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Utopias e Produção do Comum (transcrição)

24/04/2022

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[Guilherme Carboni]: Oi, pessoal! Eu sou Guilherme Carboni, diretor do IESD, e hoje a gente tem um convidado muito especial no nosso podcast. Eu tenho aqui comigo a Bel Cortellini, que também é diretora do IESD; a Márcia Regina Ferreira e o Artur Matuck, que são coordenadores de linha de pesquisa; e a gente tem a honra e a alegria de receber Luiz Fuganti, que é filósofo, livre pensador da filosofia da diferença. Ele é autor do livro Saúde, Desejo e Pensamento, que é considerado uma referência entre as melhores e mais acessíveis introduções ao pensamento nômade e também à filosofia da diferença.
E hoje o Fuganti fará uma fala-acontecimento sobre utopias, vida ativa e produção do comum. Aqui, para o instituto, essas questões da utopia e do comum são muito importantes. Procuramos adotar uma postura não idealizadora, apesar de, no caso do comum, trabalharmos com a institucionalização, inclusive por meio da lei, enquanto algo que não pertence nem à esfera pública, nem à privada. No caso das utopias, alguns de nós temos uma postura de encará-la não de uma forma transcendente, mas em um plano de imanência enquanto potencialidades ou virtualidades que não se encontram em um mundo idealizado.
Eu vou passar aqui a palavra para o Fuganti. De novo, Luiz, uma honra, um superprazer, uma alegria tê-lo aqui conosco. A palavra é sua.
[Luiz Fuganti]: Boa noite! Boa noite a todos os ouvintes e ao Guilherme. Eu queria agradecer esse convite que me honra, à Bel, à Márcia, ao Artur, que estão aqui conosco. Espero termos uma conversa fértil, bem proveitosa, sobre sistemas que são tão importantes, tão relevantes, tão necessários e urgentes à atual condição das formações sociais humanas, sobretudo o tema do comum, que envolve necessariamente uma potência singularizante, e que desemboca necessariamente, na medida em que isso é contemplado, em um modo de vida ativo que cria as próprias condições de existência, que cria os tempos próprios da existência, sem se adequar a tempos homogêneos e, sobretudo, os próprios lugares, os próprios topos que fazem com que repensemos a ideia de utopia — porque a utopia envolve um conceito negativo de não-lugar a partir da idealização das condições de existência, que sempre, invariavelmente, por mais que sonhemos bonito, acaba mal. E acaba mal porque justamente começamos mal. E como começamos mal? Sempre que idealizamos, é um mau começo.
O ideal em si mesmo não é problema. O ideal é uma ficção. Podemos brincar com ideais, podemos brincar com as ficções. O mais grave não é exatamente o ideal, é o que fazemos dele, mas, principalmente, a vontade de ideal, o desejo de ideal. E, claro, nós poderíamos dizer assim, junto com Nietzsche, “não refutamos os ideais, apenas calçamos luvas contra eles”. Nietzsche gostava de dizer que era um derrubador de ídolos, principalmente aqueles que tinham pés de barro. Gostava de usar o seu martelo filosófico. Mas a questão da utopia envolve, aqui, o desenvolvimento de um pensamento com linhas que nos levam a uma outra visão do que poderia ser uma utopia ativa. Uma utopia ativa que não estaria condicionada a uma esperança, à vontade de um mundo melhor, a uma paixão triste, como diria Spinoza. A esperança, segundo Spinoza, assim como o medo… tem o mesmo estatuto do medo, a esperança. A esperança envolve uma dúvida, uma incerteza sobre o futuro. O medo envolve a dúvida em relação ao mal que pode advir, e a esperança envolve a dúvida em relação ao bem que pode advir. E onde há dúvida, não há pensamento; e onde não há pensamento, há, necessariamente, vulnerabilidade ou submissão às forças que nos determinam de fora. Portanto, nós estamos sujeitos a flutuações que nos fazem nos mover para todas as direções, perdendo a direção principal que é a da tomada da vida nas próprias mãos. A direção de uma afirmação singularizante da nossa existência, ao mesmo tempo em que investimos em uma produção do comum.
Eu acho que precisaríamos começar distinguindo o que é o comum, ao nosso ver. Eu não vejo, no pensamento dominante, e mesmo em pensamentos paralelos, um desdobramento suficiente do que seria o comum — e também do que seria o singular. E, a meu ver, se não chegarmos nesses dois planos de pensamento, nesse duplo plano de pensamento, nós não fazemos grandes coisas, exceto repetir o passado. Então, só para dar um exemplo, nós estamos sempre envoltos na dicotomia público e privado (sobretudo quando confundimos o comum com a esfera pública), e o singular com a esfera privada.
O público é, na verdade, a captura do comum. Melhor dizendo ainda, é o sequestro do comum. Nós vemos muitos pensadores, teóricos, militantes de esquerda fazerem essa confusão e adotarem políticas públicas, estatais, como se elas fossem isentas dos interesses privados e, portanto, portadoras de um bem comum. Na verdade, o privado é uma invenção do público. O privado é filho do público. Não haveria privado sem o estado. O estado é o inventor do público. E o estado é sempre um estado de não-relação. O estado emerge quando certas forças deixam de se interessar por relações transversais, diretas, de sociabilidade, e forma-se um centro de soberania. É esse centro de soberania que sequestra o que é comum.
Mas eu diria… eu vou precisar ser um pouco sintético, então vocês me perdoem se eu for muito rápido. Eu vou dizer antes o que o comum não é. O comum não é o ideal. O que seria o ideal? Seria uma suposta realidade em um plano fora da natureza, um plano fora da existência. Se é ideal, não é existencial. O existencial se contrapõe ao ideal. O existencial sofreria, em relação ao ideal, de uma falta de perfeição. Então o existencial é sempre o que seria imperfeito em relação ao ideal, o ideal é aquele que envolve uma perfeição. E essa perfeição está sempre ausente em um plano de natureza. Desde Sócrates, Platão e Aristóteles, isso é notório. E depois os outros pensadores, metafísicos, sejam religiosos, místicos, filósofos, teólogos, moralistas, sempre adotaram essa linha.
Além disso, o ideal tem uma iminência. O ideal é transcendente e superior à existência. Por isso, ele seria uma falsa afirmação, ele seria a afirmação de uma realidade de um outro plano, mas, por efeito, ele desqualificaria este plano de existência como inferior. Então ele seria bom, ele seria o bem, como está em Platão, o bem, o verdadeiro e o belo, porque ele estaria acima das particularidades existenciais das paixões e de tudo o que está no devir, no tempo, no movimento. Estaria acima da mudança, seria imutável, seria aquilo que jamais deixaria de ser, e por isso perfeito. O que mudaria seria o que estivesse no devir, por isso o devir seria um princípio de corrupção do ser, seria um princípio de corrupção do que já está acabado e perfeito. Então o ideal pressupõe uma realidade acabada, e tudo o que está na mudança seria inferior a esse ser permanente.
Esse ideal teria então como valor o fato de ele estar acima de todo o interesse particular. Por isso se confunde o ideal com o comum, o que seria comum a todos nós. Mas nós, na verdade, não somos filhos do ideal. O ideal é uma ficção. Eu posso depois fazer, se tiver um tempo, uma espécie de genealogia breve de onde vem esse ideal, que no fundo é uma parcialização. O ideal se pretende superior e transcendente, mas, na verdade, ele é bem imanente. Nós o encontramos no plano de imanência, ou seja, tudo pertence ao mesmo plano de realidade, inclusive o ideal, mas o ideal é uma visão míope da existência. Uma visão necessariamente de uma vida separada do que pode, de uma vida tornada impotente que visa então uma compensação, uma salvação, uma fuga do seu estado de impotência, interpretando as dores e o sofrimento como signos de imperfeição, e essa realidade imperfeita é aquela da qual devemos fugir, fugir para o ideal. E fugiríamos para o ideal sempre que investíssemos nele, buscando aperfeiçoar o mundo, melhorar o mundo, buscando um mundo melhor.
Todo aquele que busca um mundo melhor é necessariamente um moralista. Moralista porque acredita que há um dever-ser na existência mais do que uma potência de acontecer. E esse dever-ser se engajaria nesse ideal de verdade, nesse ideal de bem, nesse ideal de belo, e formataria uma condição humana no corpo, no pensamento e no desejo, formando, como falaria Platão, uma espécie de imagem ícone a partir da apreensão da pura forma ideal, da identidade ideal. Nós desenvolveríamos uma semelhança a esse ideal. Então é uma relação de identidade e semelhança. Mas enfim, aqui já ficaríamos muito teóricos, talvez, eu vou voltar para as questões práticas.
Eu dizia, no início, que o comum não é o ideal. O comum também não é… Bom, ele não é o ideal e poderíamos dizer que não é o ideal porque o ideal envolve uma separação da vida do que ela pode, envolve uma vontade de ideal. E todo aquele que tem vontade de ideal, necessariamente tem uma queda de potência. Ele está com a vida separada do que pode. A vida não está em acontecimento enquanto o acontecimento acontece. A vida necessariamente está colada a algo que aconteceu a si. Algo que aconteceu a ela e a reduziu a um estado afetivo tal que esse estado afetivo quer tomar o lugar de toda a integralidade, de toda a integridade de uma potência de acontecer. Então essa potência de acontecer está reduzida a um acontecido. Esse acontecido é um buraco, e esse buraco é que vai desejar o ideal, que vai desejar uma compensação. Então essa seria uma gênese breve dessa vontade de ideal.
Por exemplo, Sócrates obviamente está em uma posição de impotência, em uma posição de sofrimento, em uma posição de negação da vida, e não daquilo que rebaixa a vida. O problema de Sócrates é que ele se torna um crítico negador da vida, e não um crítico negador daquilo que rebaixa e captura a vida. E por isso ele quer fugir da vida em devir, em prol do ideal. É Sócrates que vai dizer que a o corpo é prisão da alma. Portanto, para que a alma se liberte, só com a morte do corpo. Não é à toa que talvez haja aí, como diz Deleuze, uma espécie de suicídio depressivo em Sócrates, à medida em que ele é condenado a morte, a beber cicuta, uma condição da qual ele poderia muito bem fugir, tinha todas as condições para fugir, e ele se recusa a fugir. Fica trinta dias com a opção de fugir, não foge, e bebe a cicuta. Então há uma espécie de depressão em Sócrates. Obviamente, então, é uma posição de impotência em relação à vida, e de negação da consistência do devir. O devir é um princípio de corrupção para Sócrates. E Platão leva isso às últimas consequências.
Então o ideal não pode ser o comum. O comum também não é o universal, porque o universal, ainda que não seja transcendente, sobrevoa a natureza. O universal pretende formar uma espécie de sobrenatureza dentro da natureza, uma natureza racional dentro da natureza corporal, da natureza física. E esse elemento racional incorpora e submete as partes. Então toda a parcialidade, o parcial, está dentro de um universal. Por isso o parcial teria a ver com uma redução da realidade, e o universal teria a ver com a totalidade da realidade. E por ter essa totalidade, ele teria também o atributo de comum, de ser um ser comum em relação a todas as partes que ele subsume. Isso, de novo, é uma ficção. A nosso ver é uma ficção, é uma abstração. Todo universal é uma generalidade inspirada na generalidade dos nomes e da linguagem. Então você tem “a árvore”, que é um universal. “O cavalo” é um universal, “o homem” é um universal, “a lei”, enfim…
O universal chega na lei também, porque a lei é um universal. A lei se pretende um universal. E a lei vai dizer o que não se pode fazer. Ela vai sempre trazer a contraface de uma sanção. Ou seja, se você transgride aquilo que não pode, você vai receber uma punição, uma sanção. A lei, assim como o ideal, assim como o universal, tem a natureza de uma forma. Ela é uma forma. A lei não diz o que deve, ela diz o que você não pode fazer.
Eu vou avançar um pouquinho antes de falar o que eles têm em comum, porque têm. A gente vem do ideal para o universal, para a lei e para a norma. A norma é diferente da lei. A norma é uma interiorização da lei, uma interiorização do estado. A norma não diz o que você não pode, ela diz o que você deve. Então a norma é mais específica. Ela entra em uma espécie de micropolítica dos comportamentos. Por exemplo, Kant vai fundar o sujeito do desejo, o sujeito prático, através do seu imperativo categórico. O imperativo categórico de Kant implica uma pura forma de dever-ser do desejo. O desejo deseja… o desejo legítimo, o desejo superior, o desejo que pode se tornar legislador só pode se tornar legislador se ele se tornar desinteressado das partes. Ele não deseja porque ele quer alguma coisa em troca, porque ele tem algum interesse. Ele deseja de modo desinteressado, uma pura forma de dever-ser universal. Por isso ele tem a legitimidade de legislar.
Agora, isso significa o quê? Que a lei se interioriza, o estado se interioriza e se solda ao desejo. Há uma soldagem da lei ao desejo. Quando a lei se solda ao desejo, ela se torna sujeito. Um sujeito prático. Sem esse sujeito prático, não tem nem o sujeito especulativo, nem mesmo o indivíduo. O sujeito prático, moral, é a condição do juízo em Kant, e também do sujeito de conhecimento, o sujeito especulativo. O sujeito especulativo deriva do sujeito prático. O sujeito prático é aquele que introjeta uma pura forma de dever-ser universal. E essa pura forma de dever-ser universal faz coincidir o governo dos outros com o governo de si. Então isso seria um ideal de democracia, por exemplo. Um ideal de comum, só que espiritualizado agora. Não é mais o ideal, não é mais o universal, não é mais o legal, agora o normal virou espírito, virou espiritual.
Então há todo um processo de interiorização da forma. O que isso tem de comum (apesar de não ser o comum)? O que isso tem de comum é que, em todos esses aspectos do que se pretende ser o comum, você tem uma forma de verdade. A forma de verdade é que é a grande ficção humana. É aquilo que impede o humano de acessar imediatamente o que é o comum. Por quê? Porque o comum é aquilo que não tem forma. O comum não pode ter forma.
O que é o comum? Nós vimos o que o comum não é. Vamos ver o que é o comum. O comum é um ser, antes de tudo. Mas o ser não necessariamente tem uma forma. E se ele é um ser que é comum a toda e qualquer diferença, existente ou não existente, ele não pode ter a forma de nenhuma delas. Ele não pode se conformar a nenhuma delas. Mas o comum é um princípio de afirmação das diferenças, isso sim.
O que é o comum, então? É a afirmação da diferença. Não há diferença que se sustente — uma diferença então além da diferença representada, além da diferença mediada, uma diferença real e não uma falsa diferença a partir das representações humanas —, não há diferença real que não implique uma afirmação direta e imediata de um ser comum. O comum é a única voz, o único sentido para toda e qualquer diferença. É assim que se diz que um ser é unívoco, ele tem uma única voz, um único e mesmo sentido para toda e qualquer diferença. E qual é esse sentido? É a afirmação da diferença. A afirmação da diferença é o horizonte da diferença. É a condição para a diferença se efetuar. Não há efetuação de diferença sem um horizonte afirmativo. E o comum é o começo da afirmação da diferença. É o princípio afirmativo. Mas não tem forma, não pode ter forma.
O que seria esse comum? Eu vou mais longe agora. A meu ver… eu acho que vocês não vão encontrar isso em livro nenhum, isso que eu estou falando aqui, dessa maneira, que é um pensamento que eu venho elaborando já há muito tempo. Claro, com muita colaboração, muita ajuda, muita aliança com Spinoza, com Nietzsche, com Deleuze, com Bergson, com Foucault, com outros pensadores.
Seguindo, então: o comum é um ser de passagem. Todo existente só existe na passagem. É como se tivesse um portal para cada existência, mas, no fundo, o portal é o mesmo para todas as existências. O portal é uma zona de passagem. É aquela dimensão do tempo que faz passar todo o presente. Bergson diria que isso é um aspecto da essência do tempo: há algo que faz passar todo o presente. O tempo é aquilo que faz passar todo o presente. E ele diz mais: o tempo também é aquilo que faz conservar todo o passado. O passado não é o que foi, o passado é. Aqui eu tenho um duplo aspecto da essência do tempo. A essência do tempo como duração.
Mas voltando à nossa questão: o comum é um ser que não tem forma, mas que afirma a passagem. É um ser de passagem. Não há existente que não esteja atravessado pelo movimento, que não seja atravessado pelo tempo, que não esteja em devir. É impossível. E não paramos de estar em mudança ou variação. Nossa variação é contínua. O que é constante em nós, a única constante em nós é a variação contínua. Então a própria variável, que supostamente derivaria da constante e seria inferior à constante, é também derivada da variação contínua. Tudo deriva da variação contínua. Se há uma substância do real, é a própria mudança, é o próprio devir. Heráclito estava certo: tudo é devir. O ser é sempre um ser que se diz do devir, e não o contrário. Não é o devir que se diz do ser. É o ser que se diz do devir. Mas esse ser é um ser de passagem, é um ser que faz passar todo o presente. É aquilo que é o princípio do acontecimento.
Se esse ser de passagem é o princípio do acontecimento, e ele é uma afirmação de tudo o que difere, o acontecimento também é afirmação. O acontecimento e o ser de passagem são uma coisa só. Então acontecer é afirmar. A afirmação começa não no sujeito, não no Eu, não num deus, não numa realidade transcendente, não uma substância ou num substrato; ela começa no acontecimento. A afirmação ou o desejo. Eu poderia dizer que o desejo nada mais é do que a afirmação da diferença. E ela começa nessa zona de passagem, no acontecimento. Não há existente que não esteja imediatamente acoplado ao comum, ao ser de passagem, a essa zona de passagem.
O comum é aquilo que nos é dado imediatamente. E por que então nós estamos separados dele? Por que não apreendemos o comum? Isso é um problema, um problema crítico. Eu vou seguir um pouco, depois eu posso até responder a essa questão.
Agora, o que seria a diferença? Já os estoicos gregos, assim como Heráclito e outros pré-socráticos, mas principalmente os estoicos gregos vão dizer que tudo o que existe no espaço é o corpo, e tudo o que existe no tempo é o presente. Mas também existem realidades que não existem. Quer dizer, há realidades que não existem, por exemplo, o tempo passado e futuro. O tempo aeônico não existe, mas é real. O vazio não existe, mas é real. Segundo os estoicos, o lugar é um efeito incorporal do corpo no vazio, o topos. Aqui, só para sinalizar a questão da utopia depois. O topos é um efeito. O topos, o lugar é um limite? Se ele for um limite, ele é um limite como um efeito, ele é exterior, ele é flutuante, dependendo do quê? Depende de um corpo que se mistura com outros corpos e que leva o seu sopro vital, o seu pneuma, a sua fora de existir, a sua potência até onde pode. E o efeito disso se chama lugar, na medida em que se relaciona com o vazio; e se chama acontecimento, na medida em que se relaciona com o tempo.
Então o que Sócrates, Platão e Aristóteles queriam fazer? De uma forma limite que daria a essência de cada ser, para os estoicos isso vira um efeito flutuante. Então nós não temos um lugar para ocupar. Aristóteles dizia que havia um lugar natural da pedra, um lugar natural de não sei o quê, um lugar natural das coisas. Para os estoicos não há um lugar natural. O lugar é sempre um efeito. Nos não ocupamos um lugar dado, nós inventamos o lugar. Assim como nós não usamos um tempo que está dado de modo homogêneo, nós produzimos o tempo. Então nós fabricamos tempo e fabricamos lugar. Aqui já se tem uma ideia do que seria utopia ativa. Não tem nada a ver com essa utopia sonhadora, “Ah, um dia o mundo será melhor”, nada disso.
Eu quis falar um pouquinho dos estoicos porque, para os estoicos, o corpo envolve a extensão da paixão e da ação. Até onde vai a paixão de um corpo, até onde vai a ação de um corpo, isso é o presente e é a realidade de um corpo. Então um corpo é feito, como diria Nietzsche, de forças ativas e forças reativas. Para os estoicos, é uma matéria que resiste e um pneuma, um sopro vital que age, que é ativo, como uma semente. E para Spinoza é uma potência de afetar e de ser afetado.
Então o que nós somos, segundo Spinoza? Eu vou falar um pouquinho de Spinoza, rapidamente, porque eu acho que dá para dar uma ideia mais direta e clara do que eu quero dizer aqui. Spinoza diz que na natureza, o que nós vemos que existe, tudo é natureza naturada. Mas não existe natureza naturada sem natureza naturante. A natureza naturante é aquilo que Spinoza vai chamar de “deus” — mas é um deus imanente. A natureza naturante é causa e a natureza naturada seria um efeito, mas a natureza naturada é, enquanto efeito, um efetuador da causa, um efetuador da natureza naturante. E vice-versa, então não existe natureza naturante sem o efeito produzido, sem a natureza naturada; e não existe natureza naturada sem causa, ou sem natureza naturante. Então há uma pressuposição recíproca da causa e do efeito: a causa é imanente ao efeito, o efeito é imanente à causa. Nada fora, nada transcendente. Tudo é imanente a esse mesmo plano de realidade. E mesmo a transcendência é explicada por esse plano de realidade, porque a transcendência é uma ficção, assim como a origem e a finalidade.
Spinoza vai dizer, no finalzinho do Livro I da Ética, no apêndice do Livro I da Ética, que há três ilusões de consciência: a ilusão de finalidade; a ilusão de origem; e a ilusão de transcendência. Ele vai dizer que a causa final, a causa primeira, e a causa transcendente são ficções.
E Spinoza vai dizer que tudo é modo no plano da natureza naturada — modo da natureza da naturante. O que é o modo? Modo é uma modificação. Modificação do quê? De uma potência absoluta. A realidade é feita dessa potência absoluta que se autoproduz e produz a todas as coisas. Uma potência absoluta, o que é? É uma potência que é constituída por infinitos atributos, potências que, por sua vez, são infinitas. Por exemplo, o atributo extensão, o atributo pensamento. O atributo extensão é o ser de todo e qualquer corpo. Não há corpo, não há movimento sem o atributo extensão. É o ser comum de todos os corpos. O atributo pensamento é o ser comum de todas as ideias. Esses atributos constituem, são o ato da própria potência que seria essa natureza naturante, e são o que faz com que a natureza naturante se diferencie. Ela se diferencia através dos atributos. E, através de cada atributo, ela tem uma potência infinita de se modificar segundo aquele atributo. A maneira corporal ou a maneira do movimento tem uma potência infinita de modificação. A maneira das ideais tem uma potência infinita de modificação. E tudo é produzido em ato.
Nós somos modos desses atributos. O nosso corpo é um modo do atributo extensão. A nossa mente é um modo do atributo pensamento. Nós somos uma potência em ato, um grau de potência, um modo que se atualiza a cada ato necessariamente. Não há potência sem ato. A potência não é uma possibilidade. A potência é uma realidade. Se fosse uma possibilidade, precisaria de uma causa exterior para se efetuar. Não, ela tem uma causa imanente. Ela tem já um mínimo de ato que a efetua necessariamente.
Todos nós, toda e qualquer realidade — agora eu vou usar um outro termo, que eu comecei a usar antes —, toda e qualquer diferença é uma potência em ato. Então o ato já é o princípio afirmativo da diferença, já é o princípio diferenciador da diferença. Onde começa o ato? No comum. Na zona de passagem. Só que, à medida em que o ato se atribuiu, e que esse comum se atribuiu à diferença, ele se singulariza. Então há uma produção de singularidade à medida em que a diferença se acopla diretamente ao comum, sem a mediação das representações.
Eu posso até falar rapidamente de onde vêm as representações. Representação sempre vem de um acontecido — do corpo, da mente ou dos afetos. Um acontecido que toma o lugar da potência de acontecer e vira o princípio de mediação. E essa mediação se intromete, ela vai impedir que nos relacionemos imediatamente com o comum e também imediatamente com o singular. Então nós estamos separados do comum e estamos separados do singular através das mediações. E são essas mediações que inventam as ficções do público e do privado, as ficções do individual e do coletivo, as ficções do universal e do particular, as ficções do subjetivo e do objetivo. Tudo bem, essas realidades existem? Existem em um nível raso. Eu posso até brincar com elas, mas elas não podem dar a última palavra quanto ao que é o comum e do que é o singular.
Então eu diria que, à medida em que encontramos o comum, e esse comum se atribui, ele é uma afirmação onde começa toda diferenciação de cada potência, ele necessariamente vira uma fábrica de singularidades. Mas a própria singularização ou diferenciação da potência, à medida em que se produz e se autoproduz, necessariamente ela amplia o comum e produz comum também. Ela comuniza. Então eu diria que a singularidade comuniza e o comum singulariza. E jamais haveria aqui dicotomia entre o comum e o singular, assim como tem a dicotomia entre indivíduo e coletivo, entre particular e universal, entre público e privado. Não há dicotomia entre singular e comum.
Se chegarmos nesse nível, não precisamos de estado, não precisamos de moral, não precisamos de metafísica. Isso seria uma utopia? Que utopia?
Então poderíamos dizer…
Nossa, eu estou há quase uma hora falando? Não? Caramba. Eu olhei agora no relógio, aqui. Tá, então eu vou mais um pouquinho.
É um tema que… olha, eu estou tentando aqui fazer uma síntese que é muito difícil de fazer assim, em poucas palavras. Então vamos lá.
Spinoza diz o quê? Diz que essa potência em ato se realiza basicamente de três maneiras, e esse ato adquire três qualidades. O ato pode ser uma paixão triste, pode ser uma paixão alegre e pode ser uma ação. Então o ato necessariamente é paixão ou ação, só que a paixão pode ser triste ou alegre. E ele vai fazer uma diferença de natureza entre paixão triste e paixão alegre. A paixão triste impede, nós estamos separados do que podemos e impedidos de acessar o que podemos. A paixão alegre também faz com que estejamos separados do que podemos, mas já é uma condição para nos ligar ao que podemos. A paixão alegre tem uma diferença de natureza com a paixão triste.
E a ação? Necessariamente, estamos ligados ao que podemos. Na ação, nós, a partir da nossa própria potência, geramos uma modificação, uma determinação intrínseca, uma diferenciação a partir da nossa própria potência, que faz com que inventemos uma maneira de existir que necessariamente extrai uma força, não importa do que nos aconteça (seja coisa boa ou seja coisa ruim). Aqui eu já estou misturando Spinoza com Nietzsche e comigo mesmo, eu estou inventando, tá? Mas é isso. A partir da nossa própria força, da força que nos faz existir, inventamos uma maneira tal que, na verdade, é uma linha de devir, é uma linha de acontecimento que necessariamente bebe direto do comum, é uma afirmação que diferencia a nossa potência, ou seja, que faz com que nos modifiquemos. E essa modificação necessariamente faz aumentar a nossa potência de existir. Isso é uma ação.
Um afeto que é ativo necessariamente não é determinado de fora. Se não é determinado de fora, ele também não é parcializado por nenhuma força e inoculado dentro de um estado afetivo. Ele não está limitado a um estado afetivo, ele não está limitado ao que aconteceu a ele. Ele mantém-se ligado à potência de acontecer. Se ele se mantém ligado à potência de acontecer, nenhuma forma exterior o determina, e nem o seu desejo vai seguir forma alguma, idealizar forma alguma. O que é essencial não é uma forma de verdade, mas é a zona de passagem. E a zona de passagem é aquela que deseja antes do meu desejo. É aquela que já está ali me esperando para que eu aconteça. É aquela que necessariamente faz com que a minha diferença seja afirmada.
O que é a diferença? A diferença é a potência virtual, portanto não atual. É a potência que não existe, ela é real, mas não existe, ela é virtual. Ela necessariamente se diferencia dela mesma na existência. E, ao se diferenciar na existência, ela gera uma realidade nova, um valor. O que é um valor ou uma realidade nova? É algo que pode afetar e ser afetado independentemente de quem o gerou. Então eu estou produzindo um valor, estou produzindo uma realidade. Isso é a fonte da autonomia. Isso é a fonte real da sustentabilidade.
Você não precisa idealizar nada, você não precisa buscar a verdade, você não precisa buscar o ideal, o universal, o bem, o modelo. Você precisa fazer com que o seu horizonte seja a zona de passagem, uma espécie de esteira rolante por onde os movimentos do seu corpo, do seu pensamento, do seu desejo atravessam. Esse passar, esse devir, essa variação contínua da nossa potência preenche a nossa capacidade de existir com intensidades ou variações inéditas. E isso faz com que nós incorporemos força, produzamos força e aumentemos a nossa potência de acontecer.
O problema do comum que é sequestrado por uma forma é que ele coloca a forma no lugar do acontecimento. Quando a forma é posta no lugar do acontecimento… Primeiro que é sintoma de uma potência que caiu em um buraco, que se esburacou e perdeu a superfície, perdeu a zona de passagem. É como um cavaleiro montado em um cavalo sem sela, selvagem, e cai do cavalo. Nós caímos da altura da nossa potência de acontecer e ficamos reduzidos a um acontecido em nós. Então, a partir da nossa queda, nós desejamos. Quando desejamos dessa maneira, desejamos de modo intencional. Esse modo intencional é que deseja um objeto. Ao desejo falta um objeto, seja material, seja ideal. Esse desejo é constituído na falta. Isso é uma fraude.
Ao desejo, na verdade, não falta nada, porque o desejo que é desejo começa não no buraco, na falta, naquilo que ele não tem, mas na própria potência. É a presença da potência em acontecimento que deseja em nós. Esse desejo seria um desejo intensivo e não mais o desejo intencional. É o desejo intensivo então que é a linha de diferenciação da potência, que põe a potência em acontecimento. E a potência em acontecimento é uma potência criadora de realidade e criadora das próprias condições de existência. Então ela cria o seu topos, ela cria o seu tempo, ela cria os seus elementos, ela cria as intensidades que a preenchem. A potência ou o desejo criam o próprio objeto que vai preenchê-los.
Ao desejo nada falta, mas isso depende da invenção então de uma maneira de viver, de um modo de vida. Isso é essencial. O modo de vida, na verdade, é a fonte de autonomia. Então não adianta nada as esquerdas — claro, eu me sinto de esquerda, sou simpático às esquerdas, mas é preciso fazer uma crítica radical ao modo infantil ainda que as esquerdas funcionam. Buscam sempre a organização, como se a organização fosse a fonte da resistência, em vez de focar em uma composição, em um plano de composição que é mais profundo do que a organização. A organização é necessária? É necessária, mas é secundária e não é suficiente. É preciso atingir um plano de composição, de relação direta, de maneiras de existir que não invistam em formas de verdade, em formas de tutela, em formas de dependência, no público, por exemplo; mas que invadam o público, que se apropriem do estado e coloquem o estado a serviço da vida, até o estado se tornar desnecessário. Claro que isso é um ideal, mas pelo menos é um ideal na imanência; é uma utopia, mas é uma utopia na imanência. Nós podemos fazer isso aqui e agora, e não ficar sonhando com o futuro da revolução. Eu acho que esse é o problema.
[Guilherme Carboni]: Puxa, muito bom, Luiz. Excelente, muito obrigado. Nós ficamos aqui nesse estado, supertocados pela sua fala. Enfim, vamos passar aqui para as demais pessoas aqui do podcast, para fazerem as colocações.
[Márcia Regina Ferreira ]: Bom, a gente fica meio sem fôlego até, né? Embora o Fuganti esteja falando de potência, mas a gente vai ouvindo e vai pensando em tudo. Essa coisa do mau jeito que estamos vivendo, né? Estamos vivendo em um período tão assombroso, tão angustiante, e ouvir isso é maravilhoso porque nos faz perceber algo que talvez precisemos aprender sobre nós mesmos. Talvez aprender a se olhar, aprender a se sentir, aprender a se conhecer, para poder encontrar esse poder imanente que o Fuganti está colocando sobre essa afirmação de vida, essa afirmação da diferença.
Agora, ouvindo todo esse percurso que o Fuganti faz sobre utopias e produção do comum, aí nós vemos o quanto é preciso rever o que pensamos sobre o comum, para realmente produzirmos essa vida. Ou seja, produzir esse comum que, pelo que eu entendi, Fuganti, aí você pode me ajudar nisso, esse comum, na realidade, surge pela afirmação da diferença. Então se ele é essa afirmação da vida, essa afirmação da diferença e ele não pode ter forma, então ele também não pode ser apropriado. Ele é, na verdade, inapropriado. Eu queria que você falasse um pouquinho sobre isso.
[Luiz Fuganti]: Sem dúvida. Ele é inapropriável, sem dúvida. É só por ficção que nós nos apropriamos dele. Assim como Nietzsche diz, nós só julgamos por ficção. A vida é aquilo que não pode ser julgado. O julgamento pressupõe a elevação de um ponto de vista que se torna totalizante, que se pretende único e superior a todos os outros, que envolveria todos os outros. É a ideia do uno e do todo, é a ficção do uno e do todo. Mas se ele é inapropriável, por que perdemos a relação direta com o comum? Por que o estado sequestra o comum? É o problema da condição humana.
Eu diria assim, eu não sou padre, não sou crente, eu acho que muitos ateus, eu os acabo chamando de “padre” porque acho que todo aquele que acredita na essência do mal é uma espécie de padre, assim como aquele que acredita também na essência do bem. O bem e o mal são duas ficções. Então eu não vejo o estado, a condição humana de miséria e de impotência como um mal em si, ou como causado por uma matrix que estaria fora e que se apropriaria, sequestraria o humano. Se tudo vem de um plano de imanência, uma realidade única imanente, nós temos que explicar isso também. E aí eu gosto sempre de usar uma coisa que o Nietzsche diz, “é preciso encontrar o sentido alegre da dor”. Toda dor tem um sentido alegre. Se não chegamos em um sentido alegre, não vimos nada.
E outra coisa que eu aprendi com Spinoza, ele diz que é impossível que uma coisa me afete se ela não tem algo de comum comigo. Então, se o bem me afeta é porque tem algo de comum. Então o bem está submetido ao comum. E se o mal me afeta, é porque tem algo de comum. Então o mal também está submetido ao comum. O bem e o mal são derivados, não são primeiros. O comum, sim, é primeiro.
O bem é sempre um efeito de um bom encontro, o mal é sempre um efeito de um mau encontro. Então o que há são bons encontros e maus encontros. Mas o que é um mau encontro e um bom encontro? Um mau encontro é um modo, é aquilo que decompõe as forças que me constituem ou diminuem a minha capacidade de sentir, de agir e de pensar, diminuem a minha força de existir. O bem seria aquilo que aumenta a minha potência, que se compõe com as minhas forças, com as velocidades e tempos que me constituem, aumentando a minha capacidade de sentir, de agir e de pensar, aumentando a realidade e o modo de apreender essa realidade. Então, na verdade, o bem é o efeito de um aumento de potência que me preenche de alegria; o mal é efeito de uma diminuição de potência que me preenche de tristeza.
Mas, à medida em que nós existimos de uma certa maneira, nós podemos criar essa mesma maneira na relação com os outros, com as outras coisas, com o mundo, de um modo tal que aquilo que nos acontece pode ser combustível de criação de realidade. Seja coisa boa, seja coisa má. Às vezes a coisa boa diminui a nossa potência, nos acomoda; e às vezes a coisa má diminui também a nossa potência, ou nos provoca, mas nós podemos sempre extrair força daí.
Então eu diria que o mal, a tristeza, a dor, o que há de negativo são interventores da realidade. Na verdade, fazem parte, assim como quando temos febre: se não tivéssemos uma febre e não delirássemos, nós não tomaríamos uma atitude. Se não tivéssemos uma dor, não tomaríamos uma atitude. Então, a meu ver, sempre tem esse aspecto extremamente necessário e perfeito da dor. A dor faz parte da perfeição, o sofrimento faz parte da perfeição.
A dor tem que ser necessariamente transformada em dor de parto. Ou seja, o que é a dor de parto? É aquela dor que vai trazer à existência uma realidade que ultrapassa qualquer dor, uma vida nova. Toda dor ou mal, para mim, tem esse sentido.
Desse ponto de vista, o estado é um mal que acontece aos humanos. Quando? Quando os humanos se separam do que podem. Quando, nessa separação conjunta do que podem, eles criam um conjunto desejante e um conjunto de crenças. Então o estado nada mais é do que o efeito de uma rede de desejos e crenças. O próprio Foucault dizia, “o estado nem existe”. O que é o estado, afinal de contas? Somos nós. O que é o capitalismo? “Ah, o capital e os capitalistas”. Somos nós. Nós somos cúmplices, nós desejamos de uma certa maneira que damos sustentação a isso. Nós acreditamos de uma certa maneira que damos sustentação a isso.
Começa ao fazer a crítica, ao dizer “Puxa, o estado sequestrou o comum”, “O privado sequestrou o público”, enfim, “O capitalista roubou o meu trabalho”, ou seja lá o que for. “O Bolsonaro é um cretino, desgraçado etc.”. Bom, tudo bem, nós achamos isso tudo muito interessante, nós concordamos com essas coisas, mas é muito importante ver que Bolsonaro é só um preposto, que o capital é um preposto, o estado é um preposto, quer dizer, isso tudo depende de uma rede de afetos. Claro que essas formações de soberania vão se abater sobre os indivíduos e fabricar a subjetividade miserável, fabricar vidas separadas do que podem. Através das famílias, das escolas, dos sistemas jurídicos, dos sistemas políticos, das instituições. Sempre há uma guerra total e permanente sobre as nossas forças ativas e sobre as nossas intensidades. A nossa intensidade e força ativa não são legitimadas, exceto quando viram funções de outra coisa. Esses centros de soberania colaboram para nos roubar, para nos submeter.
Mas onde, em que lugar, em que tempo, em que momento nós nos tornamos cúmplices, nós permitimos que isso aconteça? Por exemplo, o coronavírus agora demonstrou que sem vida não tem capitalismo. Tem uma hora que tem que parar tudo. Nem Bolsonaro resistiu, nem o Trump, tem uma hora que tudo para, independentemente de eles quererem seguir a linha de morte. Mas sabemos que acima da vida e da morte está a potência. E quando as vidas separadas do que podem, que têm vontade de morte, são esses nazifascistas que seguem uma linha de abolição e são instrumentos do capital, vemos que o que importa a eles é o poder. O que importa na Ucrânia agora? Importam as vidas humanas? Nunca importaram as vidas humanas em uma guerra. É sempre o poder. É porque a vida e a morte são modos da potência. A potência é algo mais profundo ainda do que a própria vida. E quando uma vida está separada do que pode, impotente, essa impotência vai fazer de tudo para se empoderar e querer impor o seu poder. Por isso as vidas são aniquiladas dessa maneira.
Então o estado, como eu dizia no início, é sempre um estado de não-relação. E esse estado de não-relação é desde o macroestado, desde o poder material, soberano, exterior, um centro de poder, com seus palácios, seus reis etc. e tal, os seus poderosos; até os poderes espirituais ou divinos, Maomé, Jesus Cristo, Abraão, os monoteísmos em geral, cristianismo, judaísmo, islamismo; até os poderes microfísicos, micrológicos, microafetivos, os poderes espirituais que, na verdade, fazem de nós identidades solipsistas, isoladas, com as quais não conseguimos mais nos relacionar, exceto por mediação. Eu gosto muito de um filme do Godard que se chama Filme Socialismo. Tem uma hora em que eles estão naquele navio, naquele cruzeiro, e tem alguém que diz assim: “Os árabes inventaram o dinheiro para não olharem nos olhos uns dos outros”. É mais ou menos isso.
Então você inventa uma mediação, e o estado é isso. É sempre uma não-relação, é uma falsa relação, é uma representação da relação. Agora nós temos uma axiomática da moeda do dinheiro-mercadoria. É uma axiomática generalizada que substitui tudo. Tudo se torna substituível. Tudo se torna equivalente. Se tem equivalente e substituto para tudo, acabou a singularidade. As singularidades são esmagadas. No máximo você tem subjetividades, mas não singularidades. E toda subjetividade é assujeitada. O sujeito é um modo de assujeitar o desejo. O sujeito é sempre um assujeitado. O sujeito nunca é “o sujeito da história”. O sujeito da história é um assujeitado.
Agora a singularidade é que está encoberta, que é uma potência de acontecer, que é uma linha de vida que faz com que você invente a própria vida em ato, que você produza eternidade na existência. Então nós estamos duplamente separados que podemos. Primeiro, porque caímos e levamos muito a sério as nossas dores e também os nossos prazeres. Nas nossas dores, nos fazemos de vítima e já buscamos uma justiça, um elemento justiceiro, vamos acusar a alguém. Vamos sempre encontrar uma causa imaginária para as nossas impotências, e ao mesmo tempo somos vítimas. Nós nunca somos cúmplices, somos sempre vítimas. E, ao mesmo tempo, nos prazeres sentimos que temos direito àquilo que está dando prazer ou alegria à nossa vida, fortalecendo a nossa vida, e queremos manter aquilo no lugar. Assim o amor, por exemplo, é sempre uma vontade de apropriação. Não é o amor ativo, é sempre um amor passional que quer se apropriar dos corpos, das mentes dos outros. O modo humano de amar é um modo bem miserável. O que se chama de amor na verdade é uma vontade de poder.
Eu diria que tem sempre uma dupla captura que nos acompanha. Uma que é aquela que acontece pelo próprio mau uso daquilo que nos acontece. Nós usamos mal o mal que nos acontecem, e usamos mal também o bem que nos acontece. Usamos mal o mal que nos acontece, como, por exemplo, o uso vitimista e justiceiro da dor, um duplo mau uso. Usamos mal o bem que nos acontece, um duplo mau uso também, ou um uso complacente de um prazer-descarga, que descarrega e distensiona o nosso prazer em vez de intensificar, e o uso empoderador. Esse é o duplo mau uso do bem que nos acontece.
Então, à medida que caímos, caímos em um estado afetivo. E esse estado afetivo (que é um acontecido) se coloca no lugar da potência de acontecer. Aqui está o princípio de toda mediação ou toda representação. E é esse o começo da separação da vida do que ela pode. Depois, aprofundamos essa separação, porque daí vamos buscar, nessa vida, nesse mau jeito, não encontramos outro jeito senão nos empoderarmos, senão buscar alguma compensação exterior. E aí desejamos de modo intencional e o buraco vira uma cratera. Você não consegue mais ver as suas dimensões, você está em uma cratera e nem sabe. Você pensa que está na planície, na superfície. Então é mais ou menos isso.
Então eu diria que o estado, seja do capitalismo, político etc. e tal, esse estado de miséria, esse estado de tristeza, esse estado de sofrimento, esse estado de separação, esse estado fascista, estado isso, estado aquilo, tudo o que está acontecendo de reativo e de negativo são provocações dos deuses sobre nós. Eles estão se divertindo conosco, e nós que demos conta, nós que levantemos a bunda da cadeira e comecemos a criar uma outra maneira de viver.
Nietzsche gostava de dizer que os gregos inventaram seus deuses para rir. Os deuses gregos riem das tragédias humanas, sejam falsas ou verdadeiras. Eles estão lá para se divertir. Então os deuses inventam essas encrencas para nós para se divertirem. Então alguém está rindo. Será que não pode ser nós? Nietzsche dizia também que se deus existisse, como eu suportaria não sê-lo? Então nós que nos tornemos mais um deus.
[Isabel Cortellini]: Fuganti, muito obrigado por toda essa aula. Eu estou sentindo… minha cabeça chega a estar fervendo de tanta sinapse nova que você conseguiu promover aqui nesta cachola. Mas uma coisa que você falou me pegou muito, acho que você foi retomando ao longo da sua fala, mas o que eu escrevi aqui foi que “todo mundo que busca um mundo melhor é um moralista”. Claramente eu me identifiquei, e acho que eu queria um pouco… me dá uma luz, como eu deixo de ser cúmplice? Quando se começa a deixar de ser cúmplice? Porque a hora que você falou isso, bateu, eu falei “não quero ser uma moralista”, e acho que ao longo da sua fala você foi mostrando muito isso, de não sermos cúmplices, de que não adianta você meter o pau no capital, meter o pau no estado, no sistema que está aí, quando, na verdade, somos cúmplices. Então, tem como não ser cúmplice?
[Luiz Fuganti]: Tem, tem. Tem, é necessário, urgente, e é totalmente praticável. E não é difícil, não é muito difícil. Basta começarmos a deixar de apontar o dedo para fora — até para o bem, também. Deixar de apontar o bem e apontar o mal. Gostamos falar bem e de falar mal. E nos focarmos mais na maneira de viver. É como se déssemos um passo atrás em relação aos objetos materiais ou ideais, do bem ou do mal, e voltássemos para a zona de passagem, para a maneira de viver.
A maneira de viver é a causa real do bem e do mal que nos acontece. É aqui que nós somos cúmplices, e por quê? Porque a maneira de viver depende da nossa potência ou impotência. Impotência na medida que somos determinados de fora e uma maneira de viver nos é imposta. E potência na medida que nós podemos reagir — não ressentir, mas reagir. Ressentir é intoxicar e não conseguir digerir, e aquilo fica regurgitando. Reagir é digerir, é processar, é fazer daquilo combustível de criação, uma nova maneira de viver. Então você reage de fato, você inventa uma nova maneira de acontecer, de fluir, de se ligar aos movimentos intensivos e não meramente aos movimentos extensos; e de se ligar aos tempos de acontecimento que duram, e não meramente aos tempos cronológicos; de encontrar e cultivar os sentidos de oportunidade, e não meramente achar que a coisa tem que acontecer no momento certo, ideal, que estou idealizando.
Por exemplo, eu vejo uma coisa, eu sou absolutamente empático às causas feministas, mas às vezes eu vejo alguém dizer assim “nós temos o direito de sair com a roupa que quisermos, no momento que quisermos, no lugar que quisermos”. Você vai sair e vai se dar mal. Não vai funcionar. “Ah, mas então todo humano deveria respeitar a mulher etc. e tal”. O humano é animal e infelizmente ainda um animal completamente grosseiro, estúpido, recalcado, reprimido, esburacado, que tem uma fábrica de produção de estupradores, de violentadores, de violadores, de impotentes. Então o sentido oportuno é perceber que as coisas não são de qualquer maneira em qualquer momento, em qualquer lugar. Você tem que, como dizia o Chorão, você tem que saber chegar. É uma suavidade, é uma maneira de encontrar. Nós humanos só trombamos, nós não encontramos. Mas o encontro é essencial, temos que aprender, como diria Vinícius, a arte do encontro, embora haja tanto desencontro.
E encontrar é encontrar o desejo do outro no seu tempo próprio. Encontrar o próprio desejo no seu tempo próprio. Afirmar os tempos próprios. A única violência é aquela que impede o tempo próprio de durar, porque a força vem da duração do tempo próprio. É a experimentação que singulariza. Então deixamos de ser cúmplices quando focamos na maneira de acontecer que depende de nós. Chamar a responsabilidade para nós, aproveitar as nossas dores e também os prazeres, e extrair intensidade tanto da dor quanto do prazer, e não usar o prazer para descarregar e ir dormir. Usar o prazer para se intensificar, extrair intensidade — porque, no fundo, o que queremos é intensidade, não é prazer. Queremos potência de criar e não felicidade. Queremos acontecer e não estar em um lago tranquilo.
Eu acho que é fundamental chamarmos a responsabilidade ética (e não moral), que é ligar a nossa vida ao que ela pode. E a nossa vida pode se elevar à mais alta potência de acontecer, e não valorizar demais os acontecidos em nós e ficarmos presos ao que aconteceu, e ficarmos idealizando o que vai ser. Então é dar menos importância às dores e se ligar mais à potência plástica da vida de variar. Nós podemos mudar, dinamizar, nos deslocar rapidamente em vez de ficar lá chorando o leite derramado. Isso é fundamental.
[Márcia Regina Ferreira]: Fazer só um comentário sobre isso, Fuganti. Eu acho que quando você responde para a Bel sobre como não ser cúmplice, você acaba oportunizando para nós pensar sobre essa vida ativa. Eu acho que você acabou de fazer uma síntese sobre o que é uma vida ativa e como essa vida ativa pode, sim, se tornar uma espécie de produção do comum. Mas, sem essa vida ativa que afirma a vida e que não está de forma alguma adoecida (eu digo no sentido do mau encontro), aí sim eu acho que conseguimos ter um pouquinho mais de — eu vou dizer a palavra “chão” para podermos caminhar. Porque, querendo ou não, nós aqui do Instituto, claro que é quando nos organizamos em várias pessoas para podermos discutir sobre a questão da realidade brasileira, acabamos caindo nisso que a Bel acabou de colocar. Eu também me senti como moralista, tá, Bel? Não se sinta sozinha, sou solidária a você.
[Luiz Fuganti]: Nós todos somos um pouco moralistas, sim.
[Márcia Regina Ferreira]: Então obrigada, Fuganti. Obrigado.
[Luiz Fuganti]: Obrigado a vocês também pela oportunidade. Acho que o Artur quer falar.
[Artur Matuck]: Eu queria apenas fazer uma observação. Uma coisa rápida. Olha, eu acho muito estimulante o seu raciocínio, o seu pensamento, e ver você falando, e os seus olhos, assim, parece que o pensamento está se formando. Isso é muito estimulante, muito enriquecedor.
Agora, eu sei que você é professor, e você foi de um certo modo um professor aqui para nós, mas eu, talvez por um excesso de didática, de pedagogia, porque eu também sou professor, eu fico pensando assim: o que, para você, seria um exemplo concreto do que você explicita? Como alcançar uma intensidade ou produzir uma intensidade? Não sei, no domínio da política atual, ou da arte, ou mesmo da filosofia, o que seria, para você, um exemplo concreto do que você nos expõe como positivo?
[Luiz Fuganti]: Eu vejo como a minha própria vida. Eu fui um cara muito bombardeado de vários lados, e sempre aproveitei para ficar mais forte, mais potente e mais alegre. Então eu poderia dizer assim — eu não quero me dar como exemplo, mas é que eu tenho muita dificuldade, sempre, em encontrar coisas reais e tal —, mas eu diria até que, mais do que pessoas, você tem modalidades afetivas. Eu acho que todos nós, de alguma maneira, temos esses momentos. Quando nos relacionamos com algum acontecimento da nossa vida, algum modo de sentir, reagir ou pensar, alguma linha que nos atravessa, é mais fácil de você encontrar isso concretamente do que uma pessoa em bloco. Mas eu diria o seguinte, que uma pessoa em bloco é aquela… quer dizer, um exemplo, mas eu vou te dar de novo um pensamento que pode ser muito abstrato. Não tem outro jeito.
Eu acho que sou o cara que tem mais dificuldades em dar exemplos. Eu realmente não me ligo com exemplos. Mas eu diria o seguinte, existe uma maneira necessária de pensar. E aí você vai entender a necessidade disso. Eu diria o seguinte: nós temos um ritmo. Todo vivente tem um ritmo. E o ritmo se dá não de modo métrico, não é um ritmo matemático, não é um ritmo como o metrônomo de um músico. É o ritmo entre a realidade virtual e a realidade atual, entre o ser de potência e o ser de passagem. Há sempre uma distância temporal que dura, e até uma distância de efetuação do movimento físico entre uma realidade virtual e uma realidade atual. E esse intervalo de movimento, esse entretempo entre a potência e o ato estabelecem, na verdade, um circuito. E o circuito é um circuito desejante. O circuito desejante implica sempre uma retomada ou uma recaída. Então eu retomo a minha potência de acontecer ou eu recaio em um buraco e, para retomar, eu preciso de um poder, preciso de uma tutela, preciso de um patrocínio, preciso de alguém que me dê a mão.
Então existem sempre dois modos de acontecer. Se eu aconteço de uma maneira tal que eu me preencho de alegria e, mais do que uma alegria por acaso, é uma alegria passiva; com uma alegria ativa que depende da minha maneira de existir, eu necessariamente retomo, a cada ato, a minha potência, um plus de potência, e me lanço novamente a um novo ato, inédito, que novamente acontece a minha potência, diferencia a minha potência e eu não paro de me tornar diferente de mim mesmo, mas em uma linha ascendente, uma linha de salubridade e não em uma linha decadente, uma linha de morbidez. Eu entro em uma ascendência.
No neorealismo italiano, você pega Visconti, ele está sempre retratando uma realidade, criando uma realidade nova na arte dele, que é demasiado tarde para você retomar. É como se você tivesse perdido o timing do acontecimento. Por exemplo, uma obra célebre nesse sentido é o… acho que chama Garibaldi, esqueci o nome da obra, mas é sobre o Garibaldi, onde aquele velho nobre já está fora de época, porque a burguesia é ascendente, a época dele não funciona mais e, inclusive, ele está demasiado velho até para o amor. Ele não pode retomar mais nada, então é demasiado tarde. Fellini, que é um neorealista também, faz o contrário. O Fellini sempre acaba as obras dele dissolvendo tudo e criando uma superfície leve de retomada. É sempre um tempo de retomar de novo. Por exemplo, no 8 ½, ou no Amacord, aquela banda que sai, aquele povo que sai naquele coreto, naquele desfile, naquela ciranda. Aquela alegria, aquela leveza, é como se tudo se dissolvesse e se disponibilizasse novamente para novos jogos, novas aventuras. Então é a potência de retomar.
Eu diria que o eterno retorno em Nietzsche é a mesma questão. O que retorna? O que retorna é sempre a potência, e não a identidade, não o Eu, não o mesmo, não o que eu fui. Isso não retorna. O que retorna é a potência de acontecer, se eu estiver em um modo ativo — mas retorno mesmo se eu estiver passivo. Se eu estiver sempre submetido a forças de fora, eu estou atolado em um estado afetivo e o que regurgita em mim, o que se apresenta a cada novo acontecimento é o velho estado de impotência. E aí eu mato a novidade do acontecimento. Eu não consigo retomar a alegria de viver. Eu instauro ali um circuito, um círculo vicioso, decadente e entristecedor, que precisa da compensação do capital, do poder, do sexo perverso — porque sexo é ótimo, desde que a sexualidade, os prazeres, sejam fonte de intensidade e não fonte de entorpecimento. Mesma coisa a riqueza, os poderes. Então você fica ali naquele círculo de compensação.
Quando, na vida ativa, você se preenche de alegria, a alegria vira o seu combustível, então não importa o que te aconteça, inclusive a pior das coisas. Eu, uma vez, há uns anos, há três, quatro anos, eu inventei uma coisa chamada “método para rir até dos maus encontros”. Mesmo que a pior coisa te aconteça, existe um jeito de você extrair força dali, se intensificar, se potencializar, e aumentar a alegria de viver. Então isso, para mim, é bem prático. Não precisa muito de exemplos, eu imagino, nós podemos fazer o tempo inteiro.
Márcia Regina Ferreira]: Muito bom, Fuganti. Olha, eu gostei dessa ideia, viu? Aprender a rir dos maus encontros vira um método. Acho que isso aí é bem potente para nós.
[Luiz Fuganti]: Eu vou voltar a disponibilizar esse curso uma hora dessas. Diga, Guilherme.
[Guilherme Carboni]: Sabe que esse aspecto, inclusive Bel e Artur trouxeram, esse é um ponto que me intriga, que é o seguinte: se, de certa forma, a humanidade acabou vivendo dessa maneira, vamos dizer, especialmente com relação à questão da idealização, será que a idealização também, de certa forma, não faz parte e, portanto, se pensarmos nessa outra forma, nessa outra maneira de viver, não idealizada, será que ela não poderia ela mesma acabar se idealizando enquanto forma de vida?
[Luiz Fuganti]: Entendi. Acho ótima a sua questão e eu diria o seguinte, que sempre há uma idealização. Spinoza, no início do “Livro IV” da Ética, ele vai dizer que há uma idealização de perfeição, o que é a perfeição, e se inventam modelos, e ele descontrói esses modelos todos. Mas, num certo momento, ele diz assim “Mas eu não abro mão da ideia de modelo. Eu tenho um modelo de humano também”. Ele fala “homem”, né? Modelo de homem. Um ideal de humano.
Mas de onde vem todo ideal? O ideal é uma ideia, é uma idealidade. De onde vem toda idealidade? Vem do acontecimento. Então eu posso criar uma idealidade em relação ao acontecimento. Por exemplo, uma idealidade em relação à questão ética. “Torna-te digno do que te acontece, seja o pior ou o melhor”. Torna-te digno. O que é ser digno? É estar à altura do acontecimento. O que é estar à altura do acontecimento? É reunir ou criar forças para aproveitar o acontecimento e ficar mais potente. E não acusar, nem se ofender, nem se sentir julgado, nem julgar. Então isso é um ideal, mas é um ideal no acontecimento. O que é esse ser ativo, afirmativo e criador de realidade? É um ideal. Mas não é uma forma de verdade, entendeu? A diferença é essa.
Se quando falamos em ideal, criticamos o ideal, estamos criticando a forma da verdade. Nietzsche tem um texto de juventude ainda, que está traduzido até naquela coletânea da editora Abril sobre ele, chama “Verdade e mentira no sentido extramoral”. E aí ele começa dizendo que um animalzinho, insignificante, num planeta, na periferia cósmica da galáxia, num pontinho de nada, em um certo momento do tempo cósmico inventou a verdade. Aí ele diz assim, “Foi o momento mais mentiroso e insalubre da história cósmica”. Aí digo eu: a verdade é uma mentira para prolongar um modo de vida fraco. A verdade é sempre uma muleta para os impotentes, porque, no fundo, o que você tem? Você tem acontecimento, e acontecimento é sempre diferencial. Quando você quer encaixar o acontecimento em uma verdade, você reduz o acontecimento, você separa o horizonte da potência de acontecer, ligando-a a uma forma, reduzindo-a a uma forma. E aí você perde a fonte de criação da própria realidade. E aí você fica idealizando um poder, como se as coisas estivessem dadas e prontas, mas a realidade está sempre se autoproduzindo. Eu diria que existe uma idealidade, mas na superfície e a do acontecimento, e não a da forma de verdade, que seria uma forma transcendente. Entendeu?
[Guilherme Carboni]: Perfeito. Olha, nós agradecemos muitíssimo, Fuganti, pela sua presença aqui. Essa conversa, ouvir você, o quanto isso nos toca e o quanto essas questões são importantes aqui para o Instituto, para podermos refletir nas nossas conversas, nos nossos debates, nos próximos episódios, enfim. E aqui, quando falamos seu nome, foi totalmente uma unanimidade. Então, de novo, superagradecido aqui pela sua presença, pela sua fala. E agradeço também à Bel Cortellini, diretora aqui do IESD, à Márcia Regina Ferreira, coordenadora de linha de pesquisa, e ao Artur Matuck, também coordenador de linha de pesquisa, pela participação, pelos comentários. Muito obrigado. Até a próxima.
[Luiz Fuganti]: Uma boa noite a todos. Agradeço a oportunidade. Felicidades e bons encontros para esse meio que vocês criaram, tão importante, tão necessário para essas novas visões de sustentabilidade e de produção de comum. Boa noite para vocês.

o privado é uma invenção do público. O privado é filho do público. Não haveria privado sem o estado. O estado é o inventor do público. E o estado é sempre um estado de não-relação. O estado emerge quando certas forças deixam de se interessar por relações transversais, diretas, de sociabilidade, e forma-se um centro de soberania.