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Consumimos coisas mortas

Vivemos numa formação social na qual a coesão de suas partes pressupõe a negação do devir-ativo das diferenças autônomas e a nadificação do acontecimento de desejo como produção de intensidade vital em nós.

Esse é um pressuposto sem o qual o poder não se conserva nem se reproduz. Todo poder depende da consolidação de um estado generalizado de impotência das vidas que o sustentam e o alimentam.

Por isso enquadrar, julgar e rebaixar toda vida intensa e suas multiplicidades, reduzi-la a um estado de impotência que a separa do que pode e a torna indiferenciada, pelo modo torto imposto a ela para se efetuar, é a condição da conservação, do exercício e da expansão de qualquer poder centralizador.

O resultado mais espantoso desse rebaixamento generalizado da vida em sociedade é a produção da miséria afetiva, a multiplicação indefinida das paixões tristes. A máquina social é antes de tudo uma máquina de produção e inoculação da falta, da dívida de existência, dos maus jeitos aplicados à nossa própria vida e à vida dos outros.

Há uma instituição social alimentada por essa máquina que cultiva os maus tratos e maus usos dos afetos, dos tempos que duram e se dilatam, dos movimentos que intensificam o desejo. Uma máquina de esburacar desejos e entupi-los com ideais, imagens, signos, palavras, figuras, estados e outras naturezas mortas, que produzem e reproduzem a morte em vida e assassinam nosso presente.

A desqualificação dos devires intensivos do desejo e um nivelamento das subjetividades que se igualam na impotência de criar as próprias condições de existência e se identificam na miséria, a igualdade na merda, é o que alimenta a vontade de poder, de pendurar-se em tutelas de um poder soberano, de alimentar dependências, de desejar vida longa a nossos algozes.

Eis o princípio de toda dependência e com ela, de toda vontade de poder dos impotentes, das vidas tornadas aleijadas.

Do mesmo modo, nossos transbordamentos tortos, nossas dependências químicas, amorosas, odiosas, morais, julgadoras vazam, excedem em overdoses compensatórias da pobreza do consumo de intensidades.

Fazemos parte, talvez, da formação social e global mais avarenta da história. Não somos sociedades de consumo vital.

Consumimos, sim, coisas mortas, imagens opacas e sem espessura, idéias sem profundidade, figuras sem movimento, prazeres sem tempo.

Permanecemos ignorantes do mais valioso e mais vitalizante dos consumos: o consumo de intensidades!

Por isso procuramos intensidades em tudo menos no uso do tempo, do movimento e no modo como alimentamos o desejo.

Nossos paraísos artificiais jamais preencheram os buracos cavados pelos nossos maus jeitos, nossos compromissos, comprometimentos, cumplicidades de um desejo rendido e vendido! Por isso até um assassino pode ser visto como um carente de intensidade, e busca desesperadamente encontrá-la até no ato de destruição ou numa paixão de abolição!

O que gera em nós a vontade de alimentar e se alimentar de uma Providência Provedora, de um Estado Soberano, de um poder que não nos inclui sem roubar nossa zona de acontecimento e nos constituir como pedintes infames?

Precisamos aprender a nos evadir das promessas e dos desejos que querem nos salvar e dar felicidade. Precisamos nos preparar para fazer fugir o que nos acovarda e encarar a vida de frente. Nos tornar dignos da vida é novamente nos elevarmos a sua mais alta potência de acontecer, a potência de criar o real, o que amplia, o que eleva, a soberania das singularidades nômades!