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Curso de Introdução à Esquizoanálise em 2021 (Transcrição – aula 4)

 

Aula 4 – Curso de Introdução à Esquizoanálise

 Por Uma Clínica da Vida, com Luiz Fuganti

Aula completa no Youtube

[Luiz Fuganti]: Olá! Muito boa noite! Boa noite a todos vocês. Que bom estar aqui de novo. Agora para a gente finalizar este ciclo que iniciamos no nosso… há três encontros.

Enfim, hoje estamos fazendo o nosso quarto encontro. Começamos no dia 20 de junho. Estamos aqui já na nossa quarta semana. Hoje excepcionalmente fazendo nosso encontro no sábado. Imagino que todo mundo esteja avisado. Vocês que já estão aqui com certeza já sabiam, mas espero, enfim, que quem eventualmente perder possa assistir à gravação.

É uma alegria estar de novo para seguirmos nesse ritmo de desconstrução e de criação de si. Nós anunciamos, desde o início dos nossos encontros aqui, um método que tem como propósito atingir, o mais rápido possível, pelo caminho mais curto, a realidade imediata que nos constitui, da qual eventualmente estamos separados, mas que segue aí, segue aí à nossa disposição. E nós precisamos reconstruir os acessos a essa realidade. Acessos esses que nós geralmente bloqueamos. Bloqueamos pelo nosso próprio modo de viver.

E hoje, então, nós vamos falar do quarto aspecto do que nós denominamos método aqui, que é a respeito, que se trata da potência de diferenciar e do ato de criar valor. Isso que hoje nós vamos cuidar. É exatamente a quarta passagem.

Ou seja, nós destacamos aqui as quatro grandes passagens como sendo duas do ponto de vista crítico e duas do ponto de vista criativo. A primeira do ponto de vista crítico é uma queda do nosso desejo, à medida em que ele se separa da própria potência de acontecer. Essa primeira queda desemboca geralmente em uma segunda queda, que nós mal detectamos como queda, geralmente não detectamos como queda porque isso aparentemente nos eleva. Essa segunda queda nós denominamos de empoderamento.

Então essa dupla captura. A primeira, que implica um mau uso do que fazemos daquilo que nos acontece; e a segunda, que é uma busca a partir desse mau uso que fazemos daquilo que nos acontece, por uma instância que nos resgate, e da qual nos tornamos cúmplices, porque desejamos que ela esteja aí, que alguma provisão, que algum provimento, que algum provedor esteja à nossa mão, disponível para que possamos dele se servir para esse resgate.

Então, esse duplo aspecto crítico que constitui aquilo que nós denominamos “a primeira queda”, pelo mau uso do que nos acontece, e “a segunda queda”, pela vontade de empoderamento que daí deriva.

E, ainda, um aspecto criativo, que se duplicava em uma condição e em um princípio. A condição é a do reencontro com a superfície. Tema este que tratamos no nosso último encontro, no nosso terceiro encontro. E à medida em que reconquistamos essa superfície, nós criamos as condições para nos diferenciar, para nos pormos em ato criador de valor, criando novas maneiras de existir, criando as próprias condições da nossa efetuação, e criando também a nós mesmos. Principalmente criando a nós mesmos. Então esse aspecto é essencial.

Gente, eu vou precisar fechar aqui a janela porque hoje a praça que está aqui às minhas costas está um pouco barulhenta. Tem um evento aí em frente, alguma aglomeração, então acho que é melhor fechar.

Não sei se gera muito reflexo. Acho que está tudo bem.

Eu queria, antes de… fazer um resumo dos três primeiros encontros, para entrarmos nessa quarta passagem, nessa quarta grande passagem, dizer uma coisa. Eu li boa parte das questões que foram surgindo aí no chat, e confesso a vocês que é impraticável a gente cuidar dessas questões em uma aula em que eu preciso passar muito conteúdo, e concorreria com esse conteúdo, e a gente dispersaria, desperdiçaria esse tempo precioso. Não que as questões não sejam relevantes, mas eu acho que aí merecem um encontro à parte mesmo. Eu já estava suspeitando que seria necessário um encontro à parte, e quando eu me deparei realmente com a quantidade de questões que surgem aí no chat, é necessário realmente a gente fazer um encontro à parte.

Então eu já vou anunciar a vocês que no próximo domingo, dia 18 de julho, no mesmo horário, às 19 horas — e aí será novamente no domingo. Este encontro, este quarto encontro que foi excepcionalmente no sábado, que está sendo excepcionalmente no sábado. Mas aí vamos fazer um quinto encontro, então, só para responder a questões. E eu vou aproveitar para apresentar um programa do Curso de Formação em Esquizoanálise. Mas aí será um evento à parte. Então faremos isso no nosso próximo encontro. Eu responderei às questões e depois apresentarei esse programa que é uma oportunidade para quem quer ir mais a fundo, se aprofundar em uma formação que criará um percurso bem aprofundado, com muitos detalhes, com muitos desdobramentos, para que possa se fazer uma pesquisa, um mergulho com bastante consistência, implicando aí uma via de experimentação e, ao mesmo tempo, uma prática de desconstrução de si, sem a qual não conseguimos apreender essas realidades. Pincipalmente essas que tratam da face criativa desse método, que é o encontro ou reencontro com a superfície, e também a condição de se tornar uma força de criar valor.

E isso só se dá à medida em que vamos operando a desconstrução em nós. Não tem outra saída. É realmente um trabalho que é necessário se fazer. Esse cuidado de si não é um cuidado passivo, não é um cuidado piedoso, não é um cuidado complacente. É um cuidado que envolve uma amorosidade cruel. Uma certa crueldade, um gosto pela desconstrução ou pela destruição daquilo que nos rebaixa, daquilo que nos separa das nossas forças mais interessantes, mais raras, mas extraordinárias, que estão aí, mas que geralmente nós sequer suspeitamos, mesmo em sonho ou em imaginação.

Então esse trabalho é fundamental, mas, claro que o que eu estou fazendo aqui é trazendo um conteúdo suficiente para que vocês iniciem essa pesquisa por vocês mesmos, para que vocês possam fazer esse caminho por vocês mesmos. Isso é o que eu posso fazer de geração de conteúdo gratuito. Aulas abertas para que todos tenham oportunidade de acessar essa via que é tão interessante e luminosa, mas que implica realmente uma dedicação, que implica uma empreitada de mergulho, de estudo, de pesquisa e de percepção de si, fundamentalmente, para que daí reconquistemos essas forças que nos tornam também aliados de vidas que desejam essa libertação. E, nesse sentido sim, podemos, cada um de nós, nos tornar também um clínico, um esquizoanalista.

Então eu acho que a esquizoanálise está ao alcance de todos, com a condição de realmente desejar intensamente fazer esse trabalho sobre si.

Então é isso, eu estou aqui oferecendo essas aulas, esses encontros de modo a mostrar o caminho que eu encontrei no encontro que tive com esses pensadores nômades, e também, claro, especialmente com a esquizoanálise, que é criada por Deleuze e Guattari. E, ao mesmo tempo, trazer a minha contribuição, porque eu acho que a esquizoanálise é um movimento de pensamento e de prática clínica em construção.

Então nós precisamos avançar cada vez mais, e eu estou fazendo este trabalho e oferecendo o que eu posso, de modo aberto e gratuito, e para quem realmente deseja se aprofundar mais e queira se aliar a esse movimento que eu estou fazendo já há bastante tempo, aí tem uma oportunidade que eu vou apresentar na nossa aula última, excepcionalmente, que eu vou abrir para responder as questões, então, e daí, na segunda metade dela, eu apresento esse programa. Então, para quem estiver interessado em seguir, terá essa oportunidade. E para quem não está, ou acha que com isso que eu estou apresentando aqui vai dar para fazer o trabalho sozinho, eu vou tentar passar o máximo que eu posso, para que vocês possam também fazer esse trabalho por si mesmos.

Então eu quero voltar, resumir as três primeiras passagens que foram tratadas nos três primeiros encontros, para já adentrar nessa quarta passagem, que é tão interessante, importante e absolutamente necessária. A gente não pode fazer todo esse caminho de desconstrução e morrer na praia, não é isso? Então, aqui, à medida em que eu apresento essa quarta passagem, eu também mostro como você pode criar para você mesmo um circuito autônomo, um devir ativo, afirmativo e autossustentável do desejo ou de um modo de desejar intensivo, cujo pensamento é afirmativo, e cujas forças dominantes são as forças ativas.

Nós podemos, sim, cada um de nós, entrar nesse processo de plenitude, não importam as condições sociais, históricas, econômicas dadas. E, de novo, uma coisa muito importante para se lembrar aqui. Nós não precisamos de patrocínio. Nós não precisamos de um fomento exterior, exceto, claro, para se alimentar, para ter um abrigo, um cuidado básico com o corpo biológico, fisiológico, para ter aí uma sobrevida, porque não adianta nada você pensar, se você não consegue nem respirar. Então você tem que realmente ter uma condição básica de sobrevivência, para aí sim poder empreender.

Mas o que eu quero dizer com “não são necessários outros patrocínios” é que não é necessário você ter uma condição econômica confortável, não é necessário você ter uma condição intelectual bem formada. Muitas vezes essa condição mais atrapalha do que ajuda. Não é necessário nenhum pressuposto, exceto o teu desejo, a tua vontade de pensar, de experimentar uma outra maneira de viver, percebendo que a existência te dá essa chance a todo momento. A oportunidade, a ocasião está sempre diante de nós mesmos, diante dos nossos olhos.

E por que não fazemos o uso disso que se apresenta sempre como um alimento inédito para nós? Porque nós estamos um tanto cegos em relação ao acontecimento que não para de acontecer diante de nós. Então é isso. E quanto mais fizermos isso, menos vamos precisar nos tornar amargos, tristes, rancorosos e investir em uma política do confronto, uma política de revanche, uma política vingativa do desejo, porque, à medida em que recobramos as nossas forças, nós nos tornamos mais leves, mais alegres, mais generosos, mais compreensivos, sem, obviamente, sermos tolerantes com aquilo que deve cruelmente ser destruído. “Cruelmente”, eu digo, mas com uma crueldade amorosa, obviamente.

Então, é isso. Eu vou fazer esse resumo, então, dos nossos encontros anteriores, e eu entro no nosso tema de hoje. Tá bom? Vamos lá.

Bom, de novo, aqui, eu vi que tem muita gente cumprimentando, dizendo boa noite. É sempre uma alegria ver as manifestações de vocês aqui. Depois eu leio com calma, uma por uma. Eu tenho lido. E isso muitas vezes a gente fica bastante emocionado, bastante contente em saber que esse processo que nós inventamos, instauramos, ele segue com muita força e ele criou um movimento de retroalimentação. Então ele já é um movimento em curso, com muita autonomia. Nós não temos nenhum vínculo com nenhuma instituição, com nenhum financiamento, com nenhuma empresa, seja privada, seja pública. Portanto, podemos exercer a prática do pensamento, e mesmo a prática clínica, de modo absolutamente livre no sentido dessa liberdade que é uma potência de efetuação e, claro, não a liberdade do livre-arbítrio. Essa liberdade que faz com que a vida entre nesse circuito ativo e afirmativo, autossustentável, nessa roda que gira por si mesma.

Ou seja, naquele sentido que nós já falávamos quando mencionamos as três metamorfoses do Zaratustra, de Nietzsche, quando, por fim, o espírito se torna criança. Reconquistar a inocência e inaugurar um novo começo, e se tornar uma roda que gira por si mesma, jogando e não mais trabalhando. Mas não jogando como apostadores, mas jogando como afirmadores que somos, à medida em que sabemos amar também a fatalidade. O amor fati, a afirmação do acaso e a transmutação do acaso em força e desejo. Então é isso.

Vamos lá, então. Nós iniciamos dizendo o quê? Que ao desejo nada falta. O slogan já que inaugura a esquizoanálise na obra chamada O anti-Édipo. O tempo inteiro eles dizem isso, ao desejo nada falta, o inconsciente é uma usina, é uma fábrica, e ele produz realidades e não fantasmas. E essa realidade, essa fábrica do real também nos constitui, e é com ela que temos de nos reconectar de modo imediato. De alguma maneira estamos conectados com ela, mas atravessados por várias mediações. E nós não acessamos essa realidade pelo nosso próprio modo de viver. Essa tese é central.

Aqui nós chamamos toda a responsabilidade para nós mesmos. Deixamos de apontar o dedo. O nosso modo de vida tem grande parcela de responsabilidade sobre a “falta” de condições para acessar imediatamente o real e nos ligar novamente a essas forças que nos constituem como forças de criação de realidade das próprias condições da existência e criação de si mesmo. Então o nosso modo de vida tem muita responsabilidade nisso.

E nós dizíamos que isso tem a ver com a primeira captura. A primeira captura é aquela que detecta ou que faz um uso daquilo que nos acontece, algo em nós faz um uso daquilo que nos acontece de modo a atribuir a causa disso que nos acontece a um outro, a uma exterioridade. Seja a causa do bem que nos acontece, seja a causa do mal que nos acontece. Nós vimos isso de modo até bem detalhado, pelo tempo que temos aqui.

Só que esse aspecto cria uma condição para o desejo. O desejo, uma vez capturado por aquilo que aconteceu a ele, uma vez engolfado por esse acontecido, ele passa a desejar a partir dessa queda. Ele passa a desejar a partir dessa captura. Ele passa a desejar a partir de uma posição piedosa e vingativa, no caso dos maus encontros, ao mesmo tempo em que em uma posição complacente e empoderadora, no caso dos bons encontros.

Então toda matéria de produção de subjetividade, de uma vida tornada reativa, já está aí disponível para um modo de se relacionar em sociedade que será a matéria principal para a formação de um centro de poder, para a formação de um centro de soberania.

Então, a primeira captura acaba, na nossa cumplicidade, contribuindo, de um ponto de vista animal ou de um ponto de vista informal, para oferecer uma matéria que já traz toda a miséria do desejo, como um adubo, um fermento para se inaugurar um centro de soberania. E claro que, junto com esse modo de viver reativo, a segunda captura já está lá à espreita. Ela já está lá na expectativa. Nós vimos isso bem no segundo encontro, que a segunda captura só funciona se debruçando sobre essa matéria separada do que pode do desejo, sobre essa miséria que preenche o desejo, sobre essas paixões tristes que nos separam do que podemos.

Sempre que as paixões tristes nos preenchem, vai ter um tirano, um déspota, um padre, um publicitário, talvez, um guia, um messias para nos dar a mão e nos levantar através desse sistema de empoderamento que é necessário para que essas vidas se resgatem, mas, ao mesmo tempo, é principalmente necessário a esses que têm vontade de poder, esses centros que crescem com as vontades de poder e que se alimentam das paixões tristes.

Então, a segunda captura não decorre mecanicamente da primeira. Por isso que é complicado. Eu dizia, não há uma sucessão linear e cronológica. Não vem antes a primeira captura e daí a segunda vai ter ocasião de emergir. Muitas vezes, a primeira captura começa com a segunda. Ela começa já com um centro de poder fomentando e contribuindo para que a vida se separe das suas potências. E à medida em que a vida se separa das suas potências, essa mão do poder está lá, se estendendo, se debruçando sobre essas vidas tornadas miseráveis. E há uma conjugação. Há uma pressuposição recíproca entre a primeira e a segunda captura, entre a vida tornada miserável, do ponto de vista simplesmente animal — porque nós, preenchidos de paixões tristes ou submetidos simplesmente às paixões e à imaginação, nós não sabemos exatamente o modo de sair ou criar a nossa liberdade, aquilo que nos resgataria, aquilo que nos libertaria e, mas aí já é… nós estamos pedindo por uma instância salvadora. Nós estamos investindo nessa instância salvadora, mas essa instância salvadora, de alguma maneira, já está ali. Ela já coexiste.

Existe um pensador na antropologia, extremamente interessante, chamado Pierre Clastres. E Pierre Clastres tem uma tese célebre que diz que as sociedades ditas primitivas não são meramente sociedades sem Estado, sociedades sem propriedade privada, sociedades sem mercado, sociedades sem dinheiro, sociedades sem história. Ele diz “Não, essas sociedades são contra o Estado”. Isso vai de encontro, quer dizer, vai contra uma série de teses sustentadas até então, que nas sociedades ditas primitivas simplesmente não havia Estados, eram sociedades sem Estados. Mas Pierre Clastres demonstra que o modo de existir dessas sociedades é um modo que impede, que se previne, que já vislumbra essas forças demoníacas, essas forças nocivas que podem se apoderar dos seus modos, dos seus corpos, dos seus pensamentos, dos seus rituais, do seu uso de linguagem, das suas memórias, que podem se apoderar e criar centros de poder. Essas sociedades, essencialmente, criam mecanismos, ou melhor, dispositivos de esconjuração do Estado. Esta é a tese de Pierre Clastres.

O que Clastres está dizendo é o seguinte: não é que o Estado não esteja ali. O Estado já está virtualmente ali. E no fundo, no fundo, virtualmente, o Estado está onde, sempre? O Estado está sempre onde a vida perde a potência de se relacionar. É uma espécie de um Estado que acomete o vivo, e que de alguma maneira implica uma certa catatonia, implica um certo autismo, implica um certo isolamento. É um Estado de não-relação. Todo Estado começa com um Estado de não-relação.

Então, quando a vida se coagula, ela tende a se perturbar, mas mais do que isso, se indispor com aquilo que a afeta de fora. Ali já tem uma semente para emergir um Estado. Então esse movimento do desejo que perde o gosto pelo acontecimento, que perde o gosto pela relação, é a condição para que o Estado emerja. E ao mesmo tempo sempre existe algum tipo de vida em posição de espreita e captura dessas vidas tornadas impotentes. É como se tivesse ali a fome com a vontade de comer, sempre juntas. A fome do impotente com a vontade de poder, desse misto de doença com vontade de poder. Esse encontro entre o escravo e o tirano, entre a ovelha e o pastor, entre o fiel e o sacerdote. Há então uma coexistência disso, e isso, quando cria as condições para fazer o vínculo e instaurar um sistema operante, isso emerge como um centro de soberania. O centro de soberania brota, cresce, se desenvolve, se expande, se replica e se reproduz.

Esse aspecto é fundamental, porque não há apenas uma cumplicidade, à medida em que o nosso modo de existir corrobora aquilo que nos separa das nossas forças mais vitais, das forças ativas em nós. Não apenas a cumplicidade com o nosso modo de viver que nos separa da nossa potência de existir, mas, ao mesmo tempo, uma espécie de visão predadora que está ali sempre à espreita, que vive das paixões tristes, que vive da miséria humana, e que vai criar um poder tal que vai oferecer para essas vidas miseráveis um poder, uma salvação, um reconhecimento, uma restauração, uma restituição dessas vidas danadas. Mas essas vidas vão deixar de ser danadas e malogradas? Ao contrário, elas vão ainda se chafurdar mais nessa sujeira do poder.

O empoderamento de modo algum vai torná-las mais livres. Mas elas não vão saber encontrar outra saída. Por que será? Porque em vez de fazer a lição de casa logo no primeiro movimento de queda, elas se afundaram ainda mais, buscando uma saída fácil, uma saída trapaceira, uma saída justiceira, uma saída complacente, uma saída do gosto por um prazer que simplesmente alivia e conforta e consola.

Nós destacamos fundamentalmente no nosso segundo encontro isso, que na base de todo o poder está o desejo. Não adianta atacarmos o poder como um mal. Não adianta atacarmos o capital e o capitalismo apenas. O capital e o capitalismo vivem da miséria, da impotência, da reprodução da impotência. Há uma fábrica de enfraquecimento. Se existe um devir dominante nas nossas formações sociais, esse devir é um devir reativo. Nós devemos aprender a qualificar os devires porque, no fundo, não é que saímos do devir. Seguimos em devir. É impossível estar fora do devir. Nós vamos seguir sempre em devir. O que acontece é que há uma inversão. O nosso devir, quando ele se torna reativo, ele se torna reativo por uma negação da própria autossuficiência do acontecimento, do próprio acontecimento como fonte, como alimento da nossa potência. A negação disso é que nos impõe a necessidade de buscar uma segurança, de buscar uma região fixa, de buscar um plano transcendente de valores que nos resgate, que nos organize.

Esse aspecto é fundamental. A cumplicidade é o problema mais grave que temos. Então a cumplicidade não tem a ver com culpa. Eu insisti muito nisso. É fundamental que a gente se libere da culpa, porque a culpa, em um certo sentido, é uma solução mais fácil. E ao mesmo tempo é uma solução muito conformista, que nos desresponsabiliza também. É como se disséssemos “Ah, a vida é realmente imperfeita, ora o outro é culpado, ora eu mesmo sou o culpado”, e não percebemos que isso tudo está dependendo do nosso jeito de existir, da nossa maneira de existir, do nosso modo de viver, de sentir, de agir e de pensar. Depende disso.

Quando a gente detecta isso, a cumplicidade se torna um presente então. “Nós somos cúmplices? Viva!”. Que bom. Que bom você entender que a cumplicidade te atinge, porque você tem a chance, você tem a ocasião de modificar. À medida em que você se percebe cúmplice, você pode mudar. Então, aceitar o que se passa, o que se passou, não é se conformar com o que está dado, mas é justamente perceber a ocasião, a oportunidade que temos na mão de modificar a nossa maneira de viver, a nossa maneira de sentir, a nossa maneira de agir, a nossa maneira de pensar, a nossa maneira de imaginar, a nossa maneira de registrar os acontecimentos e produzir memória, a nossa maneira de fazer a diferença, a nossa maneira de atender às demandas, a nossa maneira de cuidar de nós mesmos. Isso tudo é um grande presente: perceber que nós estamos implicados. Deixar de apontar o dedo é fundamental.

Muitas vezes ficamos esperando um salvador. Buscando alguém que fale por nós, alguém que pense por nós, alguém que ilumine por nós. Ok, ok, você encontrar uma luz, você encontrar um movimento, encontrar forças que estão avançando, que estão adiante. Você também se adianta junto com isso. É maravilhoso, mas isso não te desonera, isso não te desobriga de você fazer a sua parte. Todos nós temos que fazer a nossa parte.

Então o que nos impede de nos ligarmos às nossas próprias forças e às nossas potências de diferenciar e de criar valor, o que nos impede? Primeiramente, é o nosso modo de viver. Isso não tem nada a ver com individualismo, porque o modo de viver é a charneira, é a zona de passagem, é aquilo que nos conecta imediatamente com o social, com o coletivo, com o histórico, com o cultural. O modo de viver é a porta de entrada e de saída em relação ao dentro e em relação ao fora. O dentro que passa por fora, o fora que passa por dentro, através do modo de vida. É a nossa superfície de contato com o real.

Muitas vezes eu vejo, tem muita confusão de gente de esquerda que diz assim, “Mas a esquizoanálise, ou esse pensamento pode até falar em micropolítica, mas como fica a macropolítica?”. Gente, a coisa mais importante para a macropolítica é encontrar essa dimensão micropolítica. Você não vai fazer nada na macropolítica se você já não agir junto na micropolítica. A micropolítica é urgente, necessária, prioritária. Pare de pensar em macropolítica se você não cuida do seu jeito de existir, do seu modo de viver, de sentir, de agir e de pensar. Sabe? Pare de se desviar, porque isso é maneira de fugir. E de fugir de modo covarde, de transferir sempre para uma instância que vai resolver.

Por que essa situação está aí e perdura? Por que nós temos essa sociedade rendida? Por que, depois de tudo o que esse presidente fez, ele segue aí? Sabe? Não é que ele esteja de acordo com os valores mais caros de uma certa sociedade democrática, onde teria um Estado Democrático de Direito. Muito ao contrário, sabemos muito bem, a lei é feita para ser transgredida. A lei é sempre advinda de uma força. E quem legitima hoje de alguém se manter no poder, de alguém regular o que está aí, inclusive as leis do próprio judiciário, são forças que se ocultam, mas elas estão escancaradas ao mesmo tempo. São forças do capital, obviamente. Não é nem deste ou daquele capital — do capital financeiro, do capital imobiliário, do capital fundiário, do capital industrial, do capital comercial —, mas de um direito abstrato do capital.

Essas forças se acumulam, se aglomeram em um polo, e é esse polo que legitima as relações de sociabilidade, as regras do jogo. E nós ficamos achando que as leis, por si mesmas, garantem a nossa vida e a nossa liberdade. Depois de tudo o que esse cara falou, ele está aí. E o Congresso faz alguma coisa? O Supremo faz alguma coisa? O que acontece exatamente? Enfim.

A macropolítica só vai ser realmente mudada se reconquistarmos a micropolítica. O capitalismo inventou uma coisa interessantíssima, muito curiosa. Marx já dizia isso e Foucault vai reiterar. Godard, nas suas obras cinematográficas, até reivindicando por Lefort, um discípulo de Merleau-Ponty, diz “O que falta à política é o pensamento”. Na política não tem pensamento. E Foucault vem e diz assim, “Mas na verdade a política foi esvaziada da sociedade”. A política foi sequestrada. Então, a política sequestrada por instituições. Nós acreditamos que essas instituições nos representam? Mas que ingenuidade a nossa. Nós, na verdade, alimentamos essas instituições. Alimentos isso tudo com o nosso modo de viver, com o nosso modo de desejar, com o nosso modo de acreditar. É o conjunto de desejo e crença que sustenta isso tudo, mais do que um centro de poder. Porque mesmo esse capital, ele não vive sem nós, ele não vive sem a vida. O capital não vem do nada. Esse direito abstrato é um direito de capturar o quê? O que está vivo. O que tem tempo próprio, o que tem energia própria e que deve se tornar disponível.

A micropolítica é fundamental. Precisamos parar com esses lamentos de que a esquizoanálise, ou o pensamento nômade, ou a filosofia da diferença ficam sem nenhuma proposição política, sem nenhuma via clara. Você quer coisa mais clara do que isso que nós estamos dizendo aqui?

Então, comece por você. Temos que começar por nós mesmos. E não deixar, obviamente, de também, por efeito, agir diretamente sobre o campo social. Obviamente, obviamente. Não é se isolar. Mesmo porque, se você faz isso de modo inteiro, você percebe o quê? Você percebe que não tem sentido você fazer isso tudo sem você entrar em relação. Nós fazemos parte da humanidade. Nós não somos indivíduos isolados. Não somos ermitões. Se quisermos ser ermitões, ok, muito bem, mas vai dar onde? Vai dar em nada isso, vai dar em um isolamento.

O pensamento é para ser compartilhado. O nosso desejo, a nossa vontade criadora é para ser doada. Nós somos seres doadores. Nós somos seres dadivosos essencialmente, em essência. Mas para isso temos que saber receber, e nós temos que reaprender a receber aquela realidade que já está aqui, ofertada pela natureza para nós. E nós estamos separados dela. Por quê? Porque vivemos de mau jeito e não percebemos isso. Por que não percebemos isso? Tem muita coisa concorrendo para que sejamos seduzidos.

Então, esse segundo aspecto é muito sedutor, o aspecto do empoderamento. E aí dizemos “Não, então a saída está aí. A saída está em se empoderar”.

Bom, gente, então eu estou marcando aqui o quê, exatamente? Marcando a necessidade de a primeira captura andar junto com a segunda. É nessa medida que fica tudo mais difícil de mudar, porque a segunda gera alegria. Obviamente que é uma falsa alegria, mas ela te conforta, ela te dá segurança, ela te dá reconhecimento, ela te possibilita um gozo, uma satisfação. Qual satisfação? É uma satisfação que não está nas tuas mãos, não está nas nossas mãos. Por quê? Porque ela depende de circunstâncias exteriores.

Existe uma coisa que eu quero trabalhar hoje aqui, que é a questão o rimo. Uma vida livre, realmente livre — não no sentido do livre-arbítrio, mas na potência de se efetuar, na potência de se efetuar. Isso é uma vida livre. Vida livre é aquela que cria o próprio real, e não aquela que simplesmente encontra as portas abertas ou opta por uma abertura aqui, uma abertura ali. Mas o que é a abertura senão uma provocação para que você se diferencie? Você tem que investir na sua potência de se efetuar.

Então, a potência de se efetuar depende de um encontro com as próprias forças. Um encontro com as próprias forças…

Só um minutinho, gente, eu só preciso fechar aqui. Um minutinho.

Perdão, gente, era uma interferência. Para ficar aqui mais silencioso o ambiente, eu fechei aqui.

Mas enfim.

Então o que eu quero dizer é que nós precisamos reencontrar as nossas forças. E para reencontrar as nossas forças, nós precisamos desconstruir aquilo que nos separa, e aquilo que nos separa implica uma dupla cumplicidade. É isso. E a cumplicidade não tem a ver com culpa.

Bom, aí nós investimos, na última aula, no último encontro, em uma maneira de cortar esse movimento da dupla captura, suspendendo o acontecimento, suspendendo aquilo que eventualmente nos alimenta, do ponto de vista do poder. Largando o osso, deixando de investir naquilo que nos resgata. E não é fácil, claro. Não é fácil, porque aparentemente a dor vai aumentar, a tristeza, talvez. O sentimento de abandono, o sentimento de miséria, o sentimento de estar perdidos podem aumentar com isso.

Nós citamos uma obra de literatura, Bartleby, o escriturário, para observar que isso gerava uma condição interessante. À medida em que deixamos de atender às demandas exteriores, nós, com os nossos desejos submetidos, miseráveis, aprendemos a buscar, a alimentar, a sustentar uma exterioridade, um campo de demandas que nos autoriza, que nos reconhece, que nos empodera, que nos faz existir, que nos dá direito ao gozo. Nós aprendemos a fazer isso. E quanto mais miseráveis somos, mais queremos ser amados. Quanto mais impotentes somos, mais queremos ser aceitos e temos medo da rejeição. Quanto mais estamos preenchidos de tristezas, mais temos um sentimento de humildade, no sentido da humilhação, e buscamos um espelho — e aí, sim, você pode até falar em narcisismo. Você busca algo que te faça existir pela lente do outro. Você investe dessa maneira.

Então, você existir pela lente de um outro te faz realmente se sentir um existente? Te faz realmente você se preencher de uma intensidade que te torna pleno na existência? Que eleva a sua potência? É claro que não.

Então, “Prefiro não”. “Prefiro não atender a esta e àquela demanda”, seja do ponto de vista do corpo, do desejo ou do pensamento, faz com que você indetermine. Nós vimos bem a zona de indeterminação, que era o primeiro aspecto dessa superfície, disso que nós denominamos superfície no terceiro grande portal, na terceira grande passagem. A superfície é, antes de tudo, uma zona de indeterminação. E a zona de indeterminação, a indeterminação do quê? A indeterminação de tudo o que chega com determinação, com poder de demanda sobre nós. Então, a gente: “Opa, mas será que isso tem mesmo esse poder?” Será que isso tem mesmo a capacidade de nos obrigar a entrarmos naquele movimento? De atender, de virar função de outra coisa? Por quê? Porque nós vamos receber o nosso salário, algo em troca?

Aqui existe uma oportunidade. Qual oportunidade? Quando você deixa de atender à demanda, você pode sofrer represália? Pode. Você pode ser rejeitado? Pode. Você pode ser segregado, discriminado? Pode. Mas também você pode, ao mesmo tempo, perceber que quando você suspende e diz “Prefiro não”, você ganha uma condição também de espreita. Como os animais têm essa função essencial. Toda a vida animal tem necessariamente essa faculdade da espreita. Essa capacidade de espreitar, de durar no acontecimento, de se tornar imóvel exatamente para que os devires comecem a se passar. Como diz Deleuze, “Não me mexo muito para não espantar os devires”.

Esse é o movimento nômade. O movimento nômade não é esse que faz grandes estardalhaços, que se desloca um monte, isso é a itinerância, a migração. O nomadismo se faz especialmente no mesmo lugar. Não necessariamente, mas especialmente no mesmo lugar. Porque é a nossa potência mesma que vai mudando, e não necessariamente o nosso corpo que está se deslocando.

E isso nós ganhamos com a espreita. Percebemos que somos animais, finalmente. De novo. Quando percebemos a nossa cumplicidade com a dupla captura, e dizemos assim “Ora, é necessário que seja assim?” Não, não é necessário, mas como eu sei que não é necessário? Experimente. Ouse um pouco. Claro, você não precisa ousar demais, no sentido de ter uma overdose. Você pode quebrar a cara. Dar com a cara contra o muro. Não adianta você bater com a cabeça no muro. Como dizia o próprio Artaud em relação a Van Gogh, “É preciso aprender a limar o muro, e não dar com a cabeça contra o muro”. É preciso saber atravessar os estratos e não simplesmente negar os estratos de modo voluntarista.

Esse cuidado com doses, aprender a dosar o “não”, o “Prefiro não”. Aprender a dosar, à medida em que você também pode suportar. Bartleby não dosou e ele morreu. Por quê? Porque ele teve uma overdose sem criar a consistência. Sem criar a consistência. Sem persistir na duração. Sem investir nos intervalos de movimento. Sem reforçar a potência de não se deixar afetar. Porque não adianta simplesmente não atender. É preciso ter a contraforça. É preciso se fortalecer. É preciso se potencializar. E como você se potencializa, se você abre mão do sistema de poder? Buscando onde a potência se alimenta. E onde ela se alimenta? No modo de viver. O modo de vida é a nossa fonte. O modo de vida. Não exatamente o modo de vida, mas é pelo modo de vida que nos relacionamos diretamente com o acontecimento. Sem mediações, sem representação.

Então, o modo de vida. Ele leva para esse segundo passo, esse segundo operador. Do “Prefiro não” à ascensão para a espreita, à ascensão para essa contemplação do acontecimento, não a contemplação de ideias, da transcendência, como era em Platão. A contemplação é do acontecimento, é do devir, é do que se passa diante de nós, que nos envolve, que nos implica, que nos provoca, que nos invoca, nos conclama.

Estar presente aí implica então, portanto, essa zona de indeterminação. Valorizar mais a indeterminação do que as determinações de poder, as determinações de um corpo eficiente. Quando eu organizo a minha vida e atendo às demandas de modo muito eficiente, do ponto de vista físico e fisiológico do meu corpo. Do homo faber. Do ponto de vista do homo faber, do homem que tem técnicas, do artefato, enfim.

Eu preciso também valorizar mais a experimentação em vez de moralizar as paixões. Porque eu, moralizando as paixões, eu vou sofrer uma determinação exterior a partir da lei. Eu interiorizo a lei, soldo a lei ao desejo, me tornando um modelo de normatividade, como o próprio Kant se tornou. E aí o que você ganha com isso? Você se torna um sujeito legislador? Grande coisa. Um sujeito legislador moral, fundado por um imperativo categórico. E você ganhou alguma autonomia? De modo algum. A sua autonomia depende de uma pura forma de dever-ser.

Então essa determinação tem que voltar a ser indeterminada. Investir na ambiguidade, na pluralidade, na inocência dos afetos. Porque a inocência dos afetos está não em negar as paixões, mas em afirmar as paixões para transmutá-las em ações. É isso o que o moralista não faz, por isso que ele não tem autonomia.

E, ainda, valorizar um terceiro campo de indeterminação. Além da indeterminação no corpo, desinvestindo a eficiência corporal; além da indeterminação no desejo, desinvestindo a responsabilidade moral; também a indeterminação no pensamento, desinvestindo a competência racional.

E a zona de indeterminação, então, cria as condições para quê, exatamente? Para que aquelas forças que estavam escondidas, subterrâneas, recalcadas, enfim, maltratadas, desfocadas, obscurecidas, invisibilizadas, imperceptíveis, tornadas imperceptíveis, elas se manifestem de novo com a espreita. E o que é a espreita senão um esticamento do movimento e uma dilatação do tempo? E nós começamos a perceber que nós somos feitos desse tecido, desse duplo tecido. Do movimento intensivo, que faz corpo em nós; e do tempo que dura, que faz espírito em nós. É isso que gera essa dupla dimensão da potência e da força como essência humana.

Então nós começamos a reencontrar as nossas forças. No corpo, investindo no vazio, investindo no esquecimento das marcas. No vazio das formas, que é a condição para intensificar o movimento. Investindo na distância do desejo, não para abandoná-lo, para isolá-lo em uma cápsula. O que nós chamamos de “solidão” nada mais é do que a retomada do tempo próprio do desejo, que tem seu ritmo de efetuação. Solidão deveria ser sinônimo de retomada do tempo próprio, ou do ritmo que é dado pelo pulso da vida, e não pela máquina social. Essa solidão é fundamental. É esse alisamento do campo afetivo. A superfície lisa do campo afetivo é isso. Então a superfície lisa do campo corporal ou do movimento. A superfície lisa do campo afetivo ou do desejo. E ainda a superfície lisa do pensamento, que é dada pelo silêncio.

O silêncio que faz o quê? Que quebra as cadeias significantes. Em vez de um signo remeter a outro signo, uma imagem a outra imagem, operando uma tagarelice linguística, ao mesmo tempo em que uma tagarelice mental, o silêncio quebra essas cadeias. Para quê? Para fazer um nada de pensamento? A indeterminação, aqui, seria simplesmente um nada de pensamento? Não. A indeterminação aqui é uma indiscernibilidade. As oposições entre masculino e feminino, entre classe A ou classe B, entre esta ou aquela cor, entre esta ou aquela dualidade binária ou dicotômica se torna desimportante, desinteressante, deixa de fazer sentido. Gerar essa indiscernibilidade para que a diferença essencial emerja. A diferença no pensamento, e não essa falsa diferença que vem da cadeia significante. Ao mesmo tempo que a diferença essencial emerja pelo próprio desejo, e não por essa subjetivação que é feita de encadeamento de paixões. De paixões e de imagens.

Assim, essa indeterminação, para falar ao modo de Bergson, é um plano necessário de todo vivo. O fato de todo vivo ser constituído em um intervalo de movimento já faz dele uma força de indeterminar. Então, a indeterminação não é uma impotência de determinar. Ao contrário, é uma força de indeterminar, é uma força ativa, assim como Nietzsche diz que o esquecimento não é uma falta de memória, não é uma força da inércia o que nos faz esquecer, o esquecimento é uma força ativa. Tem tudo a ver com o esquecimento de Nietzsche, a indeterminação em Bergson.

Então, a indeterminação gera o quê? É a porta de entrada do quê? Do silêncio, do vazio e da solidão que, por sua vez, manifestam a nossa força de indeterminar e de espreitar — porque o ato de espreitar é um ato de indeterminar. O ato de espreitar é um ato, minimamente, no mínimo é um ato de resistência. No mínimo. O ato de espreitar é um ato onde invoca-se toda a nossa presença, com a nossa potência por inteiro no acontecimento. Essa presentificação, encontrar a natureza do próprio presente. Esse investimento, portanto, na espreita é fundamental.

Nós vimos no nosso último encontro que a ampliação do intervalo de movimento é ocupada não por outros movimentos ou corpos, ou mesmo por paixões — pode até ser, e é isso o que faz o poder o tempo inteiro, e é isso o que faz a nossa cumplicidade. Nós entupimos os poros, as passagens onde o intervalo de movimento ou o vazio deveria ser preenchido por duração. Então, desobstruir esses poros. Fomentar, investir no vazio é justamente criar a ocasião para que a duração se torne dominante em nós.

E quando a duração se torna dominante, o que acontece? O que nós percebemos? É aqui que entra a quarta zona de passagem. É aqui que o desejo percebe que não só as suas forças estão se apresentando novamente na superfície, não só a potência de acontecer se encontra com o próprio acontecimento enquanto ele acontece a essa potência na superfície. Não só a potência sai do buraco dos estados de desejo, daquela prisão que a prendeu àquilo que aconteceu a ela. Não só ela sai daí como a idealidade que emergia como efeito dessa queda, que projetava em um plano celeste, em um plano transcendente, em uma altura ideal o resgate. Essa projeção cai por terra também, ela deixa de ser sustentada pelo buraco, porque a potência escapou do buraco e volta à superfície. Nesse mesmo movimento, é ao mesmo tempo que ela, voltando à superfície, toda a idealidade transcendente cai também, ou se torna passagem na superfície, vira acontecimento.

É por isso que Nietzsche, por exemplo, pode fazer da emergência ou da morte de Deus um acontecimento. Deus morreu. Deus nasceu. O que é isso? São acontecimentos. O que é esse deus? Esse deus emerge de uma posição do desejo. Se o desejo está atolado, ele nasce. Se o desejo de novo é desejado a partir de uma potência, esse deus morre, ele se torna desnecessário. Esse plano transcendente que nos empoderava se torna desnecessário.

Então é ao mesmo tempo que eu encontro a superfície, que eu invisto na zona de indeterminação, que eu invisto no intervalo de movimento, no vazio, que eu invisto na duração, no entretempo e no silêncio, e na distância, no tempo próprio de diferenciação que é a solidão, é ao mesmo tempo que essa zona de indeterminação cresce, que a condição de diferenciação se torna maior, mais presente e operante.

Então, nós não só nos ligamos novamente às nossas forças que estavam subjugadas, capturadas, recalcadas, invisibilizadas, destratadas, não só elas sobem à superfície, como elas se apresentam naquilo que elas são: potências de se diferenciar ou forças de criar valor.

E então aqui tudo muda. Eu dizia, no nosso último encontro, que o vazio, o silêncio e a solidão não são meramente, ou não têm nada a ver com uma renúncia, não têm nada a ver com uma negação da atividade, da ação. Não têm nada a ver com uma sobrevalorização ou uma supervalorização da compaixão no lugar da ação. Esse nosso termômetro, inclusive, para ver até que ponto existe algo no budismo que é uma tendência passiva, que é uma espécie de niilismo passivo, ou haveria um budismo mais interessante, que realmente… não apenas se reconciliar com ação. É perceber que a ação é geradora de diferença, portanto geradora de valor, e não há valor mais importante, interessante para a vida, valor mais liberador do que a ação, do que o investimento na ação.

Claro que temos que entender o que é ação, e aqui eu vou trazer um elemento para distinguirmos ainda melhor a diferença entre potencialização e empoderamento. Eu vejo que sempre voltam questões a esse respeito. “Ah, mas em que o empoderamento é tão ruim?”, “Qual é exatamente a diferença?”.

A diferença está exatamente em entender o que é uma ação. Entendendo o que é uma ação, entendemos também o que é um ritmo e um movimento de um devir ativo, autossustentável. Aí entendemos.

Olha só. Nesse movimento do “Prefiro não”, e depois a questão das doses. O “Prefiro não” tem que ter certas doses, ou seja, vai aos poucos. Dizendo “não” e abrindo mão de atender a certas demandas. Claro que você tem que fazer isso com jeito. Muita gente pergunta: “Mas como fazer isso na prática?”. Cada um tem que inventar o seu. Você tem que se pôr criando, porque não tem fórmula pronta, mas nós sabemos o caminho — que também tem que ser criado por cada um. Mesmo a gente sabendo o caminho, o caminho é feito pelo modo de existir, pelo modo de desejar. Nós sabemos como fazer esse caminho? Bom, esse caminho tem que ser feito nessa mesma medida. Se desligar, desinvestir, desvalorizar o plano de determinações, que é um plano de organização, que é um plano de inclusão de um espelho que nos faz existir através desse terceiro olho do poder, desse terceiro olho que está no centro de soberania. Nós temos que reencontrar um terceiro olho, sim, mas não o do socius, não o da máquina social, mas esse terceiro olho da nossa potência.

Tem algo antes da nossa consciência, do nosso sujeito, do nosso Eu, que seria um olho? Um olho espiritual, um olho do pensamento, um olho da consciência? Não, tem esse terceiro olho. Tem um “ele” em nós. Um “ele” entre eu e mim, que é mais importante e que vê que o “eu” e “mim” são afeitos desse “ele”. Esse terceiro olho. Esse terceiro olho quebra o espelho, não precisa do espelho.

Então aqui está a diferença sutil entre potência e empoderamento. O empoderamento depende sempre desse terceiro olho exterior. Depende de um plano de reconhecimento. De um olhar que te faz existir para o outro, que te faz existir para a sociedade. Agora, a potencialização depende da apreensão desse ser de potência em mim, em você, em cada um de nós.

E quando eu começo a perceber esse ser de potência? Quando eu percebo que eu, que você, que todos nós somos seres de tempo. Somos feitos do estofo da duração. Nós somos seres que duram, essencialmente. A nossa essência é durar. E não há duração que não implique algo que jamais deixe de ser. Nós duramos a partir de algo que nos sustenta, que jamais deixa de ser. Que nos faz nascer, inclusive. Assim como nós não duramos, não teria o menor sentido durar sem se modificar.

Então nós estamos entre algo que jamais deixar de ser e que dá sustentação à nossa duração, porque aquilo que dura perdura de alguma maneira; e algo que nos modifica, que nos diferencia, que nos singulariza, que nos faz diferir de nós mesmos, uma zona de passagem. Nós então estamos entre um ser de potência e uma zona de passagem, necessariamente. Nós somos uma linha esticada entre um ser de potência e uma zona de passagem. Entre um ser de potência e um ser do devir. Nós somos isso. Nós somos uma linha de tempo. Nós somos uma duração.

E toda linha de tempo ou duração tem um ritmo. À medida em que ela faz, ela é uma diferença entre a potência de acontecer e aquilo que dela difere. Ela é essa diferença. Ela é uma diferença entre a essência e a existência, entre o real virtual e o real atual. Todo o vivo, não só o vivo, todo modo existente, além da própria vida e na vida necessariamente, porque a vida é um modo da potência, é feito de uma potência e de um ato. É feito dessa dupla realidade, virtual e atual. E nós somos essa realidade em movimento, porque nós somos uma duração. Em mutação, em variação contínua. É essa a nossa essência.

E quando retomamos isso? Suspendendo as demandas. Preferindo não. Não atender a demandas, não deixar que capturem ou sabotem o nosso tempo próprio. Percebemos o quê? Que há uma arte do acabamento. Nietzsche diz assim: “no ressentimento não se acaba nada”. O ressentido nunca acaba nada, ele não sabe acabar. O que é saber acabar? Saber acabar não é saber finalizar; saber acabar é saber efetuar. Nós temos que fazer uma distinção aqui, entre a finalidade do desejo, que daí seria de um desejo intencional; e a efetuação de um outro tipo de desejo, que daí é o desejo intensivo. O desejo intensivo se efetua; o desejo intencional finaliza, ele encontra o objeto, se preenche, se satisfaz, só que ele está produzindo um buraco nele. Mas o desejo intensivo, não, ele se efetua.

E a efetuação implica uma curvatura. Ela implica um movimento de retorno. A lei do eterno retorno, Nietzsche viu muito bem. Tudo retorna, do ponto de vista da potência. Então há um retorno. Se nós somos seres de potência, à medida em que nós nos atualizamos, nós nos diferenciamos, e o que acontece nessa diferenciação é a produção de uma realidade, que parte dela retorna sobre nós e nos preenche enquanto intensidade. Nós somos preenchidos da intensidade extraída do próprio produto da nossa diferenciação.

Então aqui existe uma questão política fundamental. Antes eu estava dizendo que Foucault dizia que o capitalismo roubou a dimensão política do desejo. Sabotou e sabota o tempo inteiro a dimensão política do desejo. Nós estamos aí à mercê de um Congresso, de um Supremo, de um ditadorzinho. Como disse alguém, “de um Napoleão de hospício”. Nós estamos aí reféns. Por quê? Porque a política foi sabotada. Mas a dimensão política essencial, ela está onde? Ela está no uso do tempo do nosso desejo, no uso do tempo próprio. O que o capitalismo faz de mais nocivo? Quando, de um lado tem esse direito abstrato de acumulação e de outro lado tem o incentivo para a disponibilização máxima das nossas forças e do nosso tempo próprio, para que esse capital invista, compre, enfim, e o nosso desejo se submete, o corte da nossa potência que se atualiza, o ato em que a nossa potência se efetua é um ato dado de fora, é um ato dado pelo interesse do capital, é um ato dado pela replicação, pela reprodução do poder do próprio capital.

Então é como um artista que é patrocinado por alguém, e esse alguém diz assim, “Ok, a sua obra vai até aqui, porque é isso que me interessa”. Para quê? Para fazer da obra dele uma mercadoria. Ora, o artista não pode se vender a esse nível, ou então ele perde o seu ritmo, ele perde a sua melodia, ele perde o seu tempo próprio. Ele perde aquilo que dá o retorno da potência para ele. É isso o que ele perde. Ele perde o ritmo, o ritmo dele é quebrado.

Assim que se quebra o desejo: quebrando o ritmo. Desprezando o nosso tempo próprio. Não existe outra violência. A violência, essencialmente, é a quebra do tempo próprio de cada movimento vivo. Há um tempo próprio da vida. Quando desrespeitamos, esmagamos, oprimimos esse tempo próprio, impedimos que essa vida se torne um laboratório, um campo de experimentação e, portanto, uma força de criar real.

Se há uma potência absoluta que se serve de nós, ela se serve de nós para que criemos a diferença. Nós somos meios de criar diferença. É isso que nós somos, essencialmente.

E quando tomamos esse movimento do nosso próprio ponto de vista, pelo nosso ser de potência, nos igualamos, naquele sentido que Nietzsche dizia, “Se Deus existisse, como eu suportaria não sê-lo?”. Ou seja, você se torna um criador de realidade. Você se torna um criador de realidade, e o seu ato, que atualiza a sua potência, ele faz uma curvatura tal que ao mesmo tempo ele doa para o mundo, ele tangencia o fora, e algo dele retorna para a própria potência em forma de mais potência. Então, ao mesmo tempo em que você se torna um doador, um gerador de valor, um criador de realidade, você também aumenta sua potência de criar, de existir.

Isso é um moto-contínuo, um movimento, um devir ativo autossustentável. Essa é a grande ideia de sustentabilidade. Sustentabilidade é isso. A sustentabilidade é de cada vida. Então, levar novamente as vidas a terem essa superfície, esse meio de sustentabilidade. É isso talvez que Guattari denominava como as três ecologias. A ecologia ambiental não é nem a mais importante. Claro, ele estava inspirado em Bateson, aquele americano fantástico, que tinha investido na ecologia mental.

Há uma ecologia ambiental? Sim, mas mais importante que a ambiental é a ecologia social e mental. Por que é uma ecologia? É um ecos, é um meio propício para a afirmação, para o desenvolvimento da vida, da vida livre, da vida ativa, da vida criadora. Então, as relações de sociabilidade são esse meio? Ou são meios tóxicos as nossas relações de sociabilidade? E a nossa mente? Que tipo de ideias a gente cultiva? Que tipo de maneiras de existir geram ideias em nós? Que cumplicidade nós temos com essa mente que se enche de ideias venenosas, que rebaixam a vida?

Então, a ecologia social, a ecologia mental, são mais importantes que a própria ecologia ambiental. Esses meios propícios são o quê, antes de tudo? São respiradouros. A vida tem que respirar, mas a vida só respira com distância suficiente. Essa distância é a distância do tempo próprio. O tempo próprio é o nosso espírito mais profundo e ao mesmo tempo superficial, porque ele se exprime na superfície. O tempo, na superfície, cria movimento intenso. Ele se atualiza no movimento.

Se tornar um moto-contínuo, então, implica em uma potência de efetuação intrínseca, e não a partir do exterior, porque aí seria uma impotência. Eu estou refém de algo que me determina de fora. Por isso que o capital é tão nocivo, porque ele quer me determinar de fora, ele quer operar o corte, ele quer me obrigar a parar ali, ou ir além do que eu deveria ir.

Existe uma ideia muito interessante de um pintor inglês do século 20, chamado Francis Bacon. Ele diz assim, “Olha, eu sempre volto aos meus quadros. Eles estão lá, no meu ateliê. Volto em um, volto em outro. Mas, às vezes, a coisa passa do ponto. Eu volto tanto, aquilo me atrai de um jeito, mas às vezes tem uma pincelada a mais. E aí eu vou dar outra em cima, para ver se modifico, e a coisa piora.” É uma espécie de overdose. É alguma coisa que ultrapassou aquele acabamento. Tinha que ter acabado um pouco antes. E essa overdose simplesmente faz com que ele destrua a obra.

Então você encontrar o seu ritmo, o seu tempo próprio. O momento de saber acabar, saber finalizar, assim como uma criança encerra uma brincadeira onde ela está ali repetindo por muitas vezes, 240, 827, 1052 vezes, não importa quantas vezes ela esteja ali, e de repente ela interrompe aquele movimento. Por quê? Porque o circuito de retorno da intensidade é quebrado. Não é nem que é quebrado, quando a intensidade já ameaça não retornar, a criança muda. Muda para quê? Para continuar se preenchendo de intensidade. Olha que maneira maravilhosa de produzir cortes. Cortes ativos, afirmativos. O corte vira um meio de continuação da variação intensiva do nosso desejo.

Então, isso tem a ver, tudo isso que eu estou dizendo tem a ver com o que estou chamando de quarta zona de passagem. Retomar a nossa força de agir ou de criar realidade. É a mesma coisa. Agir. A ação aqui nesse sentido, no sentido de criar realidade. Criar realidade não é algo que se faz investindo na dependência, investindo em uma rede de apoios.

Nós precisamos desfocar um pouco as organizações. Eu já falava isso em relação aos movimentos de esquerda. A necessidade prioritária de organizar o movimento. A prioridade não é organizar o movimento. A prioridade é investir nas razões de composição das forças ali coexistentes. Essas razões de composição. É a zona comum. Os movimentos têm que investir no comum, e não em um princípio de organização, não em uma liderança. É o comum, o comum que é distributivo. O comum tem, obviamente, um viés anarquista, porque o comum dispensa centro de poder. E, à medida em que ele dispensa centro de poder, também ele se torna muito menos vulnerável aos poderes que vão querer destruir esse estofo do comum. Então, investir no comum é um viés essencial.

Eu estou trazendo elementos aqui e tenho falado do político em relação ao desejo, ou da micropolítica do desejo, mas isso, na verdade, tem toda implicação clínica. Na clínica, o que a gente faz na clínica? Na clínica a gente tem que fazer tudo isso. Chega alguém na clínica, o que você vai fazer?

Primeira coisa: você precisa encontrar o desejo onde ele está. Onde está aquele desejo. Ele está separado das suas potências? Obviamente, se ele chegou até a clínica, geralmente ele está. E, mesmo ele separado das suas potências, ele está ligado a alguma coisa. Inclusive, ele está tão ligado a alguma coisa que, por isso mesmo, está separado das suas potências. Geralmente ele está ligado a quê? Ele está ligado àquilo que lhe aconteceu. Ah, é um trauma? Pode ser. É um complexo? Pode ser. É uma circunstância tal que ele não aguentou e ele caiu. Sim, são muitas coisas que acontecem que levam alguém à clínica, levam alguém a pedir ajuda. Isso é por fraqueza, por impotência pessoal? Não! Às vezes, a vida, pessoalmente, ela não aguenta. Acontece.

Mas o que ocorre com esses desejos que chegam nas clínicas, geralmente nas clínicas mais… poderia usar aqui o termo “ortodoxas”, mas assim… Na verdade, tem de tudo nas clínicas. Tem muita picaretagem, na verdade. Sobretudo, muita picaretagem, mas mesmo as clínicas que se dizem mais sérias, o que você encontra lá? Você geralmente encontra esquemas de estruturação do desejo em um sujeito. De restabelecimento de uma existência para que ela de novo encontre o seu centro, a sua identidade, e possa voltar a pertencer a um campo social. Uma espécie de resgate, de conserto. Como levar o carro ao mecânico, você leva o desejo ao clínico, para ele consertar o seu desejo.

E aí o que o clínico vai fazer? Ele vai encontrar o desejo onde ele está? Geralmente, o clínico não vai se focar nisso. O que a esquizoanálise… vamos deixar de falar do que os clínicos geralmente não fazem, e vamos falar do que a esquizoanálise faz. A proposta prática, clara, diferenciada, que não dá chance para nenhuma conciliação, o que faz com que a esquizoanálise jamais seja herdeira de uma psicanálise ou de outra coisa qualquer.

A esquizoanálise tem fonte própria, ela não se filia. Não é necessário ela se filiar a algum fundador, a algum fundador de sistema, de religião, de nada. Ela vem desse modo nômade de pensar. E esquizoanálise… bom, Deleuze e Guattari, no Mil Platôs, vão investir… mais no Mil Platôs, eles vão investir nisso, em algo chamado “cartografia”, que é o método que Deleuze e Guattari lançam para encontrar o desejo ali onde ele está. Fazer uma cartografia do desejo não é fazer um mapa onde o desejo está encaixado, enquadrado. Não é interpretar esse desejo e dizer “Ah, isso tem a ver com o Complexo de Édipo”, “Isso tem a ver com a castração”, “Isso tem a ver com o incesto, com o parricídio, com o instinto de morte, com o instinto de prazer, com o princípio de realidade”. Não é ficar dando modelos para esse desejo se reestruturar.

Nenhum modelo vai encontrar o desejo. Ao contrário, o modelo cega, ele nos cega, ele nos impede de encontrar o desejo onde ele está. A cartografia do desejo, então, portanto, implica um encontro. E você só encontra quando você está com olhos desanuviados de mediações, com olhos desanuviados de preconceitos, com olhos desanuviados de estados de corpo, de mente e afetivos. Quando, de fato, o analista não precisa fazer ou se prevenir de uma espécie de contratransferência. Eu desafio sempre, aqui, os analistas a dizerem as razões que os protegem suficientemente da contratransferência, à medida em que eles não encontram o desejo onde ele está no seu estado mais imediato, que necessariamente eles acabam projetando os seus esquemas de interpretação. Eles já estão efetuando uma contratransferência e deformando aquele desejo, e não encontrando aquele desejo onde ele está.

Então, a condição clínica implica… a primeira coisa é isso: encontrar o desejo onde ele está. E onde ele está e no tempo em que ele está. É o seu aqui e o seu agora. É o seu imediatamente aqui e o seu imediatamente agora. Mas o seu imediatamente agora é feito de vários seres de tempo que coexistem, que estão em outros tempos coexistindo com aquele agora. Não é apenas aquele agora do corpo sensível, uma espécie de empirismo vulgar. “Ah, tudo é exatamente aqui.” Onde você está vendo, onde você está ouvindo, onde você está cheirando. O que você está fazendo ou o que você está falando. Esse agora e esse aqui necessariamente envolvem a coexistência dos seres de tempo em nós. E dos nossos estados vividos que seguem em nós.

Então, encontrar o desejo com tudo isso, mas você não encontra de cara. Você vai percebendo que ele está dobrado, que ele está empilhado, que têm muitas camadas para serem desenterradas, e aí você precisa ser, ao modo de Foucault, um arqueólogo dessas camadas subterrâneas que vão se empilhando em nós, das quais eu falei nos encontros anteriores.

Então…

Encontrar o desejo onde ele está. Para quê, exatamente? Para perceber todas as zonas de passagem. O desejo está na primeira queda. E a primeira queda tem vários aspectos. Ela é múltipla, ela é plural. Mas existe um ritmo, um modus operandi ali que cai, que faz com que o ritmo se quebre. E ele está, então, por isso mesmo, investido em uma segunda captura que, por outro lado, está inviabilizando a vida dele, está obstruindo, está fechando o futuro dele e fazendo do passado dele algo mais pesado e difícil de carregar. Geralmente é isso que acontece. E ele acha que não. Aquilo que ele está fazendo, ele acha que é aquilo que está alimentando-o. Geralmente, aquilo que ele acredita que está alimentando-o é o que mais está envenenando e inviabilizando a vida dele.

E que dificuldade em largar o osso. Que dificuldade em largar isso que ele acredita que está dando pelo menos um poderzinho a ele, um sustento a ele. Eu vi que teve questões aqui no chat que diziam assim, “Mas eu preciso antes sobreviver, eu preciso ter um emprego, eu preciso isso, eu preciso ser aquilo, exercer essa ou aquela atividade para depois ser esquizoanalista ou fazer esquizoanálise”. Não. Isso ajuda você ainda mais a ficar separado do que você pode.

Então, encontrar esse desejo. Eu estou aqui, focando agora a questão clínica, não sei se vocês perceberam, porque, ao mesmo tempo em que eu trago essa quarta passagem, que é exatamente a potência de diferenciar que nos liga ao ato de criar valor, porque isso vai ter já uma implicação clínica direta. E o modo como eu percebo a clínica, porque em vez de eu ter uma visão piedosa e complacente em relação ao analisando, eu vou provocá-lo e ao mesmo tempo eu vou me tornar aliado daquela vida, para que ela disponibilize novamente aquelas forças, para que ela aprenda a dizer não, para que ela aprenda a fazer igual Bartleby, sobretudo para que ela aprenda a cultivar a sua espreita, a faculdade de espreita animal que faz parte de todo animal.

Nós precisamos… devir-animal-humano é mais importante ainda do que a nossa racionalidade. Esse devir-animal, essa potência de espreitar, de esticar o movimento, de dilatar o tempo, de perceber, criar uma instância em nós que percebe a potência subindo, emergindo novamente e se apresentando no acontecimento. É assim que não só eu encontro o desejo do analisando onde ele estava, onde ele está agora, como eu vou provocá-lo, vou estimulá-lo, vou instigá-lo, vou intervir para que ele — e aqui entra uma questão muito importante: a psicanálise ortodoxa diz que você não pode intervir, você não pode se envolver, ter um modo de interesse no jeito de fazer a clínica. Mas tem um interesse que é um interesse interessante, que a psicanálise desconhece, ou as psicologias desconhecem, a psiquiatria, enfim. É uma intervenção, sim. É uma provocação. Você encontra no outro as forças subterrâneas que estão lá para serem disponibilizadas. Você ajuda a vê-lo, você se torna um vidente e ensina ele também a se tornar um vidente. Ele tem que se tornar um vidente.

E quando ele vê, isso se torna um acontecimento para ele. E quando se torna um acontecimento, ele vai investir na espreita e vai perceber que o tempo próprio da sua vida, do seu modo de diferenciar a potência é também o tempo que cria valor, que diferencia gerando o real, produzindo o real. E nessa medida, ele tem necessariamente o retorno desse real sobre ele, elevando a sua potência de acontecer.

Então aqui entra um elemento muito importante, que é o principal divisor de águas para distinguirmos bem claramente a ideia de empoderamento e a ideia de potencialização. São coisas inconciliáveis.

Aqui eu posso, inclusive, oferecer alguns casos clínicos, ou ao menos alguns procedimentos que podemos ter em relação a tipos de captura do desejo. Por exemplo, como a depressão. O que ocorre com o depressivo. O que ocorre com o esquizofrênico ou com alguma psicose que seja preenchida não só de delírios, como também de alucinações, à medida em que se ouve vozes, em que realidades fantasmáticas acabam dominando e controlando a vida de alguém que está submetido dessa maneira a esse campo fantasmático.

Enfim, nós podemos… eu acho que nesse tempo que me resta agora, eu posso falar um pouco dos casos, porque não tem jeito, esse tempo que a gente se dispõe, e é bastante tempo, vocês veem, a gente tem praticamente sei lá, quase dez horas de encontros. É um tempo grande, que dá para fazer bastante coisa, mas ao mesmo tempo não dá para fazer obviamente tudo.

Então temos que sinalizar as linhas principais, exatamente para que vocês possam pesquisar e ir a fundo. Bom, e eventualmente, depois tem essa oportunidade de, quem quiser aprofundar, eu vou depois apresentar isso, enfim, para quem quiser.

Mas aqui, o que eu posso fazer agora nesse momento é distinguir. Por exemplo, na clínica chega alguém com depressão. Uma depressão profunda. O que é o desejo de um depressivo? Tem-se uma visão dominante, uma visão dominante de que o depressivo é aquele que não tem desejo. Os sintomas levam a gente a imaginar isso, a pensar isso. Por exemplo, o depressivo não quer sair da cama. Ele vai dormir, mas ele não quer acordar. Ele vai deitar, mas ele não quer levantar. Às vezes ele nem vai mais deitar, porque ele já nem sai mais da cama.

A ideia de que isso passa é a ideia de que o depressivo está sem desejo nenhum. O depressivo sem desejo nenhum. O depressivo então não tem desejo. Ele está naquela posição que Nietzsche chama de “nada de vontade”. Nietzsche diz que quando o espírito se torna camelo, esse espírito começa a carregar, o modo humano de existir começa a carregar valores estabelecidos. Esses valores são valores superiores à vida, ditos superiores à vida, os valores ideais que têm uma carga muito grande, que geram uma carga muito grande para a vida. Você seguir o ideal, a vida fica muito pesada sob o ideal ou sob o modelo. Mas depois esse ideal vai ser visto, pelo humano mesmo, como uma coisa ilusória. Como por exemplo em Hegel. Hegel diz que nós devemos encontrar o universal concreto e ultrapassar a ilusão do universal abstrato. O universal em si é uma ilusão, na verdade o que importa é o universal concreto, ou seja, você tem que fazer dos valores supostamente divinos valores para o humano, valores concretos. Você se desaliena nessa medida. E você teria os valores humanos no lugar dos valores divinos. Isso segue sendo uma posição do camelo. Isso segue sendo uma posição do espírito de suportação. Você carrega. Mas isso vai dar, assim como deu no nada de deus, e aí a nossa posição desejante vai perceber que esse deus era uma ficção e vai investir nos valores humanos, os mesmos valores humanos vão ser percebidos como ilusórios também. E aí a posição de Schopenhauer. Então, de Platão a Kant, de Kant a Schopenhauer, por exemplo, na filosofia. Só para dar um exemplo.

E Schopenhauer vai dizer assim, “Isso tudo é ilusão”. O desejo dos valores divinos, o desejo dos valores humanos. Então é melhor nada desejar, porque o humano deseja sempre de modo a se aprisionar. E esse desejo do humano é sempre cobiçoso, ele sempre quer se apoderar de alguma coisa, ele sempre quer se apropriar de alguma coisa. Ele é cobiçoso e ele acaba se aprisionando desse modo. Então, melhor nada desejar.

Mas o que é isso no depressivo? O depressivo, eu digo sempre, tem muito desejo no depressivo, ao contrário do que se diz, o desejo está ali no depressivo. Está todo ali. Está todo ali capturado. Está todo ali desintensificado. Está todo ali como um fogo que virou cinzas, sem brasa. Aparentemente sem brasa. Mas, na verdade, o depressivo está cheio de brasas. Como é que a gente vai reacender esse fogo a partir dessas brasas? Como a gente vai encontrar as brasas no depressivo? Dando antidepressivo para ele? É o que os psiquiatras fazem imediatamente: dar antidepressivo. Mas o melhor, não existe outro antidepressivo, pleno, real, do que o acontecimento. O que se passou? O que se passou para o desejo cair na depressão? Para que alguém caia na depressão?

Nós vimos a primeira e a segunda captura. A primeira captura é aquela que nos separa do que podemos pelo nosso próprio modo de existir. A segunda captura é aquela que nos empodera. O que é a segunda captura? A segunda captura depende da projeção da primeira captura. E ao mesmo tempo da introjeção do ideal fomentado por um centro de soberania. Por um deus, por um Estado, por um capital, seja lá o que for. Por esse princípio transcendente de organização.

Então o movimento é duplo. À medida em que eu estou separado do que eu posso e desejo de mau jeito, eu vou desejar me empoderar. E o que é isso, na verdade? Qual é o horizonte que se apresenta na mente de quem assim deseja? São as possibilidades. É o campo do possível. Então você busca o possível.

Então você diz, “Você está separado do que pode? Você vai fazer uma tentativa”. “Olha, se eu fizer isso da minha vida, se eu investir naquilo, se eu investir naquele outro, acho que eu vou me dar bem, acho que eu vou conseguir fazer parte, pertencer a essa sociedade, ter uma boa posição, ser reconhecido, me sustentar materialmente, ter, enfim, a minha família, os meus amigos, poder viajar, poder circular, poder existir de modo digno”. Ou até querer muito poder, vamos supor que eu queira muito dinheiro, vamos supor que eu queira muito ser uma autoridade tal, de destaque, ou que eu tenha não só vontade de riqueza, como eu tenha vontade de honra, de reconhecimento. E até vontade de me chafurdar na concupiscência e ter muito prazer, e ter uma vida devassa, de prazeres, enfim.

Eu vou investir em um campo de possível. O que é o desejo do depressivo?   É aquele que já investiu aqui e ali, que investe muito, mas que é bastante exigente também, que investe em ideais. Mas não existe ideal que, honestamente, integralmente preencha esse buraco do modo de desejar intencional. Então o depressivo já está… ele antes investia muito no modo intencional de desejar. E quem está prisioneiro do modo intencional de desejar é quem já está preso da primeira captura. E quem está preso na primeira captura vai buscar uma possibilidade. Ele vai dizer “Aqui é possível que dê certo”. E o que acontece com o possível? A frustração vem. A frustração é inevitável.

Então, o momento de frustração se empilha. Se empilha em mim, se empilha no outro. Aí ele faz outra tentativa. E lá vem frustração de novo. E faz outra. E lá vem frustração de novo. E é uma sucessão de frustrações. Até o ponto de ter uma overdose de frustrações. O depressivo é aquele que sofreu uma overdose de frustrações. E que não quer mais levantar. Que não quer mais empreender. Que não quer mais acontecer. É aquele a quem a vida perdeu o sentido.

Existe um curta-metragem disponível aí no YouTube, muito interessante, de uma cineasta chamada Débora Diniz, e o documentário chamado Solitário Anônimo. Vejam esse documentário, tem 16, 17 minutos. É muito interessante porque é alguém que simplesmente perde a vontade de viver. É alguém que quer morrer, mas não tem vontade nem para se matar. E por quê? Porque todo o seu passado virou uma montanha de lixo. Como ele mesmo diz, “um monturo de lixo”.  E o que é isso senão um empilhamento de frustrações?

Então ele está nessa posição depressiva, ele não quer mais viver, mas ao mesmo tempo não consegue nem morrer.  O depressivo é isso, ele está nesse… às vezes ele consegue se matar. E aí o que faz a clínica tradicional? Vai medicar? Ok, nós não somos contra a medicação, depende, mas a medicação tem que ser algo muito necessário e deve permanecer o mínimo de tempo. Por quê? Porque tem que ter junto, às vezes o caso necessita, mas… porque depende da gravidade, talvez um elemento químico, assim como um alimento, pode ajudar, mas sem o trabalho de um clínico que faz a cartografia do desejo e encontra o desejo lá onde aparentemente não tem mais desejo nenhum, e percebe por que ele foi caindo, foi caindo, se empilhando, se empilhando, se atolando, se atolando até entrar no seu buraco negro. E aí, de novo, você, por velocidade, você vai reencontrar o modo intensivo do desejo que estava encoberto sob o modo intencional.

Claro que a gente precisa desenvolver técnicas e pensamentos para fazer esse… não é o diagnóstico, é de fato a carta, a cartografia. O esquizoanalista não faz diagnóstico, ele faz a cartografia, porque não tem diagnóstico. Por que não tem diagnóstico? Porque toda a vida está em processo. No fundo, toda a vida está em processo. Então como se vai diagnosticar e dizer “Fulano, Ciclano é borderline”. “Fulano, Ciclano é esquizofrênico.” “Fulano, Ciclano é depressivo”. Você vai lá e enquadra, cria uma caixinha, cria uma classificação.

As classificações são para fazer rir. A gente vê o tempo inteiro, estão sempre emitindo novas classificações. Os manuais de psicopatologia são realmente de fazer rir. Eles são para rir, na verdade. Porque eles se baseiam na crença, como se nós fôssemos feitos de traços de caráter. Nós somos feitos de linhas, nós somos feitos de processo, nós estamos em movimento. Então você tem que apreender o desejo no seu movimento. Ele está em “vias de”. Ele pode até cair em um estado, mas não significa que ele se confunda com aquele estado. Ou o clínico vai reforçar aquilo? E dizer “Não, você de fato é isso e você precisa conviver com a sua doença até o final da sua vida, porque isso não tem cura”. Para a esquizoanálise, não existe essa posição.

Então o que ocorre? Há uma maneira de encontrar o desejo do depressivo. Vasculhando, claro, a sua história. É lógico que a esquizoanálise se ocupa do passado também, mas a maneira como a esquizoanálise usa o passado e a memória é completamente diferente. Não é simplesmente para dizer que o que foi revela, é sintoma de uma estrutura do modo humano de desejar. Não existe estrutura primeira. Estrutura é sempre um sintoma, é sempre o efeito de uma repetição de um campo de forças.

Então…

Deleuze tem um texto sobre a obra de Beckett onde ele vai distinguir os personagens de Beckett em um momento onde eles estão simplesmente cansados e em um momento onde eles estão esgotados. Ele vai fazer a distinção entre cansaço e esgotamento.           Nietzsche já dizia, “O camelo acaba no deserto, morrendo de inanição”. Ele acaba cansado de tanto carregar e não tem alimento, porque o alimento principal é o acontecimento. Não tem mais acontecimento, então ele morre de inanição. Não adianta ele querer se empoderar. Mesmo o empoderado que prolonga a vida não está se alimentando realmente. Ele está só compensando a sua inanição. Mas o camelo acaba no deserto, ele morre de sede, morre de fome porque no fundo ele morre da ausência de acontecimento. Ou ao menos aquele acontecimento que gere potência para ele. Então, ele morre de cansaço.

Mas Beckett faz uma coisa muito interessante, muito sutil. Os personagens de Beckett aparentemente são cansados, mas na verdade não são. Os personagens de Beckett são aqueles que esgotam o campo do possível. Então é como se, em vez de eles caírem na frustração e na depressão, eles, a cada frustração, o que eles percebem? Que aquilo simplesmente era um engodo. Que aquele modo leva sempre à mesma coisa. Então eles percebem que todo o possível, na verdade, é uma projeção dos nossos estados afetivos.

O possível, e isso fica muito claro nas falas ordinárias que ouvimos de vez em quando. Dizem assim, você vai e propõe algo muito incrível, que nunca existiu, e aí a pessoa diz assim: “Não, mas isso é impossível”. Mas por que é impossível? “Porque nunca existiu isso. Então nunca poderá existir”.

E aí você vê claramente que as pessoas, quando elas dizem que uma coisa é possível é porque elas dizem que já tem algo que aconteceu nesse sentido. Então é um passado, é um estado vivido que é projetado em um futuro de modo idealizado. Isso que é a possibilidade, o campo de possibilidades. Então, a partir de uma introjeção de estados vividos, você projeta na teia do futuro, na tela do futuro, essa teia de possibilidades que vira, na verdade, um campo prisional, um campo de capturas que tem a ver com o quê? Com o alimento da segunda captura.

O que o poder nos promete? O que ele nos promete? “Ah, você vai ser um médico bem-sucedido, um advogado, um economista, um capitalista, um empresário, um seja lá o quê, um líder tal, de sucesso”. Essa possibilidade, esse campo de possibilidade que é ofertado.

Então, os personagens de Beckett esgotam esse campo. E eles preferem não, também ao modo de Bartleby. Mas eles não vão chegar nessa overdose do Bartleby. Eles ficam nessa espera que não é mais uma esperança. É uma espera que é a porta da espreita. Então aqui existe uma saída realmente fina, necessária, só que sutil, mas é a única saída: esgotar o possível.  Isso é um operador clínico. Um operador clínico fantástico. Você pode fazer isso funcionar na clínica, quando você encontra um depressivo. Esgotar o possível exatamente para quê? Para encontrar a realidade virtual. Eis a saída. E o que é a realidade virtual? É a nossa multiplicidade potencial. Então quando você esgota o possível, você deixa de se ligar a um tempo exterior, a um ideal, a um objetivo que te recompensaria, ou que te empoderaria, ou que te daria autoridade e direito ao gozo. Você deixa de se ligar a isso e você começa a conquistar o seu tempo próprio do desejo no seu modo intensivo.

Então, encontrar o desejo no modo intensivo do depressivo, essa é a saída, a cura para o depressivo. E não entupi-lo de antidepressivo, depois de ansiolítico, depois de estabilizador de humor, depois de calmante. Tem sempre aquele coquetel básico, né? Quando não são dois, são três ou são quatro. Antidepressivo, ansiolítico, estabilizador de humor e calmante. E tem os mais sofisticados, que daí dão vitaminas.

Bom, então… Isso é um exemplo clínico, prático, não exatamente um ou outro caso, mas é o modo singular, o tipo depressivo que é essa tendência que está em um processo de atolamento, como uma espécie de uma queda em um campo de areia movediça. Mas de que maneira ele vai sair dali? Por velocidade. Qual velocidade? A do desejo intensivo. E como se faz isso? Desinvestindo o campo do possível. Ele já estava desinvestido, mas ele agora tem que reencontrar, tem que fazer a outra parte. Ele tem que reencontrar o modo intensivo de desejar.

Então…

Isso tem a ver com o quê? Com essa quarta passagem também. Com a terceira e com a quarta passagem. Tem a ver, na verdade, com as quatro passagens. A primeira captura, a segunda captura, a terceira passagem, que é o reencontro da superfície, e aí o campo de imanência. Aí eu começo a fazer a cartografia real, eu encontro o desejo onde ele está, no seu modo de existir, com o seu topos, o seu território, a sua territorialidade, o seu modo de se territorializar e de se reterritorializar, de substancializar a sua matéria, de se cristalizar. Ele está investido ali. Ele tem uma topologia, que é o aspecto espacial do desejo, mas ele tem também uma temporalidade. Ele tem uma espiritualidade. Ele tem um modo de durar, de usar o tempo.

E isso tudo faz o modo de vida daquele desejo que cria o seu caminho, e o seu lugar de passagem, e o seu modo de se efetuar. Ao mesmo tempo em que ele acontece, ele se preenche, ele está criando caminho. Então essa criação de caminho que é a caneta do cartógrafo. Todo desejo já é um cartógrafo. Na verdade, não é o analista que faz o mapa. É o analista que encontra o desejo do analisando, operando a sua carta. Todo desejo é um agrimensor. Todo desejo é um cartógrafo. O desejo é que cria as fronteiras, as curvaturas, o ritmo ou a quebra do ritmo entre a potência de acontecer e aquilo que acontece a ele, que efetua. Entre esse ser de potência e o acontecimento que a diferencia.

Então aqui está o ponto. É essa sensibilidade que um esquizoanalista precisa ter. E aí você faz o que exatamente? Você está se tornando um aliado. Você não é uma autoridade, você não é alguém que é superior ao analisando. Você não está nessa posição nem vertical, e tampouco horizontal, de neutralidade, de um psicanalista que seria igual a um juiz neutro, essa ficção de um desejo desinteressado. Não. O desejo do analista tem que ser muito interessado. Interessado de modo interessante e não interessado de modo interesseiro. Tem que ser interessado de modo interessante para que as forças desejantes que estão ali no analisando apareçam, se manifestem.

E é com essas forças que o analista se encontra e cria um campo de ressonância. Por isso que a transferência é desnecessária ou é secundária. Nós não precisamos de transferência ou… Existe a transferência? Existe. Existe como um efeito. Mas é na transferência que você vai focar? É no vínculo que você vai focar? Não. Não. Nós não precisamos focar aí. Nada disso.

A transferência, na verdade, é um modo de captura. A transferência e o vínculo são um modo de captura. O desejo precisa encontrar um campo de ressonância do quê? Não das formas ideais, nem das leis, nem das normas, nem das estruturas. Não é esse campo de ressonância. Não é o campo de ressonância do simbólico. É o campo de ressonância da afirmação que envolve cada diferença que se apresenta na existência. É a ressonância da afirmação. É esse atravessamento que faz com que ultrapassemos tanto a transferência como a contratransferência, porque não há afirmação que não seja singularizante. Então jamais você vai transferir o seu modelo de verdade para o analisando. Assim como o analisando jamais vai encontrar no seu modo de vida um modelo de verdade que seria adequado para ele.

Então, é um desperdício a transferência. E é um desserviço para a clínica e para essa micropolítica do desejo. Encontrar, portanto, esse meio, encontrar e investir nesse meio, na produção de um meio propício, assim como uma espécie de ecologia social que acontece junto com uma ecologia mental. Fomentar esse meio propício onde haja simbiose, onde haja razão de composição, onde haja crescimento transversal, e não vertical e nem horizontal, mas transversal, ou seja, relações de potências imediatamente sem precisar de mediação ou de legitimadores dessa relação. Assim como a relação entre a abelha e a orquídea, que pertencem a dois reinos radicalmente distintos, um reino animal e outro vegetal. No entanto, há um devir-orquídea da abelha, assim como um devir-abelha da orquídea. E o que acontece à orquídea não se confunde, não tem nada a ver com o que acontece com a abelha, e vice-versa. E, no entanto, há uma afirmação que é comum, mas se desdobra singularmente para cada força que está ali em devir.

Então não tem uma forma comum. O comum não é uma forma. Não é uma comunicação. Não é uma forma de verdade, não é uma estrutura, não é uma adequação a essa forma. Jamais é uma uniformidade. E não adianta simplesmente multiplicar as formas para dizer que há pluralidade ou que há multiplicidade. Isso é um engodo também. Não se trata de forma na multiplicidade, se trata de elementos que são tendências, que são linhas de devir, e não formas. Então as linhas de devir têm o seu horizonte afirmativo. E esses horizontes afirmativos investem no comum.

Então aqui eu reencontro a política, aqui eu reencontro o campo social. A clínica é imediatamente política, a clínica é imediatamente social, a clínica é imediatamente cultural. A clínica não é papai-e-mamãe, a clínica não é o familialismo. Sabe? A psicanálise tem que deixar de ser vexatória. E as psicologias, o tempo inteiro se chafurdando no papai-e-mamãe. Existe uma realidade do pai, da mãe e do Édipo, sim, existe a realidade que tem. Mas não aquela que se projeta. Não essa supervalorização. Porque tudo é campo político, um pai é um campo político, uma mãe é um campo político, um filho é um campo político, uma família é um campo político.

Então, bom, gente…  Aqui nós chegamos… Eu acho, eu poderia falar, eventualmente, de algum caso de esquizofrenia ou de algum caso de psicose que envolva delírio e alucinação, sem…

Eu vou falar de modo mais abreviado, porque eu estou me estendendo um pouco no tempo, já, olha, eu estou falando aqui direto, duas horas e quatorze minutos, já, então eu vou falar um pouco esquematicamente desse ponto de vista. O que é, por exemplo, aquilo que se chama de delírio e aquilo que se chama de alucinação em um ser que está tomado por alguma psicose.

O delírio, e também a alucinação, não estariam ali, não estariam acontecendo se por baixo não tivesse um campo potencial, uma zona de intensidade. Não tem delírio que não seja efeito de uma zona de intensidade, assim como não tem alucinação que não seja efeito de uma presença de uma realidade virtual.

Então não adianta você dizer que a pessoa simplesmente ouve vozes ou vê fantasmas. São fantasmas, mas esses fantasmas são efeitos de um campo de intensidades. Aquele campo de intensidade é totalmente real e ele atravessa o indivíduo, atravessa a família, atravessa um grupo. Aquilo não é do indivíduo, não é de um Eu, não é de uma pessoa. Isso é outro erro grosseiro que as psicoterapias fazem geralmente, e as suas teorias. É individualizar, é pessoalizar ou familiarizar. Esse familialismo do desejo, essa personologia do desejo, e mesmo a estruturação do desejo, seja a personologia, seja a estrutura, acabam sempre levando para a pessoa, ou para a estrutura familiar, ou para a estrutura de um complexo. Por trás disso tudo tem uma multiplicidade, tem intensidades.

Então aqui existe um caminho a ser pesquisado. Encontrar essas realidades  virtuais ou esse campo potencial que não é o campo do possível. O potencial, eu já falei algumas vezes aqui, vocês já viram isso nos nossos encontros anteriores, ele não é uma possibilidade. O potencial envolve um ato real.

Então o que ocorre? Ouvir vozes, eu digo sempre — claro, tem que ter prudência ao dizer isso, mas são privilegiados aqueles que ouvem vozes. Bem mais do que os normais, normatizados, porque a normose é uma doença muito mais grave do que um desequilíbrio, um desarranjo mais intenso do nosso modo de existir, porque você está mais atolado, mais normatizado, mais morto em vida, mais morto-vivo. Agora, se você começa a ouvir vozes, o que está te acontecendo, efetivamente? Tem uma multiplicidade que está se apresentando na superfície. Em qual superfície? Naquela superfície que está tomada e estriada pelo campo social, que impede que essas multiplicidades emerjam. Por quê? Porque elas são disruptivas, elas acabam desestruturando, desarranjando o campo social e o modo de funcionamento dessa máquina.

Então não são bem-vindas essas intensidades. As intensidades devem ser limadas, devem ser niveladas, deve-se cortar a cabeça das intensidades, e é para isso que existe o Eu. É para isso que existe o preposto de poder em nós. Se esse preposto não vai bem e começa a ouvir vozes, o que você vai fazer com isso? Vai dizer assim, “Calma, vamos dar vários remédios, várias camisas de força e anestésicos químicos para que você não ouça essas vozes”? Ora, e se essas vozes fossem, na verdade, uma ocasião rica para você experimentar de outra maneira a realidade? Claro que você precisa ver o que você faz com essas vozes. Essas vozes vão começar a te pressionar. Você vai sofrer com elas. Elas te põem em risco e põem outras pessoas em risco. Sim, isso acontece direto e nós temos que ter muita prudência com isso.

Mas, ao mesmo tempo, não podemos esmagar uma realidade que simplesmente o analisando não está dominando ou não suporta. Ao contrário, temos que aprender ou ensiná-lo a produzir distâncias. E essas distâncias são, na verdade, modos de usar. Tem que dosar isso de uma maneira tal que você possa criar uma linha contínua de variação e de potencialização que rompe com as formas e com as cascas, de maneira a quê? De maneira a você extrair energia dali. Extrair energia dali e não precisar mais ficar preso a esses sistemas de classificação e de enquadramento. E acessar as suas multiplicidades. Acessar as multiplicidades e acessar esse campo potencial.

Nós somos feitos de uma linha, mas ao mesmo tempo essa linha é plural, são muitas linhas que fazem essa linha. Nós somos uma linha à medida em que somos uma linha afirmativa. Uma potência em ato cujo ato essencialmente é uma afirmação. Aí nós somos uma linha. Mas uma afirmação se desdobra em uma pluralidade de afirmações. É uma pluralidade de afirmações que coexistem em nós. Então são também as múltiplas vozes.

Atrás de uma voz tem uma pluralidade de vozes. Atrás de uma paixão tem muitas paixões. Atrás de um afeto tem uma pluralidade de afetos. Então nós realmente devemos encontrar a multiplicidade em nós e fazer dela, sim, algo substantivo. O que é substancial em nós é a nossa multiplicidade, e não o Eu, não a consciência.

Bom, gente, eu acho que nós chegamos em um momento que eu preciso encerrar, e eu vou ver se eu encontro algumas questões aqui para começarmos a ensaiar o nosso momento de respostas ou de interlocução mais direta com vocês.

Eu precisei fazer isso, não me atentar muito para o chat, por quê? Porque — eu já expliquei por duas vezes, essa é a terceira que eu falo disso, se não me engano —, para otimizar melhor esse tempo e para que eu pudesse passar o máximo dessa experiência de pensamento e de vida que eu venho tendo, experimentando, cultivando e de fato é muito bom poder compartilhar, porque, de alguma maneira, isso é um investimento libertário. É um investimento libertário e que opera realmente uma produção de realidade e de modo que a nossa vida necessariamente se potencialize. Nós retomamos, nós reencontramos o elemento da potência.

Eu disse que ia explicar um pouquinho melhor, agora que eu me lembro, e talvez eu não tenha desenvolvido muito isso, mas aí eu posso desenvolver no nosso próximo encontro, de domingo, a questão, a diferença entre o empoderamento e a potencialização. Mas eu dei a dica e eu só vou alinhavar um pouquinho esse aspecto aqui.

Qual que era a dica? A dica é que no empoderamento, dependemos de um reconhecimento social. Dependemos de uma ressonância em buracos, e não de uma ressonância de afirmações. Dependemos da ressonância dos nossos estados afetivos. E então investimos também no esburacamento dos outros desejos que vão dar sustentação ao nosso modo de existir. De alguma maneira, o empoderamento é cúmplice da proliferação das paixões tristes.

A potencialização, não. A potencialização encontra de fato o tempo próprio do seu modo de existir. Ela encontra de fato o seu ritmo. Ela encontra o meio de se efetuar. Ela encontra aquele momento onde a efetuação não é uma finalização ou uma causa final, como nós vimos com Espinosa e com Nietzsche. A ilusão das causas finais. A efetuação é aquela curvatura onde, à medida em que criamos uma diferença na diferenciação da própria potência, o resultado dessa diferenciação retorna em forma de intensidade e produz mais potência em nós.

Então, esse momento do saber acabar é que retroalimenta e dá o quê, exatamente? Produz o que exatamente em mim? Aqui não é exatamente um direito ao gozo, é aquela satisfação íntima. Espinosa chamava isso de “contentamento íntimo”. E de alguma maneira ele investia em uma espécie de glória que não é a vanglória, que não é aquele orgulho besta do vaidoso, aquele que precisa do espelho e que precisa do reconhecimento. É aquele elemento que de fato faz com que cada um de nós brilhe, encontrando o modo próprio de se alimentar. O acontecimento é o combustível da estrela que brilha em nós.

Saber acontecer, criar uma maneira de viver onde o acontecimento se torna a própria afirmação da nossa potência de diferenciar. É isso que seria a singularidade e a singularização do nosso desejo. Aquilo que nos torna únicos, que faz com que sejamos o que somos enquanto potência de criar real, sem depender de nada, exceto que você é capaz de criar modos de encontrar razões de composição onde necessariamente o que se efetua e modifica em nós vira um alimento para a potência crescer.

E então, aqui é isso o que chamamos de ação. A ação real de fato produz um contentamento íntimo, para falar ao modo de Espinosa. E esse contentamento íntimo faz com que tenhamos uma alegria de si. Uma alegria de si que não tem nada a ver com vaidade, nada a ver com narcisismo, nada a ver com vontade de reconhecimento, nada a ver com empoderamento. É uma alegria de se sentir potente, de acontecer se potencializando. É uma celebração. E nós precisamos investir nisso.

Mas é claro que, à medida em que vivemos em sociedades miseráveis, o que menos compartilhamos é alegria, porque a alegria causa inveja. Como diz Nietzsche, “Que estranho que é o ser humano. Que estranha essa humanidade. Ela só se contagia com a tristeza, com a constristeza, com a compaixão”. A compaixão é uma contristeza. E raramente nos contagiamos com a alegria. Cadê a “conalegria”? Só tem contristeza.

Por que nos incomodamos com a alegria e chamamos a alegria de um elemento narcísico, um elemento de orgulho, um elemento de vaidade, um elemento de empoderamento? Tem que distinguir radicalmente. Eu acho que era isso o que estava faltando dizer aqui. Tem que distinguir radicalmente a alegria da potencialização da alegria daquele que se empodera. Aquele que se empodera, sim, busca a vaidade, ele é vaidoso. Como diz Nietzsche, “Não sou suficientemente humilde para ser vaidoso”.

E no fundo a vaidade é uma humildade, o narcisismo é uma humildade, porque depende do reconhecimento do outro, depende do olhar do outro. Nós temos temo que atingir um nível onde nós não dependemos mais. É muito bom ter ressonância. É muito alegrador, nós nos alegramos com o quê? Com a ressonância das afirmações. Com a produção de comum. Ampliar o comum, é isso o que falta para a humanidade se tornar novamente generosa, criadora e se alegrar com a alegria dos outros, com a diferenciação da vida, em vez de sentir inveja. Então, esse ponto é fundamental.

Nós somos criadores de valor. E se nós somos criadores de valor, nós não precisamos correr atrás do dinheiro, nós não precisamos correr atrás de um cargo, de um poder, de uma instância de reconhecimento, de uma boquinha. Nós podemos criar o movimento próprio. Cada um tem um ponto de vista suficiente para gerar uma diferença que pode ser apreciada socialmente e dar sustento material, dar velocidade, dar acesso para que a vida aconteça. Porque tudo o que uma vida quer é acontecer. O acesso apenas para que o acontecimento não seja impedido.

Tudo o que leva a vida a entrar em devir, em acontecimento, vale a pena. Tem que ser instrumento, meio para que a vida entre em acontecimento. E entrar em acontecimento implica também em encontrar o comum. E encontrar o comum faz com que a nossa potência se diferencie singularmente. Então entre a singularidade e a comunidade não haveria mais oposição. Você não vai crescer em detrimento do outro.

Toda potencialização é potencialização e gera mais potência. O empoderamento, não. O empoderamento gera empoderamento em detrimento de outras coisas. Acho que isso aqui é uma distinção muito importante. Sempre que você se empodera em detrimento de outras coisas, aliás, você cresce em detrimento de outras coisas, isso é empoderamento, isso é nocivo. Devemos combater. Não se combate o poder. Antes de tudo se combate a impotência. E se combate também a impotência daquele que quer vencer o poder. Então, você combater a impotência é reencontrar as próprias forças para criar um modo autônomo, um devir ativo, autossustentável, como eu digo sempre.

Então, bom, isso era aquilo o que eu queria dizer, antes de eventualmente dar uma olhada no chat. E, de novo, dizer a vocês que então, no nosso próximo encontro, de domingo, dia 18 de julho às 19 horas, eu vou fazer uma seleção, cuidar das questões todas, ver se ligamos uma questão com outra para que eu possa responder melhor ao conjunto de questões, porque tem muitas questões, que eu não daria conta nem em uma aula só para responder. Então vamos unir, reunir essas questões, eu vou pedir ajuda para a equipe sistematizar essas questões, e aí poder, enfim, atender, porque eu acho extremamente importante, não é de modo algum desprezo ao que vocês escreveram aqui no chat, é de fato uma maneira de otimizar o nosso tempo e, enfim, por isso então eu estou me dispondo a fazer esse quinto encontro, no dia 18, às 19 horas.

Então hoje eu só vou ensaiar aqui, ler algumas questões, por mais uns dez ou quinze minutos, e aí encerramos. Tá bom?

Até onde eu acesso aqui… porque, nesta altura, o chat está dando aqui 20:57, já é bem depois do início do início do nosso encontro de hoje, que começou às 19 h. Então aqui, lá… às 20:57, por exemplo, onde eu acesso aqui: “Esse olhar sobre o depressivo é realmente muito bom”.

Bom, legal, isso aqui é a Iza falando.

Vamos ver aqui, eu vou começar a colocar aqui na tela.

Ariadne Moraes diz: “Quando o indivíduo desterritorializa, é uma linha de fuga para a loucura quando ele não consegue reterritorializar?”

Olha, Ariadne… é interessante que ele se desterritorialize e que ele disponibilize as suas forças de uma maneira tal para que ele possa criar territórios existenciais, e não se reterritorializar. A reterritorialização é um conformismo. Agora, ele se reterritorializar criando novos territórios existenciais, isso sim é algo interessante.

Então, não necessariamente a loucura é quando ele não consegue se reterritorializar, porque ele pode não se reterritorializar e estar plenamente lúcido e inteiro porque ele se torna capaz de criar territórios existenciais. Entendeu?

Eu vou responder assim de modo um pouco mais breve, para podermos ver várias questões aqui, tá?

Vamos ver aqui.

Marli Fernandes diz: “Eu penso que Deleuze e Guattari buscaram o conceito de tempo Aion nos estoicos. Um tempo Aion seria o tempo intensivo e não o tempo Cronos (passado, presente e futuro).”

Sim, aqui precisaria explanar isso melhor, mas o Aion, exatamente, vem da pesquisa que Deleuze faz junto aos estoicos em uma obra chamada Lógica do sentido, de 1979, portanto três anos antes do Anti-Édipo, que é a primeira obra que inaugura a esquizoanálise. E os estoicos gregos vão fazer a distinção entre dois tempos: o tempo dos corpos, que é Cronos, e o tempo dos acontecimentos, que é o Aion. O tempo dos acontecimentos, ou Aion, é o passado e futuro que envolvem necessariamente os corpos.

O passado e o futuro não existem, mas são reais. São os estoicos os primeiros pensadores ocidentais a verem a diferença entre a realidade e a existência. Não necessariamente o que não existe deixa de ser real. Existem realidades que não existem, mas nem por isso elas não são reais. Por exemplo, o passado e o futuro são reais, mas eles não existem, porque só o que existe no tempo é o presente. E o presente nos corpos é visto, é lido de outra maneira, o tempo lido junto com os corpos é o tempo de Cronos. Esse tempo existe. O passado e o futuro não existem.

Então existe uma realidade, há uma realidade existente no tempo, então Cronos existe, Aion não existe, mas ambos são reais. Cronos é real e Aion é real. Entende?

Mas enfim, isso aqui é uma discussão um pouquinho mais… que exigiria um desenvolvimento maior. Eu peço perdão, Marli, porque realmente…, mas se você quiser estar no nosso quinto encontro e fazer essas colocações, aí eu desenvolvo com mais tempo. Tá bom?

A Celia Oliveira diz: “Numa cidade do Sul, a população começou a se suicidar por causa dos agrotóxicos contaminando a água”.

É, aí não tem exatamente uma questão, é uma colocação.

Isa: “Essa explicação sobre o depressivo é simplesmente fantástica, muito obrigada”.

Caio: “Como escapar de realidades fantasmáticas que eu crio constantemente?”

É o seguinte, Caio: você só escapa de realidades fantasmáticas à medida em que você começa a ultrapassar os seus estados afetivos, mentais e corporais. Porque o fantasma vem simplesmente da cristalização do tempo e do movimento. Ele é uma espécie de projeção… ele é uma espécie de projeção de um efeito da interrupção de um processo. O fantasma é o efeito da interrupção de um processo. Ele é uma espécie de oco do real, porque ele não tem corpo. No entanto, ele se apoia onde? Nos estados de corpo, nos estados de mente e nos estados afetivos.

Kira diz: “Luiz, sabe que hoje eu estava pensando, após falar com algumas pessoas, que esse empilhamento de frustrações está em muitos brasileiros?”

Ah, não tem dúvida. Sem dúvida está. Está em todos nós, de alguma maneira.

Aqui tem muita gente concordando e achando bacana o que eu falo, enfim, então eu não vou ler essas coisas.

Bom, aqui de novo Kira dizendo: “São muitas as pessoas que já não têm mais sonhos, se frustraram no decorrer dos anos ao perceberem que não conseguem realizar projetos diante do caos político nacional”.

Sem dúvida, sem dúvida.

Olha uma questão interessante. Gilberto Thimoteo diz: “O que foi pode voltar a ser?”

Isso é uma questão central, Gilberto. Todo mundo deveria ler aquele texto que está no Zaratustra, chamado “Da redenção”. Eu acho que todo o segredo do mau-olhado sobre o tempo e sobre o devir, que nós, humanos que nos tornamos reativos temos em relação ao tempo e ao movimento e ao devir, se dá por uma espécie de contrassenso inoculado no coração do desejo. Que desejamos, e quando a coisa acaba mal, queremos desligar o nosso desejo daquilo que desejamos. E dizemos “Não, mas eu não desejei que acabasse assim”. Claro, mas tinha algo ali, que queria em você, que não era exatamente o resultado daquele processo, mas era algo naquilo que poderia ou deveria ter acontecido.

Então, leiam esse texto “Da redenção”, do Zaratustra do Nietzsche. Mas, na verdade, todo o passado sempre está por vir. Há uma potência de repetição do passado. Isso é essencial. Mas o que pode estar por vir é algo do acontecimento, é uma potência de acontecer, não é, necessariamente, e sobretudo não é isso, é aquilo que aconteceu da mesma maneira. Não é isso. Nunca acontecerá da mesma maneira de novo.

Aqui Kira Sehn da Costa, de novo, dizendo: “Somos todos desejos constantes, mas cada vez mais percebo que os desejos devem ser afogados, porque não há como materializá-los diante da realidade da maioria”.

Então, aí que tá, Kira, nós precisamos criar as condições para a efetuação dos nossos… das nossas zonas potenciais, das nossas multiplicidades, das linhas de potencialização que atravessam o nosso ser. Precisamos inventar essas condições. Então, à medida em que inventamos essas condições, criamos a condição da expressão do desejo e das forças ativas que estavam submetidas em nós, mas, mais que isso, não é uma mera expressão. Na expressão produzimos realidade, e na produção de realidade aquilo retorna sobre nós em forma de mais potência.

Bom, gente, eu vou ver aqui…

Eu acho que hoje a gente pode encerrar já, por aqui. Eu espero que vocês tenham aproveitado bastante esse pensamento e esse campo de experimentação que eu trouxe nesses quatros encontros.

Eu queria… porque…  eu pensei em quatro encontros, porque eu queria passar a vocês o circuito completo, tanto da desconstrução de nós mesmos, desse aspecto crítico, quanto da criação da condição de criação de si mesmo e de novas maneiras de existir. Há, na verdade, essas quatros passagens, elas nos atravessam o tempo todo, queiramos ou não, percebamos isso ou não. Elas estão sempre aí. E na clínica nós podemos encontrar isso o tempo inteiro, assim como na nossa própria vida.

O que é a clínica? A clínica é um meio privilegiado para cuidar das nossas forças fragilizadas que, na verdade, são forças da vida, e de uma vida que necessariamente vive em sociedade. Então a clínica, na verdade, não é algo separado da sociedade, da política, da cultura, da economia, e não é separado, sobretudo, da vida.

Então, esse modo de expor aqui isso que eu chamei de método para atingir o imediato o mais rapidamente possível, ele atravessa todo o campo social, e é por isso que o pensamento, a vida, eles coincidem inteiramente com várias zonas de realização do nosso desejo. Desde as mais íntimas até as mais cósmicas, atravessando pelo campo social.

E então é isso, eu queria passar essa visão de que a esquizoanálise não é esse bicho-papão. A esquizoanálise não é uma coisa difícil de se praticar, exceto que… é difícil? Claro. Ela tem a sua dificuldade? Tem muita complexidade? Tem. Mas e a gente quer o quê? A gente quer simplificar as coisas, se as coisas são complexas? Existir é isso. Existir é resolver problemas. Existir não é simplesmente se ver livre de problemas. Os problemas são um modo pelo qual a existência ou a natureza nos torna criadores de realidade. A problematização é um presente para a vida, não é um obstáculo.

Então nós precisamos, inclusive algo que eu vou falar no momento das questões do nosso próximo encontro, nós precisamos aprender a colocar as questões, a colocar os problemas. Porque a arte de colocar os problemas é, ao mesmo tempo, a arte de fazer do nosso modo de viver um modo livre, um modo libertário. A gente só é livre quando a gente é capaz de colocar-se na vida, criando os próprios problemas através das forças que nos constituem e que nos atravessam. Aí a gente é livre. E aí nós vamos ter a solução que merecemos, segundo o modo como colocamos o próprio problema da existência que envolve a nossa.

Então é isso. Eu queria então agradecer a todos, a atenção de todos, eu vi que muita gente ficou aqui até o final. Nós já estamos bem adiantados da hora, temos mais de duas… temos duas horas e quarenta e cinco minutos de transmissão. Realmente é uma façanha vocês ficaram aqui tanto tempo. É algo que me alegra muito, porque hoje em dia, nessa vida, nesse tempo, nesse mundo de pensamento rápido, de coisas rápidas, ninguém tem tempo para nada, se dispor a isso de fato é algo que surpreende e ao mesmo tempo que nos faz muito alegres. Não é um otimismo qualquer. É realmente o campo afirmativo que ressoa essencialmente e realmente em nós. E de fato é uma grande alegria ter esse tipo de experiência e de oportunidade.

Eu fico muito grato a vocês que me acompanharam até aqui, e espero revê-los, revê-las no dia 18, no próximo domingo, às 19 horas, para a gente então contemplar finalmente as questões, os questionamentos que vocês fizeram aqui, e aí, enfim, para quem quiser uma oportunidade de aprofundamento, por dois anos, um curso de formação de esquizoanálise, que… onde eu vou explanar então todo o programa de formação.

Tá bom?

Então é isso, gente. Muitíssimo obrigado a todos, a todas. Beijos e abraços, e até domingo que vem, às 19horas.

 

Transcrição por Gabriel Naldi