afetos, inclusive a maneira da gente perceber o mundo.

Então, eu sinto que muitas vezes… A gente viu aqui um filme1 belíssimo, mas em algumas falas do filme, alguma coisa ainda atravessa uma espécie de choramingo, uma espécie de queixa; a gente ainda chora demais, ainda se queixa demais, ainda lamenta e busca a causa da injustiça que nos acontece. Sempre a gente vê alguma coisa de feio no acontecimento. Evidentemente, porque o acontecimento está banido. O que temos são fatos, o que temos são imagens, o que tem é consumo, o que tem é incapacidade de experimentar realmente: nós consumimos no lugar de experimentar. Mas será que de fato nós consumimos? O que nós consumimos?

Eu diria, concordo com uma fala do filme que diz que nós temos que virar “anti-consumistas”, ok! Mas anti-consumistas daquilo que é inconsumível, daquilo que não é experimentável: uma imagem morta não é experimentável; uma marca não é experimentável; um objeto de consumo através da sua imagem, do seu valor atribuído por uma moeda ou por um reconhecimento não é algo vivo. Então, portanto, não é algo consumível. Então, eu diria o contrário: eu acho que nós não consumimos, nós não sabemos consumir, porque existe um consumo que é essencial à vida; a vida consome pouco, ela não consome quase nada. É por isso que somos miseráveis. Miseráveis não apenas internamente, mas nas relações. Porque o interior de qualquer coisa é sempre uma relação que desemboca no fora. Não existe uma interioridade em si, é sempre na relação. E a gente é miserável nas nossas relações.

Quando a gente quer ajudar, quando a gente que reformar, quando a gente quer revolucionar a gente sempre vai atacar alguma coisa. (Aquilo que o Negri2 fala e que o Valter chamou atenção em relação à idéia de “êxodo”, do desinvestimento, é uma coisa muito interessante, porque há uma cumplicidade na sustentação do poder). Nós sustentamos o poder mesmo, e talvez, principalmente, quando nos opomos a ele. Claro que a oposição ao poder é fundamental, num certo sentido. Mas, mais por efeito do que por finalidade. E como é que a gente se opõe eficazmente ao poder? A gente se opõe eficazmente ao poder na medida em que a gente cria – não exatamente uma alternativa, mas uma via implacável, necessária: não é alternativa de nada! Porque não é livre escolhe, não se trata de livre escolha, se trata de uma fatalidade, de uma necessidade: a vida tem que se efetuar. A questão é: Como ela se efetua? E aí entra o problema ético.

Como a vida se efetua? Qual a qualidade da efetuação? Agora, que ela se efetua, ela se efetua necessariamente: ela se efetua achando que o desejo é falta; ela se efetua achando que tem que ter um provimento; ela se efetua achando que tem que ter uma verdade que ela busca, que ela introjeta e que orienta a si… ela se efetua de alguma maneira. Mas ela se efetua também na medida em que ela é capaz de produzir, a partir de si, uma diferença, sem a qual não haveria invenção, não haveria criação. Nós só somos efetivamente livres quando nós criamos – não apenas objetos no mundo, mas quando nós criamos as condições da produção dos objetos, as condições dos movimentos, dos afetos, das ações e das paixões, das experimentações sensíveis do corpo, as condições da produção e da invenção do pensamento, porque pensar antes de tudo é inventar. Não basta imaginar para pensar. Pensar é inventar realidade. Qual é a realidade que o pensamento inventa? O pensamento inventa sensações (como objeto da arte), inventa funções (como objeto da ciência), inventa acontecimentos virtuais ou conceitos (como objeto da filosofia, por exemplo). Mas são realidades, não são representações. A representação, ela tem uma dupla função: ela tem sempre a função essencial de desqualificar a vida, porque ela quer se por no lugar, ela que pôr algo supostamente mais importante “fora da vida” para governar e controlar a vida. Mas aí eu diria: de onde vem a representação? Ou de onde vem esse mal, esse mal humano que o homem fez para ele mesmo? O homem inventou uma gaiola e entrou dentro dela. E mesmo quando você abre a porta da gaiola, ele sai, não sabe muito o que fazer, volta pra dentro dela. Mesmo que muitas vezes essa gaiola se chame “igualdade”, “liberdade”. O que que a gente entende definitivamente por liberdade? Será que liberdade é livre arbítrio. E igualdade? Igualdade em que sentido? Será que a igualdade não é um engodo, um engodo tremendo? Ou então, outra coisa que agora virou moda dizer: “respeito às diferenças”. De que ponto de vista o respeito às diferenças é de fato um exercício da diferença? Ou é apenas uma maneira de substituir a diferença pelo discurso: “respeite a diferença, viva a diferença” mas fazer a diferença, é outra coisa! Então, será que a gente é capaz de sair do discurso da representação?

Diz-se sempre que uma coisa é a teoria e outra coisa é a prática. Só pra quem não pensa! Porque pra quem pensa, teoria e prática é uma coisa só. Não tem como o pensamento, se ele é pensamento, não ser uma ação, não ser um ato, ou não ser uma criação… Ou então ele não é pensamento, então a gente está chamando o pensamento de outra coisa, ou outra coisa de pensamento, seria bom a gente adequar aí, a palavra ao conceito.

Então, o que eu queria chamar à atenção é que, na verdade, não existe poder que não seja exercido. E não existe exercício de poder que não se exerça sobre o objeto que o interessa: o objeto de extração de energia, extração de mais-valia, de extração de captura, de extração de atenção… e essa extração ou esse exercício se dá sobre o quê? Sobre os nossos corpos, sobre o nosso pensamento. O exercício se dá sobre nós. Portanto… você Mônica dizia antes aqui, não é?: “como as mulheres deixaram que os homens tomassem conta?”. É claro que você fez um pouco de brincadeira, zoou um pouco com a cara dos homens de modo muito interessante, com muito humor, é muito bom isso. Mas, agora eu quero generalizar tua questão e dizer assim: “Por que que a gente deixa que o poder se exerça sobre nós?” – Por que o poder só se exerce sobre nós. Sem nós, o poder não tem sentido nenhum. Ora, se ele se exerce sobre nós, é porque nós somos muito importantes para o poder. É assim, tipo aquelas ligações telefônicas que você liga e aí fica esperando, e do outro lado da linha diz assim: “não desligue, você é muito importante para nós”… nós somos… é a mesma relação.

A miséria é muito importante para o poder, a desqualificação é muito importante para o poder, o cinismo é muito importante para o poder, a hipocrisia é muito importante para o poder. E é muito importante para o poder incluir-nos na miséria. O discurso da inclusão é abocanhado pela direita e pela esquerda? O que que acontece de fato com a esquerda, sempre que ela empreende movimentos revolucionários e, na grande maioria dos casos, ela fracassa? Será que o motor, o motivo revolucionário é a potência ou o ressentimento?

Geralmente, alguma coisa berra em nós, eu dizia no início. Alguma coisa berra, a gente quer se expressar, ás vezes a gente não sabe expressar, e quando conquista uma expressão, maravilha! Até festa isso vale. Vale festa, a gente tem que cultuar isso. Mas a gente tem que começar a refinar um pouquinho mais, não pra elitizar, mas refinar no sentido de começar a perceber “quem fala em nós”. Que força nos atravessa? Que força que reivindica igualdade, liberdade etc. etc. O que quer o desejo que quer algo? Ao querer algo, o que meu desejo quer?

Muitas vezes nós somos enganados, geralmente somos enganados pela nossa consciência. Há um paradigma ocidental, eu diria que é um postulado, isso está dado como uma verdade ocidental, que a consciência é o lugar da luz, da razão, da clareza. A gente aqui diria o contrário: a consciência é o lugar do retardamento. Eu me torno retardado sempre que eu vivo a partir da consciência. A consciência sempre chega depois. Ela sempre chega depois que o mais importante já se passou, onde não há mais nada a decidir. Mas eu posso simplesmente reagir. É por isso que essa palavra, “resistência”, me incomoda um pouco. Reagir a partir da consciência, ainda é uma maneira, certo. Febre ainda sinaliza que o corpo está trabalhando; dor ainda sinaliza que as forças precisam se dispor de um modo diferente. Mas essa sinalização é apenas o sintoma. O que move, de fato? O que produz a febre? O que produz a dor? Será que a dor não é muito bem vinda? Será que o sofrimento não é muito interessante? Será que a doença e a miséria, às vezes, não são um presente, um dom?

Muitas vezes a gente se sente injustiçado, a gente não tem atenção suficiente, a gente só existe – não pelo consumo, que é o que diz o filme3, porque o consumo ainda não basta, nós precisamos do olhar do outro pra existir. E que tal se a gente conquistasse um olhar que não é nem do outro, nem o meu, mas um olhar entre, que nos faz outro e a si ao mesmo tempo. Que não tem esse espelhamento, mas que tem uma ressonância.

Sempre que a gente reivindica um reconhecimento, uma existência, a gente vai, sem exceção, buscar o melhoramento do mundo. A gente vai querer melhorar o mundo. Só quem quer melhorar o mundo é o moralista. Aqui eu queria introduzir a diferença entre Moral e Ética.

O moralista é aquele que quer reformar ou melhorar o mundo. Mas há um pressuposto naquele que quer reformar ou melhorar o mundo. O pressuposto é que há alguma coisa no mundo ou na natureza que tem que ser reformada, certo? Que não vai bem. Mas, e aquilo que sustenta a vida, aquilo que sustenta a natureza, aquilo que existe necessariamente, aquilo que produz a si mesmo e produz todas as coisas não vai bem? Ou não vai bem a nossa capacidade, nossa sensibilidade, nossos poros entupidos, que não acedem mais a essa realidade auto-sustentável, que não tem falta nenhuma, que não precisa de objeto fora dela pra se satisfazer?

Há uma realidade em nós que é uma realidade plena. Ao desejo – diria Espinosa – não falta nada. Ou, a toda potência corresponde uma capacidade de afetar e ser afetado. O que nós fazemos da nossa capacidade de afetar e ser afetado? Isso é que está em questão sempre.

A moral diz: “encontre a verdade, encontre o ideal, encontre o horizonte, o bem, a boa maneira de ser, encontre o dever-ser da existência… A vida não vai bem, precisa ser reformada e melhorada. A vida está em dívida, a vida precisa encontrar a forma verdadeira de ser”. Isso é o que reza a moral. A moral liga a existência à obediência, liga a existência a um dever-ser.

A ética faz ao contrário. (E essa distinção não é dominante. Geralmente se confunde ética e moral. A gente está criando aqui uma distinção a partir de alguns filósofos ocidentais; de alguns pré-socráticos – mas principalmente de Epicuro e Lucrécio –, Espinosa, Nietzsche, Bergson, Foucault, Deleuze…). A ética liga a existência ao que ela pode e não ao que ela deve. A existência pode. E aí, vocês podem fazer aquela pergunta tradicional: “mas se a existência pode, ela também pode matar, ela pode fazer o mal, ela pode adoecer, ela pode isso, ela pode aquilo…”. Eu diria que não há potência no negativo. A potência é totalmente afirmativa. Não existe uma ação – que se possa chamar de ação – que não seja positiva e alegre. Toda ação é positiva. Toda ação é alegre. Toda ação é uma potência de composição. Mas a gente geralmente moraliza a ação. A gente diz: “não, mas existem ações más”. Se for ação, não pode ser. Mas pode, acontece de uma ação me fazer mal. Mas por quê? Porque que geralmente uma ação, que é uma potência de composição, nos faz mal? Por que nós, geralmente, estamos separados do que podemos. Nós estamos separados da capacidade de acontecer.

O que é viver, o que é existir senão uma potência de acontecer? A gente assistiu aqui agora a uma série de manifestações que, manifestamente, traduziam essa potência de acontecer. Alguns decorando, mas nesse decorar uma emoção, uma vivência, que não tem nada a ver com o decorar; outros improvisando de um jeito qualquer, outros improvisando de um jeito mais elaborado, mas sempre uma confiança no acontecimento. Aí eu diria que existe uma resistência num sentido interessante: uma confiança e uma afirmação. Uma afirmação que faz com que a gente retome novamente o sentido do que é viver, do que é estar vivo. Porque estar vivo é acontecer. A capacidade de acontecer nos é roubada já desde o berço, desde as nossas relações familiares; uma porque a família nunca foi celula matter de nada. A família não é o começo das coisas, ao contrário, a família, ela já é a ponta, já é o resultado de uma máquina social, de um maquinismo social. Há uma máquina muito mais sutil, que vai muito além das máquinas cibernéticas de controle, que é a máquina social.

O que que é uma máquina social? É toda a rede afetiva que nós funcionamos ou da qual nós fazemos parte. Nós funcionamos nessa rede, nós somos cúmplices dessa rede, nós alimentamos essa rede. Do ponto de vista da nossa sensibilidade, do modo como a gente sente, a partir do nosso regime de corpo, do nosso regime de gestos, de movimentos, do nosso regime de luz, do nosso regime de sensibilidade e também a partir do nosso regime de signos ou de uso dos signos, do uso das palavras, do uso da linguagem escrita, falada e outros tipos de linguagem, enfim, nós fazemos parte de uma teia, de uma rede que maquina o indivíduo, que maquina a família, que maquina o objeto, que produz subjetividade, que produz o ego, que produz o homem, que produz a mulher, que produz o aluno, que produz o professor, que produz o capitalista, ou seja, as funções são produzidas socialmente. E quando a gente acredita na verdade das funções, a gente está, como diz lá o poema do Fernando Pessoa, se colando a uma máscara – que nos foi oferecida em nome de um reconhecimento, em nome de um crescimento, em nome de ter um papel na sociedade, ter um papel na vida, ter uma função digna de homem de bem, de homem justo etc.

Então, voltando à questão: a consciência é o lugar do efeito, o lugar das imagens e o lugar dos signos. A consciência é sempre uma imagem do que se passa realmente em nós. A consciência… por exemplo, o sentimento de tristeza é uma imagem do afeto real de tristeza que se passa em nós; o sentimento de alegria é uma imagem do afeto real de alegria que se passa em nós. O que é a alegria? É um aumento de potência. O que é a tristeza? É a diminuição da nossa potência. O que é o amor? É algo em nós que faz aumentar a potência e que quer se ligar à causa desse aumento de potência em nós, que devotamos um amor para com a causa do aumento de potência em nós. O que é o ódio? É algo em nós que é diminuído, que é destruído, que é separado do que pode, que entristece e que quer identificar a causa daquilo que me faz mal, que produz doença.

Ora, enquanto a gente tem a imagem disso que se passa em nós, a imagem do afeto; enquanto a gente está ligado a sentimentos apenas, nós vamos reagir também com sentimentos, também de modo simplesmente passional. Não que as paixões sejam ruins ou sejam vícios, não é isso. Mas é que não basta ficar na paixão. É preciso transmutar cada paixão em ação, em ato, em criação. A paixão, ela pode ser um excitante, por pior que ela seja. Ela pode ser um bem, ela pode ser algo de muito interessante. Diz Nietzsche: muitas vezes a gente se apressa (ou a sociedade se apressa) em classificar em doença algo que a própria sociedade – ou os corpos enfraquecidos da sociedade – não podem suportar. Mas muitas vezes a doença nada mais é do que um alargamento da experiência do corpo, uma oportunidade de experimentar modos diferentes de sentir, de pensar. E nós nos apressamos a classificar aquilo como doença. Muitas vezes ali estava o início de um exercício de laboratório, o início de uma criação. E nós simplesmente abafamos aquilo. É que a criação é perigosa. E pra quem que ela é perigosa? Pr’aqueles que precisam da impotência. Aquele que cria não precisa de reconhecimento. Só julga quem é impotente pra criar. Aquele que cria é generoso, ele gera, ele dá, ele produz valor, ele não precisa de valor. Ele não precisa que reconheçam o trabalho dele. Nem ele dá valor, nem ele tira valor.

Nietzsche diz uma coisa muito interessante: é impossível que eu dê a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus. Mas ele não diz assim, ele é mais sutil (aqui eu fui muito explícito). Ele diz: “é impossível eu dar ao outro o que é do outro, ou tirar do outro o que é do outro. Que me baste eu dar ao outro (ou a vocês, ou a todos…) o que é meu”. O que é meu não pode ser tomado, nem roubado, nem perdido. Todos nós temos algo de único, que não pode ser tomado, que não pode ser roubado, mas precisa ser encontrado em nós mesmos: está aí, e nós mal nos tocamos, mal nos permitimos. Na medida em que eu me torno criador, a criação faz com que isso venha à tona. E quando isso vem à tona, algo de novo emerge no universo. Como diz Nietzsche, “a natureza salta”. Raras vezes a natureza salta, ela salta quando algo de novo emerge. Claro! Raras vezes ela salta do ponto de vista do homem! Ela está saltando o tempo inteiro. A natureza pulula de criação. Mas do ponto de vista do homem, da existência triste que o homem leva, exatamente por estar aprisionado na sua gaiola, e investindo nessa visão, porque nós investimos nessa visão… faz com que a criação se torne um ato raro. E aí a gente não sabe mais se, na medida em que a gente cria, a gente não precisa de reconhecimento, a gente não precisa correr atrás do dinheiro, a gente não precisa mais defender o nosso lugar e “ter cuidado com o que fala” – porque senão pode perder o emprego, não é? – ou com o que faz, porque senão vai ser ineficiente.

Ou seja, a vida ativa, a vida criativa, ela tem um pressuposto afirmativo. Afirmativo de quê? Da superfície que envolve essa potência. E que superfície é essa? É a sensibilidade imediata que atravessa o corpo, a superfície física. Que também é o tempo imediato que atravessa o pensamento, é a pele metafísica do tempo. Há uma pele do tempo, assim como há uma pele do espaço. Há uma superfície que envolve o corpo e o pensamento, que envolve o desejo. E essa superfície, ela está toda entupida, ela está toda estriada, ela está toda marcada, esquadrinhada. E é por essa superfície que nós projetamos o futuro e introjetamos uma memória, e perdemos o devir, e perdemos o acontecimento, e perdemos a capacidade de acontecer imediatamente. Nós não sabemos mais “alisar” essa superfície. Nós não sabemos mais viver a partir de um corpo intenso, nós precisamos do nosso corpo muito organizado. Nós não sabemos mais abrir mão das formas, das figuras e dos controles. Nós investimos sempre em controle… por quê? Porque nós desconfiamos do acontecimento (“mas o acontecimento, ele nos é injusto!”). Por que ele nos é injusto? Porque sempre ele nos traz muita dor, muito sofrimento. Ele de fato incomoda; o acontecimento incomoda. Incomoda por quê? Porque eu não sei extrair mais do acontecimento aquilo que é necessário ali. Eu não sei mais extrair de uma relação acidental a essência dessa relação acidental. Eu não sei mais extrair de um devir o ser desse devir. E não sei mais extrair de uma multiplicidade caótica a unidade dessa multiplicidade caótica. Eu não sei mais encontrar – ao mesmo tempo que eu não sei mais dar – algo de mim que é único e singular. Na medida que eu não sei mais dar algo de mim que é único e singular eu preciso de um provedor.

Esse provedor, nós estamos fartos de saber dos nomes que ele toma; têm vários tipos de deus ou de deuses; tem até pros ateus… também têm os provedores. Tem provedor de tudo o que é tipo. Inclusive pros anarquistas existem provedores. Existe um certo motivo anarquista que é o motivo do ressentimento. Mas existe um anarquismo muito interessante, não é simplesmente jogar fora o anarquismo ou jogar fora a esquerda, ou jogar fora a maneira de reagir. É, de fato, o que reage em nós? Será que ressentir é de fato reagir? Reagir antes de tudo é inventar. E inventar é necessário. Abrir a nossa capacidade de ser afetado, e não de qualquer maneira: abrir ao máximo, mas ser capaz de abrir ao máximo. Não é abrir ao máximo como um bobo e deixar tudo entrar, mas abrir ao máximo com um aprendizado, com capacidade; a gente se prepara pra se abrir ao máximo.

Mas será que a gente se prepara pra abrir ao máximo? Será que geralmente a gente não se prepara pra se fechar ao máximo (pra “fechar o corpo”, como dizem)? A melhor maneira de manter o corpo fechado é com o máximo de abertura. A melhor maneira de ser imperceptível é com o máximo de exposição…4

… que necessariamente passa. O tempo passa: você nasceu, você se desenvolve, você vai morrer. O tempo te atravessa, não tem como você deter isso, a passagem está aí. Agora, ela está aí, e eu posso ou achar ruim, ou achar triste morrer ou achar que “puxa vida, a gente envelhece, é tão chato isso…”. Ou, de repente, perceber que a passagem é a própria fonte da plenitude, da perfeição da natureza. Saber que morte, que decadência, que destruição são meros efeitos de presenças criativas. Assim como pra semear a terra eu preciso destruir a terra socada, eu preciso arar, arejar a terra; assim como pra um pintinho nascer ele precisa quebrar a casca do ovo. Esta destruição é bem vinda.

Ora, essa é a destruição efeito da afirmação. E seria essa destruição a mais interessante pra… não nós “fugirmos do poder” (eu vi alguma coisa aqui também no filme5 dizendo assim: “o êxodo, a fuga do poder é muito mais interessante do que ocupar o lugar do poder”). Mas não é fugir do poder, é fazer o poder fugir de nós. Onde existe presença o poder não cola. Onde existe presença existe potência. E existe um modo de ser na vida pleno, absolutamente pleno, onde morte não atravessa, onde mal não atravessa, ao contrário: morte e mal são presentes também. Nós aproveitamos tudo.

O moralista é aquele que diz assim: “tem alguma coisa na vida e no mundo que eu não quero e eu vou recusar. E tem outra coisa que eu quero. Tem alguma coisa que eu espero nunca encontrar, eu tenho medo de encontrar inclusive, e tem outra coisa que eu espero encontrar. Então eu vou me ligar ao Bem, que é essa coisa que eu espero encontrar, e vou evitar ou combater o Mal, essa coisa que eu não quero encontrar. Assim age o moralista.

O homem ético, não é que ele não seja seletivo, ao contrário, ele tem uma seleção. Mas a seleção do homem ético não tem nada a ver com essa seleção entre o bem e o mal, ele não escolhe entre o bem e o mal. Ele diz como Nietzsche (vamos citar Nietzsche, novamente); Nietzsche diz assim, Nietzsche faz uma paráfrase de Jesus e diz: “Vinde a mim todo o acaso, porque ele é inocente como uma criancinha”. Não é simplesmente “vinde a mim as criancinhas, porque elas são inocentes”… E os adultos, e os outros? “Não, eles não são inocentes”… Então, não: Vinde a mim todo o acaso. Todo. Inclusive o pior dos males.

A capacidade do homem ético é aquela de transmutar o mal e a doença e o inimigo em aliado sem derramar uma gota de sangue, com o mínimo gesto. Existe um pensador chinês chamado Sun Tzu, que escreveu uma obra há uns dois mil e quinhentos anos atrás, que chama “A arte da guerra”. Esse pensador, ele diz que a melhor vitória, a melhor maneira de vencer o inimigo é transformar o inimigo, sem derrubar uma gota de sangue, em aliado.

Então, como é que você transmuta o mal? Espinosa diz: “se o mal te atinge, se a dor te atinge é porque alguma coisa de comum com você ela tem ou ele tem.” Como é que te atingiria se não tivesse nada em comum? Essa questão é seriíssima. Se a gente pensar realmente, a gente vai perceber que em qualquer relação que nos afeta há um pressuposto, uma comunidade de ser. Mas aí eu faço outra questão: é por aquilo que é comum a mim e ao outro que me fez mal que eu fiquei pior, que eu entristeci ou que eu adoeci? Jamais. Aquilo que é comum não pode me fazer mal.

Então, no mal, na dor, no inimigo existe uma comunidade de ser. Será que então o mal, a dor ou a doença não é apenas um mau-jeito, uma má-maneira de se relacionar? Má-maneira, e não mau-ser, e não mau-eu, mau-outro. Má-maneira, mau-modo. É no modo que está o bem e o mal ou o bom e o mau, melhor dizendo. E eu posso – isso eu posso – mudar o modo, mudar o jeito. Ora, nós vivemos a milhares de anos numa relação – claro, de modo sempre muito diferenciado, porque as formações sociais de hoje são bem diferentes das que já foram – nós vivemos a partir de uma maneira, de um modo de vida que está inscrito na nossa consciência e que nos separa, na verdade, do que nós podemos no acontecimento. Nós não acontecemos mais, exatamente porque nós acreditamos que a maneira boa de viver é seguir esse modo inscrito na nossa consciência. É a nossa consciência que resume a superfície do espaço e a superfície do tempo. Ela que resume isso tudo e captura em nós.

Então, às vezes eu ouço muito os marxistas dizerem – e eu digo isso porque eu tenho simpatia por um certo marxismo –, os marxistas dizerem que “é preciso dar consciência ao povo”. Nós já estamos entupidos de consciência, nós só temos consciência! Oxalá tenhamos pensamento, que vem antes da consciência. O que que é a consciência? É a idéia da idéia. O que que é o pensamento? É a idéia. Eu preciso ter a idéia pra daí ter a idéia da idéia. A idéia é anterior, é mais essencial. Então, não se trata de dar consciência, a consciência é o lugar privilegiado da captura.

Então nós aderimos a uma função social, a um papel social, a um cargo, a um gênero (mulher, homem, criança, macho, fêmea, adulto, negro, branco, índio). Nós vamos aderindo a essas figuras e funções que estão implicadas no uso dos signos, no regime de signos, na gramática que a gente acredita ser verdadeira (“é preciso falar de modo correto, de acordo com as leis da gramática”), essa mesma gramática inventa as dicotomias (preto x branco, homem x mulher, macho x fêmea etc. etc.)… inclusive plural x singular. E aí eu sempre digo “não, o plural é o oposto do singular”.

Será que a gente é capaz de ultrapassar a gramática, ultrapassar esse regime de signos que nos faz falar de um certo modo já, que nos faz obedecer a ordens imperceptíveis e invisíveis no discurso e encontrar uma singularidade imediatamente plural, uma singularidade que seja essencialmente plural, essencialmente múltipla? Será que nós não somos vários? Será que o eu é a nossa verdade? O ego, a identidade? Será que se a gente invertesse a forma, ao invés de buscar-mos o “verdadeiro eu” – talvez, ao invés da psicologia sempre ajudar aquele que procura o psicólogo a encontrar uma subjetividade eficaz, um eu unitário, com coerência, com começo, meio e fim, com bom senso e com senso comum, com uma boa razão e com uma boa moral… – será que não seria interessante a gente dizer assim: “ao me tornar diferente de mim mesmo, algo se passa de novo na minha vida. E quando algo de novo se passa na minha vida, ao me tornar diferente de mim mesmo, será que eu não estou criando realidade? Será que eu não estou produzindo a mim mesmo de modo diferente? Será que eu não estou doando pra sociedade uma oportunidade de perceber o mundo de um modo diferente? Será que eu não estou produzindo um afeto inédito, que nunca existiu? Será que eu não pus o meu desejo, a minha potência em variação de modo absolutamente diferente do que tinha?

Então, atrás desses paradigmas – da identidade, da semelhança, das figuras, dos papéis, do reconhecimento, das verdades estabelecidas, da formação que um curso te dá, da competência e da autoridade que esse curso te dá, ao fazer com que você introjete um sujeito do enunciado num sujeito de enunciação que vai virar uma autoridade… – será que não seria o momento de começarmos a desconfiar que nós simplesmente reagimos a estímulos da mesma maneira que um animal adestrado reage nas máquinas que são impostas a ele? Será que nós não estamos num regime de obediência quando acreditamos que pensamos e criamos?

O que nos determina? Espinosa diz: nós temos consciência das nossas ações, dos nossos desejos, das nossas crenças, das nossas idéias… A gente tem consciência de tudo o que se passa com a gente (e temos mesmo). Mas nós ignoramos aquilo que nos determina a agir, a reagir, a pensar, a acreditar ou a desejar. Nós ignoramos a causa do que nos determina e por isso nós imaginamos que somos livres. Isso é liberdade? A liberdade através duma ignorância? Nós ignoramos o que nos determina: ora, a determinação passa a ser uma ordem, ela passa a ser um imperativo. E se a máquina social produzisse essas determinações de modo imperceptível em nós? E se nós investíssemos nessas determinações como se se tratasse da nossa salvação, como se se tratasse do nosso crescimento, do nosso ganho de poder, do nosso quinhão de cada dia, do nosso remédio, do nosso amortecimento, da nossa anestesia pra tolerar a vida impotente e miserável que nos atravessa no dia a dia?

Será que… então, nós não desejamos a própria servidão? Será que no nosso modo de desejar não existe uma cumplicidade essencial, que faz com que a gente invista num dever-ser e perca a capacidade de se abrir pro acontecimento que nos mostra a potência de ser? Será que no acaso – que é tortuoso, sem ordem e sem forma – não haveria um rigor? Será que nos encontros ao acaso não há uma necessidade, não há um encadeamento real de aumento e crescimento de potência?

Então, nós desinvestimos essa ordem real e investimos numa ordem imaginária, simbólica, representativa, porque não somos mais capazes de fazer do pensamento um acontecimento e do corpo também um acontecimento. Nós imaginamos que o desejo começa em nós. Por isso vai faltar, evidentemente, algo ao desejo.

Ora, se a grande maioria da humanidade vive desse modo, se torna uma verdade universal que o desejo é constituído pela falta, Lacan já dizia isso: “o desejo é constituído pela falta” (não só Lacan, outros psicanalistas diziam a mesma coisa… e filósofos também, religiosos, padres etc.). O desejo começa em mim? E o pensamento, começa no sujeito? É o sujeito que pensa? E se eu dissesse que o pensamento é idêntico ao tempo? Que o espírito, o pensamento e o tempo são uma coisa só? E que o espírito, o pensamento e o tempo é o acontecimento que atravessa o corpo? Eu poderia dizer que uma árvore pensa, quando uma árvore “arvorifica”; eu poderia dizer que uma ameba pensa quando a ameba “amebiza” (sei lá, eu não sei bem o que foi que eu disse, mas, enfim, a gente pode ir inventando…); eu digo que o animal pensa na medida que o animal animaliza; eu digo que o sol pensa na medida que o sol “soliza” (acabamos de inventar!).

Então… será que então o pensamento não pensa em mim na medida em que eu aconteço? Ou é o sujeito que pensa? Nós acreditamos que é o sujeito que pensa, que é a consciência que pensa, quando na verdade o pensamento é idêntico ao acontecimento que nos atravessa. Mas ele não é apenas isso Porque se fosse apenas isso, eu diria: “a Natureza pensa por mim”. O pensamento, ele tem uma parte… aliás, o acontecimento, ele tem uma parte em efetuar. E ele convida pra que eu dê a minha parte, pra que eu tome parte no processo e não apenas pra que eu me sinta vítima ou sofra esse processo. Eu posso sofrer da vida, mas eu posso aproveitar da vida. Geralmente nós sofremos da vida, nós sofremos do acaso, nós sofremos do caos, nós sofremos da multiplicidade, nós nos sentimos injustiçados sempre que alguma coisa dói mais do que dá prazer. E aí a gente sempre dá um jeito de desviar, ser um pouquinho perverso, inventar um jeito de ter um pequeno prazer pra compensar. A gente não sabe querer de modo inteiro. Por quê? Porque a gente imagina que o desejo começa na nossa consciência. O único desejo inteiro e pleno começa no acontecimento. Ele está lá, antes de mim, me atravessando, olhando pra mim e não tem nenhum olho nele lá, não tem nenhum corpo nele ali.

Existe o quê? Uma memória de futuro: o futuro olha pra mim, pede, me chama. Tem algo que não existe, mas que é real, que me atrai, que não tem forma prévia, que não tem figura, que não tem uma verdade ou uma finalidade a ser atingida. Mas aquilo é o motor do meu próprio desejo. E o desejo, ao atravessar a minha potência, faz com que o ato que atualiza a minha potência se singularize, invente uma nova realidade. Então, eu diria que existem duas maneiras de abordar a vida: uma é aquela que sempre procura uma justiça, que procura uma verdade, que procura uma adequação com uma forma ideal; e outra é aquela que… não que aceita qualquer coisa, mas que sabe que o devir, que o movimento, que o tempo e que o vazio que atravessa as realidades essenciais ou as potências são necessários e plenos.

Há uma plenitude no acontecimento. E nessa mesma medida começam a, não acusar o acontecimento, mas ser dignos, se tornam dignos do que lhes acontecem. Ser digno do que te acontece não é sair recusando, não é sair reclamando simplesmente, é aproveitar aquilo que há de necessário, aquilo que há de essencial no próprio acontecimento. E a fonte da vida está exatamente no acontecimento, no acontecer. Quando a gente perde a fonte do acontecer, a gente fica separado do que pode. E quando a gente fica separado do que pode, a gente vai querer o poder, é óbvio! Ou, de uma outra maneira: sempre que eu idealizo, eu acho que o ideal é superior ao real, eu to idealizando… “Ah, o ideal seria tal coisa… O que está aqui não é ideal, é imperfeito”. Eu idealizo então, eu digo que há um valor superior, “aquilo vale mais do que a existência”. A existência é desqualificada na mesma medida em que eu digo que aquilo vale mais. O Nietzsche diz: “há uma baixeza nos puros que buscam o ideal, que se sentem elevados e nobres ao buscar ideais nobres. O motivo é baixo. Qual que é a baixeza do motivo? É que eu estou desinvestindo e desqualificando as relações e o acontecimento.

Então, essa baixeza geralmente nos atravessa ou atravessa os nossos gritos de “fora o poder” ou “contra o poder” ou “quero ocupar o poder”. Será que é essa baixeza que fala em nós? Ou será que o que a gente quer é abrir os poros da nossa sensibilidade entupida por imagens? Abrir os poros do nosso pensamento entupido por signos de linguagem e criar passagens no pensamento e passagens na sensibilidade, modos de acontecer que ligam novamente a potência ao que ela pode na sua roupa justa, na sua afirmação plena, na sua singularidade e não através de idéias gerais, idéias universais, de roupas demasiado largas que deixam passar de tudo ou qualquer coisa ou simplesmente por deixar passar qualquer coisa, banalizam e inviabilizam a afirmação plena da diferença, aquilo que há de irredutível na diferença, através de equivalentes que fazem com que as diferenças sejam trocáveis e representáveis. Então, você pode falar “em nome de”, “no lugar de”. É por isso que é tão importante a gente falar em nome próprio. Mas falar em nome próprio não é falar em nome do eu. O eu é um universal que tira, “puxa o tapete” ou a capacidade de a gente falar e fazer e acreditar ou pensar ou gerar em nome próprio. O eu, ele se põe em lugar do nome próprio, exatamente pra trair o nosso desejo. Onde há eu, há traição do desejo.

Então, o eu… Às vezes a gente pensa que é a coisa mais íntima. O eu é um preposto do poder, é o Estado em mim. O Estado também está em mim – não que ele esteja aí de modo definitivo, ele é alimentado por mim… O tal do “superego”… evidentemente que é uma posição de relação com o social (o que é permitido ou o que é proibido ou o que é estimulado e reconhecido e premiado, o que é punido, o que é desinvestido, o que gera rejeição. E sempre… eu olho pros rostos e vejo no rosto um sinal de aprovação ou de rejeição. O espelho está bem diante de nós, está nos nossos rostos: nós fazemos da nossa cabeça um espelho. O espelho que toma o lugar da cabeça é o poder em nós. Nós somos capazes de aprovar ou rejeitar. E dessa maneira nós estimulamos modos de desejar ou desinvestimos modos de desejar. Nós reprovamos, sutilmente, amavelmente. Como dizia um poeta inglês, David Herbert Lawrence, “eu estou cheio das pessoas amáveis, porque são, de alguma forma, uma mentira”6.

Por que não nos tornamos mais elementares? Por que não sentimos mais o gosto da terra quando comemos uma maçã? Por que comemos como porcos? Não sabemos mais experimentar, apenas consumimos imagens e isso não é consumir, isso é miséria. Nós não consumimos, na verdade. Eu faria o discurso exatamente ao contrário: nós não somos sociedades consumistas, nós somos miseráveis. Não há valor burguês que não seja tacanho. O amor pelo dinheiro e pela riqueza é o amor por uma retenção. Diz Nietzsche, “é como o alemão que tem o “cú-de-chumbo”. O cú-de-chumbo, ou o dispéptico, aquele que tem o intestino travado por alguma intoxicação; aquilo não pára de regurgitar em você… retorna, retorna e retorna e você não digere, e você não acaba”. O ressentido nunca acaba nada. Será que a nossa vida não é um eterno ressentimento? Será que a hora que eu ouço uma música eu não estou ressentindo? Será que a hora que eu estou vendo um filme eu não estou ressentindo? Será que a hora em que eu estou declamando, fazendo alguma coisa, uma coisa banal até, eu não estou ressentindo? Será que eu não reajo a marcas como um animal adestrado? Será que a máquina social não é especialista em produzir marcas em nós? Em inscrever no corpo imperceptivelmente? Em inscrever no tempo imperceptivelmente? Em produzir uma memória que faz com que nós introjetemos uma unidade que seria um anti-caos, uma defesa contra as diferenças ou então contra um desvio, uma perturbação, um enlouquecimento, um labirinto mental, um labirinto corporal?

Temos medo de enlouquecer. Esse medo é estimulado, ele é produzido. Um dos motores da desqualificação do poder é produzir medo. Eu não sei se vocês assistiram ou alguém aqui assistiu um filme do Michael Moore, “Tiros em Columbine”. Lá, num certo momento, ele diz assim: os Estados Unidos, por exemplo, eles mantém um certo nível de amedrontamento, uma taxa de amedrontamento da sociedade, sem a qual a sociedade não estaria refém de um controle. A gente, há pouco, viveu uma experiência com o PCC7 em São Paulo. E aí, houve um certo momento em que ninguém saía de casa, porque o PCC tinha decretado o toque-de-recolher. E aí você vê a sociedade toda refém, impotente e dizendo: “e as autoridades? E o Estado? Onde é que está a polícia? Onde é que está a justiça?… Os trabalhadores presos em casa e os bandidos soltos na rua…” Discurso extremamente moralista! Porque não existe diferença de natureza entre o PCC (ou o crime organizado) e o capitalismo organizado. Eles são de mesma natureza. É por isso que rolou negociação sim. Rolou negociação. Porque também o crime é um negócio do Capital. O Capital funciona por acumulação. Ora, se o crime ajuda a acumular, porque não acumular através do crime? Evidente! É a regra do Capital.

O Capital não investe na vida, a não ser na vida enfraquecida, nessa ele investe. Ele investe no enfraquecimento da vida porque ele precisa da vida. Aí é o que diz o Negri: onde é que está a resistência? A resistência está na vida, mesmo na vida enfraquecida. Claro, ela está lá, respirando; ou como diz o Arnaldo Antunes, “o pulso ainda pulsa”. Pulsa? Pulsa. Mas isso que faz pulsar o pulso, pra que entregar de bandeja pro poder? E nós entregamos. Qual a razão? Nós temos vantagem. A gente tem que deixar de ser hipócrita… e cínicos. Nós ganhamos com o poder. Nós ganhamos com esse tipo de sustentação da fraqueza, da reprodução da miséria. Há um lucro. Nós vivemos numa sociedade do lucro e da vantagem. Quem precisa do lucro e da vantagem? Aquele que não sabe agir. Aquele que é impotente pra criar. Esse que olha a ação do outro como necessitando de uma conseqüência positiva: “você tem que agir e ser conseqüente nos seus atos… Pense nos efeitos e nas conseqüências”. Por quê? Porque o efeito e a conseqüência do seu ato têm que ser útil socialmente, têm que ser lucrativos pros parasitas.

Então, há um dever-ser necessário na intencionalidade do desejo. Será que toda a psicologia, assim como outras ciências (uma vez que aqui a gente está mais com a psicologia, vamos falar da psicologia… vou provocar um pouquinho…), será que a psicologia não é uma empresa de inocular intencionalidade no nosso desejo? Não há sempre uma necessidade de produzir uma finalidade “boa”, “justa”, “verdadeira”, “útil” pro nosso desejo? E quando você cria uma finalidade, você não introjetou um começo, um senso comum? Você cria o bom senso, mas pra ter o bom senso você precisa ter o senso comum. Qual é o senso comum? “Todas as nossas subjetividades são miseráveis, são separadas do que podem”. Já dizia Lacan: “todos somos castrados”. Será que a castração é uma condição real da civilização? Necessária? Ou, como diria Freud, um mal-estar necessário? Incorporar a Lei e seguir a Lei? Ou será que não é uma nivelação por baixo, necessária pra que eu possa julgar o desejo que não tem uma boa intenção, que não é civilizado, que não funciona pela palavra, que não funciona pela lei, que não é responsável, que não tem aquela razão necessária pra ser explorado, pra se extrair demanda e mais-valia dele? Será que então a psicologia não é um agente de “bons negócios”?

A justiça e a lei (agora pra mexer com advogados e juízes…) não é o maior negócio do capitalismo? Onde mais se processa senão nos Estados Unidos? Você olhou feio pra alguém: “vou te processar!”. O melhor negócio é a lei.

Diz um filósofo francês, chamado Gilles Deleuze: “as boas intenções serão forçosamente punidas”… ou outra, um pouquinho mais agressiva: “a lei foi inventada pra ser transgredida”. A lei funciona pra quem habita um plano de força anterior à lei, mais importante do que a lei. Não há lei que não se sustente em relação de força. Todo o diagrama social é um diagrama de forças. E aí dizem: “nós devemos abolir a força, porque força é igual a violência, nós precisamos entrar nas formas democráticas, nós precisamos entrar no saber, no discurso, no bom tratamento, na civilidade, nós precisamos ser pares da ONU ou do Tribunal de Haia. Nós vamos produzir uma ‘Justiça Mundial’ através da lei”. E o tempo inteiro a gente vê “Estado de exceção”. O Estado de exceção não é exceção, é a regra. O tempo inteiro… quem comanda a ONU, por exemplo, evidentemente que são outras forças. Se eu vou invadir o Iraque, eu invado com ou sem autorização da ONU. Esse cinismo é explícito. Não é preciso se esconder nada, já ficou muito claro que não tinha arma nenhuma lá. Não que eu morra de amores pelo Saddam Hussein, não tenho o melhor afeto por ele, muito menos por esse tipo de atitude.

O que se passa então é que as coisas acontecem em outro lugar. Quando nós estamos preocupados com a lei, com a verdade, com a falta, com a culpa, a culpabilização, o poder está esbanjando extração de mais-valia, de mais-energia, de mais-fluxo, de mais-código… o poder se esbalda com isso. Então, será que a lei não é um instrumento pra separar a vida do que ela pode? E dizer… e ainda dizem: “ah, mas se a lei está aí é porque, sem a lei, os homens se matariam, seria uma selvageria só”: Hobbes, já no século XVI ou XVII dizia que o homem em estado de natureza é o homem no estado de “todos-contra-todos”, no estado de uma guerra perpétua. “O indivíduo sempre entra em contradição com outro indivíduo, vai acabar matando, vai acabar…” sei lá. E que pra haver paz na sociedade, pra haver desenvolvimento, crescimento, segurança – segurança, desenvolvimento, paz… – é preciso ceder uma parte do meu instinto animal, do meu desejo animalesco e selvagem, porque ele é culpado, destruidor e – Freud diria – “incestuoso e parricida”. E com essa parte que eu cedo, junto com a outra parte que você cede, que você cede, que você cede, forma um bolo, e você cria o poder soberano.

“O poder soberano vai nos garantir justiça, segurança, desenvolvimento e paz”. E cria a lei, evidentemente. E aí diz: “Ah, mas a lei está aí exatamente porque tem transgressão da lei”. É o contrário, é exatamente o contrário: a lei esta aí pra inventar a transgressão. É como a violência (hoje eu estava lá na oficina do Valter (era oficina? Minicurso! Enfim…) do Valter onde se dizia, onde ele mesmo dizia – o Valter – que a violência é institucional. Evidentemente, ela começa com a instituição. Não há uma violência extrema quando eu digo que você tem que encontrar a verdadeira identidade em você? Quantas forças e vozes eu esmago em mim? Alguém aqui viu “Estamira”8? Hoje passou? Ótimo! Você vê aquela pluralidade de vozes, aquela potência, ela não pede licença a ninguém pra falar. E você vê que ali não tem um ódio, ou simplesmente uma paranóia, muito menos uma esquizofrenia que vira trapo e que não organiza nada. Ao contrário, tem uma potência de composição, de invenção, de produção de pensamento, ela produz conceitos, os mais rigorosos!… ou de percepção, ou de consciência, ou de sensibilidade, ela tem conceitos claríssimos e uma multidão a atravessa – e não o ego dela, não é o ego dela que está ali. Ela diz: “eu sou a beira”. O que que é “a beira”, senão esse horizonte singular que atravessa toda a vida? Será que a gente é capaz de viver na beira? De viver na ponta do tempo, na ponta do espaço? Naquele imediato onde ainda não tenho nem memória, nem projeto, eu estou na pura vertigem da passagem… E será que eu sou capaz de encontrar na passagem uma continuidade, uma duração, uma intensificação, uma consistência ao passar?

Transmutar a minha diferença, fazer com que a minha diferença mude de natureza e eu entre noutra multiplicidade, me torne ainda mais diferente do que sou; ou, para usar as palavras de Nietzsche, “esticar o arco”, o arco tenso… quanto mais tenso é o arco, mais longe vai a flecha. E será que a nossa sociedade do prazer, da festa não é uma sociedade que se apressa em ter prazer porque não suporta o desejo demasiado intenso? Um desejo intenso e tenso, ele tem que relaxar rapidamente? Por que será? Será que a tensão incomoda muito? Nós não sabemos mais tensionar o arco, que é a relação entre a nossa potência e o nosso ato. Nós não sabemos mais vibrar. Diz Nietzsche: “chegará um dia em que o homem terá desaprendido a vibrar. Eis o último homem – diz ele –, o homem instruído”. Toda instrução se põe no lugar do acontecimento. Será que o saber que nós veiculamos e produzimos na instituição é um saber vivo, dinâmico? Ou ele é instrução morta, que eu simplesmente consumo pra me organizar melhor, pra articular melhor meu discurso, pra me tornar uma autoridade mais competente? E de onde vem inclusive esse saber que veiculam hoje como saber morto? Ele não teve momento vivo? E será que eu não sou capaz de reencontrar a vida que teve inclusive nesse saber que hoje está morto? Fazer a genealogia dele e dizer: “Que força produziu esse saber? O que queria esse desejo que inventou essa maneira de viver e essa maneira de pensar?”

Então, eu estou aqui fazendo algumas provocações e ao mesmo tempo alguns convites, no sentido de que nós precisamos recriar a confiança na vida. Nós precisamos parar de desconfiar do acontecimento, de inocular desconfiança. A gente precisa ser mais generoso, inclusive nos maus encontros; a gente precisa saber odiar os nossos… aliás, amar os nossos inimigos; da mesma maneira também devemos odiar os nossos amigos, exatamente porque os amamos. Ou seja, tem um ódio produtivo, uma destruição necessária, uma destruição daquilo que destrói a vida: essa agressividade nós precisamos reconquistar no lugar da violência e do ressentimento. Ser agressivo com doçura, sem ser violento. A vida não precisa disso, mesmo porque o que tem que ser destruído não sou eu nem o outro, mas uma maneira de ser que nos atravessa. A coisa é impessoal.

Então, essa máquina de guerra da vida, necessária, esse combate necessário, está antes de tudo em nós, nós precisamos aprender a fazer a lição de casa. Hoje eu ouvia, também nesse minicurso lá do Valter, alguém dizer “do que precisamos fazer, pra ajudar o menino tal, as coisas tais”, enfim… sempre a gente buscando ajudar, não é? O tal do “amor ao próximo”… De novo Nietzsche (eu não me contenho, eu tenho que falar, enfim… porque ele me atravessa o tempo inteiro) … Nietzsche diz assim: “o amor ao próximo é um mau amor a vós mesmos”. Então, quando você quer fugir de você, e não tratar aquilo que mais lhe interessa, que é mais importante, que você tem que elaborar e processar pra exatamente se tornar criativo, generoso, produtivo, você desvia de si e vai amar ao próximo. E com que objetivo? Você vai depois cobrar mais tarde a ajuda que você vai dar. É como a oferta de crédito pra África e pra América do Sul, pros países do sul… A oferta de crédito de um banco: “tome um cartão de crédito, você é um cliente especial”… então, sempre essa oferta de crédito…

Eu não sei como é que está o tempo também, eu não quero me prolongar demais, a gente pode abrir pra debate… Oi? Como? Abrir pra debate… vamos lá. Então pronto!

Aplausos…

 Eu não sei como é que está o tempo também, eu não quero me prolongar demais, a gente pode abrir pra debate… Oi? Como? Abrir pra debate… vamos lá. Então pronto!

Aplausos…

Pergunta Gilberto: Eu tenho assim, muitos questionamentos. Não sei se vai ser apenas dez minutos, mas tudo bem. Eu vou fazer uma seqüência de questionamentos e aí quando for dando você chega, você dá um basta pra ir respondendo. Meu primeiro questionamento – e, aliás, a maioria, todos eles em relação ao poder e… o subtexto da sua explanação é a questão do poder, é… Qual o poder que é capaz de ir de encontro com o poder pra acabar? Se toda potência é positiva, e todo poder tem potência, logo o poder é positivo? Você disse: “onde existe presença o poder não cola”. Qual o poder da presença? O poder seria uma maneira de ter poder? Qual o mais certo a utilizar nos dias de hoje: “penso logo existo” ou “tento pensar logo desisto de existir no pensamento”? Se o espelho disposto na nossa cabeça é o poder em nós, quando somos capazes de enfrentar o próprio reflexo sem conflitos distorcidos? Se ganhamos com o poder, não seria hipócrita, não seria hipocrisia e moralismo querer destruí-lo ou destituí-lo? Sem o poder o homem é um ser completo? Ou o poder completa o homem?… Aí, quando você fala de Estamira eu lembrei do que ela fala, do que ela fala do ser… Eu ouvi ela falar uma coisa interessante, assim, ela diz que ela não é ruim, aliás, ela diz que ela é ruim, ela não é perversa, e daí a relação com o perverso…

Fuganti: Eu vou responder alguma coisa aleatoriamente, aí você vai me chamando a atenção sobre aquelas outras questões… Em primeiro lugar, o que a gente chama de poder é sempre um tipo de entidade exterior que se constitui com a nossa colaboração. É por isso que no poder tem potência. Mas a potência que tem no poder é a potência separada do que pode, não é a potência plena. Portanto o poder é sempre ruim. Não existe poder bom. Ao menos no conceito que eu estou produzindo aqui em relação à potência. A potência, ela pode ser plena, mas ela pode se separar do que pode. Pode acontecer à potência que ela se separe do que pode. Como? Num mau encontro. Mas nós temos muitos maus encontros. A questão é: como evitar os maus encontros? Ou melhor ainda: como aproveitar inclusive os maus encontros sem se separar do que a gente pode, do que nós podemos? Enfim…

Então, a questão é: a potência não é um poder. A potência é uma capacidade real imanente à natureza. A potência se cola à capacidade que a própria natureza tem de se auto-sustentar, de produzir a si mesma e de produzir a todas as coisas. A potência está aí. Então a potência é algo autônomo e imanente, interno. O que é exatamente a potência? A potência é sempre potência de acontecer; ou sempre potência de se modificar; ou sempre potência de gerar diferença ou de diferenciar; ou sempre potência de multiplicar, gerar multiplicidades. A diferenciação, a multiplicidade, as singularizações são potências e não poderes da vida. O poder, ele precisa fraudar a singularidade, precisa submeter a diferença através de uma semelhança que se espelha numa identidade. Ele precisa unificar a multiplicidade através duma unidade que seria superior a essa multiplicidade. Ele precisa inventar um ser transcendente que sobrevoaria o devir ou os devires. Ele precisa criar um plano que nós poderíamos chamar de plano supérfluo. Se tem uma coisa que a gente precisa destruir na vida é o que é supérfluo. Nietzsche diz uma coisa interessante: “o que pode ser destruído merece sê-lo”. É uma frase, é um enunciado grave não é? Bem grave…

Então, existe algo em nós que não pode ser destruído? Procure isso. Isso é a única coisa que interessa, que tenha alguma coisa na vida, em nós, que não pode ser destruído. É com isso que a gente tece a vida. A vida é essencial, porque o resto é adereço, é adorno, é enfeite, é supérfluo. A Virgínia Woolf dizia: “Eu penso que ao escrever eu estou fazendo uma espécie de saturação do átomo, eu acabo encontrando só o essencial”. O Artaud diz: “eu não quero nem a carne nem o sangue, eu quero o osso”… É uma maneira também de dizer que ele quer o essencial, que ele quer o implacável, que ele quer o indestrutível. Existe algo que é indestrutível. Então, é esse algo que é a potência e não o poder. E essa potência é potência de acontecer ou de modificar, porque se não fosse potência de acontecer, algum acontecimento poderia destruí-la. Então, você só se abre se você cultivar a potência. De qualquer jeito você não se abre, você precisa se fechar, porque você não tem a capacidade de se modificar.

Então, será que não é interessante, ao invés de a gente “buscar a conservação e evitar a criação”… não é mais importante a gente fazer da criação uma capacidade de encontrar aquilo que é indestrutível e de fabricar inclusive o indestrutível? Será que não existe uma potência de criar que é indestrutível e que nos atravessa, e nós participamos dela, e que nos faz também? Será que ao criar a gente não se cria a si próprio? Então, isso não tem a ver com o poder, tem a ver com potência. O poder sempre precisa o quê? Extrair ou parasitar algo fora pra sustentar a sua força. Então, hoje eu estava brincando na hora do almoço, teve aí um almoço, e eu dizia que existem dois tipos de força ou imagem de força… existem mais na verdade, mas imagina-se que aquele que é forte é aquele que tem poder. Só que não se diz que aquele que tem poder depende de uma rede que sustenta esse pode. Basta destruir essa rede e o poder dele vai embora, a força dele vai embora. Isso era força? Era nada.

Hegel diz uma coisa interessante, ele disse assim: “o senhor é aquele que é reconhecido pelo escravo”. Quem é o escravo? O escravo é aquele que se agarrou à vida; ele não é um verdadeiro guerreiro, segundo Hegel, ele queria sobreviver, ele prefere a sobrevida do que a vida. Então ele, na hora de ser morto, ele olha pro outro e diz assim: “não, eu te reconheço como mais forte, você é mais forte”. Aí o senhor empina o pescoço. O Nietzsche diz: “que senhor é esse, que precisa do olhar do escravo pra ser senhor?”

Uma outra coisa: “o poder exige reconhecimento”. Existe uma idéia muito antiga no ocidente, que está na bíblia e em todos os outros saberes que são dominantes no ocidente, que diz assim: “o pecado é o pecado do orgulho”. Que que é o orgulho? O orgulho é não reconhecer a Deus. O que que é Deus, o a vontade de Deus? Muitas vezes é a vontade do sacerdote que fala em nome de Deus. Cresce o poder do sacerdote quando ele faz a separação entre esse poder oculto e o simples mortal. Então você tem que reconhecer o poder oculto, e aí você é humilde, não pode ser orgulhoso e não reconhecer e ter vida própria. O poder demanda então reconhecimento. A potência não… Nietzsche diz: “o homem livre é aquele que está não só acima da censura do outro. Ele está também acima do elogio”. E eu dizia antes, a melhor, o jeito mais sutil do poder nos capturar é nos elogiando, nos seduzindo. É por sedução, muito mais do que por repressão – já dizia Foucault, Foucault diz isso –, o poder não age tanto por repressão, ele age muito mais por sedução. Como ele diz do século XIX, nunca se falou tanto de sexualidade. Era a era vitoriana, uma era moralista, e se falava muito sobre sexualidade. Então, eu sei que tem mais coisas aí, mas eu não sei se isso já te dá um…

Pergunta Pedro Ivo: É… quando você falou da ética, eu me lembrei do texto – se eu não me engano, de Quinet, na Folha de São Paulo de uns quinze anos aí atrás – em que ele articulava, logo que… acho que havia sido traduzido o seminário da ética, de Lacan, o seminário 7, e ele falava justamente da ética aristotélica, dessa articulação com exatamente o moralismo aristotélico. Aí, quando você fala agora, eu fiquei pensando sobre o que aponta Lacan lá no seu seminário 7, justamente sobre esta questão ligada ao desejo do sujeito e que nós poderíamos… Esses dias eu estava falando isso em aula e causou espanto (não foi aqui em Conquista), é… sobre digamos assim, a questão do perverso, não é, aquilo a que se chama perverso. A questão que é, de fato, que ética que você vai discutir… é a ética daquilo. Está posto aquele fato, você não pode comparar aquilo que se passa com ele com aquilo que pensam outros. Então… sim, e aí muito da sua fala – eu não tenho leitura de Deleuze, a minha leitura de Deleuze é muito pouca; e Espinosa, agora recentemente de novo através de Quinet, por estar estudando sobre depressão –, mas muito de sua fala me faz pensar exatamente naquilo que são postulados freudianos e lacanianos. Por exemplo, a questão do atravessamento do… não é, vamos dizer, daquilo do significante que nos atravessa, do desejo do outro que nos atravessa, de que o “sou”… “se eu sou alguma coisa, sou no conhecer disso, e não mais que isso”, não é? Esse desejo… quer dizer, se o eu não está salvo, muito menos está salvo o sujeito do desejo. Então, nesse sentido é que eu te pergunto e eu vejo no seu – pra ser lacaniano –, na sua enunciação, efetivamente, uma desconfiança nos postulados freudianos e lacanianos, da psicanálise, está certo? Aí eu queria te escutar um pouco sobre isso…

Fuganti: Acho que são ótimas questões, ou uma ótima questão… De fato, existe uma diferença, existe não exatamente uma desconfiança, e não também afirmando… Não exatamente uma certeza de que Lacan ou Freud estão errados, eles estão completamente certos… Freud está completamente certo ao identificar o neurótico, ao identificar o inconsciente recalcado, ao apreender um desejo supostamente incestuoso e parricida. Esses enunciados todos gerados por Freud estão corretos. O que está fundamentalmente incorreto – e aí não se trata de incorreção, não se trata de erro; diz Nietzsche: “todo erro, na sua essência, é covardia” – é Freud universalizar o incesto e o parricídio. Dizer que Édipo – e a leitura que é feita de Édipo e de Hamlet – universalizam ou dão a verdade do desejo.

Então, isso é uma questão platônica, é uma questão que o confessionário cristão inventou também, que significa o teu desejo (“que que quer dizer na verdade o teu desejo lá escondidinho?”), e aí fica-se inventando transmutações, aliás, trocas simbólicas pra dizer que o desejo real, verdadeiro mesmo, é aquele criminoso que está lá escondido no seu segredinho sujo. Isso acontece por quê? Porque tem forças nas formações sociais capitalistas que inventaram um tipo de família, que não existiu sempre, que começou nos séculos XVIII e XIX, que é a chamada família nuclear burguesa, família que tem papai, mamãe e filho, que não tem mais os avós, tataravós, os tios, os primos, os afilhados etc. (como era na Idade Média). Esta família, que já no seu modo de organizar espacialmente, fisicamente, assim como discursivamente, produz necessariamente imagens atualizadas da mãe, do pai e do filho. E acredita-se que o desejo vem desse filho que deseja algo chamado mãe e que odeia ou quer destruir algo chamado pai. Ora, pro desejo chegar a habitar essa imagem enquanto filho, identificar numa imagem enquanto mãe e outra enquanto pai é preciso que ele esteja todo capturado na consciência. Não tem nada de inconsciente nisso. Então o erro fundamental de Freud foi acreditar que isso estava no inconsciente. Isso está na produção social de consciência. Nietzsche diria: está na produção social de má consciência. Que que é a má-consciência? É a consciência de que a causa do mal vem de mim mesmo.

Então, isso é uma função da máquina social, que precisa introjetar a culpa pra que você baixe a cabeça, pra que você diga “a verdade não está contigo, a verdade não está com o acontecimento, você não… esses saberes locais são meras opiniões, tem que observar a ciência”… Bom, enfim… Lacan vai dizer coisas do tipo: “o real é impossível”… Eu diria, Lacan tem toda razão. Pra quem que ele é impossível? Pra grande maioria dos homens o real se tornou impossível, apesar do real continuar aí, na boa, sendo produzido. Mas o homem não acessa mais diretamente o real, a não ser através de imagens e signos, ok! Mas então eu, se pertenço aos homens, estaria condenado a não acessar mais o real? Por quê? A partir de que forças em mim? Quem fala em mim? Como é que eu estou disposto pra chegar a não ser mais capaz de encontrar o real? O que que é exatamente esse significante, ele não se sustenta num diagrama de forças? E isso… não é que faltou Lacan dizer, Lacan não disse e não quis dizer isso. Ele disse o que interessava a ele dizer. Então, ele não estava errado não, ele estava certíssimo: o significante, como o grande Outro, ele é o espelho essencial pra que se concretize a ausência do objeto total. Nunca vai ter objeto total, eu vou ter sempre um objeto parcial preenchendo insuficientemente o meu desejo, que vai fazer com que no fundo eu admita a realidade essencial que é a da castração, “nós somos todos castrados”…

Então, eu diria: funciona? Funciona! Pra quem? Pra quem está separado do que pode; é a verdade? É a verdade! De quem? De quem está separado do que pode; é a verdade de todos? Não, desculpa, aí não dá! Aí é uma questão política e ética do desejo. Então, de que desejo se fala, do desejo capturado? Ok, então ele tem razão. Então é como…

Pergunta Pedro Ivo: Esse “do que pode” não seria algo da ordem da idealização?

Fuganti: É da ordem da idealização. Por quê? Porque não tem corporeidade, é virtualidade, está no puro plano virtual. Mas sem esse virtual, não haveria realidade alguma. Esse virtual, ele é totalmente real, mas ele não é real como um poder que me é dado, que eu tomo; ele é real como algo que me sustenta e que me faz viver, ele já me atravessa necessariamente. Então, a idealidade está no acontecimento enquanto ele não acontece. Mas, como diz Nietzsche, eu não preciso refutar os ideais, eu apenas calço luvas contra eles. Porque o ideal que quer ser superior à vida e à natureza… ah, esse é perigoso! Esse é inimigo. Por quê? Porque ele está desqualificando a vida como uma forma inferior, esse é o problema. Agora, o ideal no acontecimento, o que que é? O ideal no acontecimento é um simulacro? O simulacro é um fingimento? Não, o simulacro é uma produção, é uma condição de produção de realidade – é como a fabulação em Bergson. Por quê? Porque na passagem não tem figura e não tem forma. Então, não se… Como eu finalizar ou projetar o acontecimento, dar forma a ele, ele muda na hora em que eu chego lá. Na hora em que eu chego no meio, o meio já foi, o horizonte mudou…

Intervenção Pedro Ivo: O sujeito diz: “Ah, isso não está bom, esse acontecimento não é ‘o’ acontecimento…”

Fuganti: É porque ele não encontrou foco, só isso… É uma questão de foco. É como uma coisa que me faz mal. Diz Nietzsche: o que é necessário para que você não ressinta alguma coisa? Você fez um mau encontro, uma coisa te fez mal. Que que acontece com a maioria dos homens? Algo que faz mal toma toda a tua alma e o teu corpo, você não consegue sair daquela sensação… Por quê? Porque você já vive sob uma marca, então aquilo toma conta de você, um estado de corpo passa a ser a essência. Aí é uma inversão. A essência é uma potência sem forma, o estado de corpo já tem uma forma. E aí você diz que essa forma de um estado de corpo é o todo da essência, você está reduzindo, certo?

Então, na medida em que você reduz as coisas a um estado de corpo, você não é mais capaz de encontrar a face ou a interface sob a qual aquilo tinha algo de comum na relação. Te fez mal? Te fez, mas tinha algo de comum. Então, a primeira coisa é encontrar o que há de necessário e comum na relação. Ora, a partir daí eu posso transmutar o que me fez mal. Por quê? Porque… Onde eu posso ser ativo? No modo de me relacionar com aquilo. Eu posso mudar a maneira. Então, isso é o que eu posso transmutar. Eu não preciso mudar a natureza ou melhorar a natureza. Eu transmuto realmente, eu crio a condição. É aí que eu me torno ativo. Então, é isso talvez que a psicanálise precisasse começar a investir mais (ou certas psicanálises, porque tem algumas que já investem, enfim… ou algumas psicologias…). Mas investir no quê? Na capacidade de acontecer, ao invés de ficar metendo o dedo na ferida e buscando traumas e memórias, não é? Porque a gente fica simplesmente incentivando uma memória que não é memória do futuro, mas é a memória da impotência que me aconteceu e que não vai fazer diferença nenhuma, a não ser eu “reconhecer que eu devo ser humilde, que eu devo ser…” e entregar de bandeja o que tem de melhor no acontecimento. Então, é por isso que a memória tem que virar memória de futuro, daí a memória é uma coisa interessante…

Vitória da Conquista, Bahia
04 de maio de 2007

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