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O Humor Como Libertação de Si

O HUMOR COMO LIBERTAÇÃO DE SI
A mais amorosa das crueldades. A mais alegre das criações.

Transcrição da fala de Luiz Fuganti no encontro idealizado pela Key Zetta e Cia, pelo 20º programa de fomento à dança para a cidade de São Paulo em abril de 2017.
Transcrição: Gabriel Naldi

[Luiz Fuganti]: Boa tarde a todos. Fomos incumbidos de fazer algumas digressões sobre o humor. Dá até para chamar de “problema do humor” ou “solução do humor”. O humor como uma dimensão humana, uma maneira de existir do homem que, no mínimo, é curiosa.
Segundo Aristóteles (me veio a questão clássica), uma das propriedades do homem é que o homem ri. O homem é um animal que ri. Mas, claro, assim como o cão é o animal que ladra, isso não faz parte da sua essência, mas é uma propriedade, segundo Aristóteles. Mas deixemos Aristóteles de lado, porque vamos entrar em questões mais profundas.
Eu acho que a questão do humor implica em distinguir o seu elemento. Qual é o elemento do humor? O que é exatamente o humor? Na medida em que ele é um elemento, poderíamos dizer que ele é uma tendência única, simples e singular (se ele é um elemento, ele é uma dimensão singular) da existência humana. Mas dá para dizermos que é da vida, é muito mais do que a existência humana. No caso da existência humana, ele tem incidentes específicos. O humor é uma alegria. É com certeza uma alegria. É um prazer também? Claro, se é alegria, necessariamente o prazer decorre da alegria. A alegria é mais profunda do que o prazer. Então, se é uma alegria, é também um prazer.
E os seus efeitos, além de fruirmos, de alguma maneira gozarmos com o humor, é uma espécie de gozo, também ele tem uma direção muito curiosa, que é uma direção crítica. E por ser crítica, destrói. O humor é um destruidor. E talvez esse aspecto destruidor do humor seja uma das forças mais misteriosas e interessantes, que faz com invejemos pessoas que têm humor. Geralmente somos muito mal-humorados. É difícil rirmos. Geralmente, quando rimos, rimos de modo banal, de modo ordinário. Como nas comédias de costumes, rimos por causa dos preconceitos, rimos por causa das deficiências, rimos por causa das inadaptações, das inadequações.
Esse aspecto crítico do riso funciona como um reformador extremamente reacionário. Por que é reacionário? Porque o riso vai produzir uma humilhação, um rebaixamento, e vai forçar a vida a se enquadrar. Por isso Spinoza é um crítico ferrenho do deboche. Em Spinoza não fica muito clara a maneira como ele denomina, o que fica muito claro é o conceito. Ele diz que existe um mau riso, que é o riso a partir da tristeza.
Eu poderia aprofundar um pouco isso. Que tristeza merece ser conduzida para o riso? E aí tem uma coisa muito interessante. Por exemplo, Nietzsche diz que é preciso encontrar o sentido alegre da dor. Ora, é preciso encontrar o sentido alegre da tristeza. Spinoza diz “nada de paixão triste”. A paixão triste não serve para a vida. Mas diríamos um pouquinho mais — e Spinoza sabe disso, embora não chegue a dizer desse jeito —, é preciso transmutar a paixão, seja ela triste ou alegre em ação, mas principalmente a triste. A paixão triste deve ser transmutada. Devemos usar a tristeza, devemos aproveitar a tristeza. Usar a tristeza como um presente, como um dom, assim como o sofrimento. Não ao modo cristão. Como diz Henry Miller, esse tipo de sofrimento é obsceno. Há uma obscenidade no sofrimento que rebaixa a si e que rebaixa o outro. Por isso a comédia tem muita obscenidade. Muitas comédias são obscenas.
Existe uma certa unanimidade em torno de Woody Allen, sobre como ele faz o seu humor. É complicado. Eu diria que tem muita mistura ali. Há coisas interessantes, há ironias interessantes, há ironias que são niilistas. De alguma maneira, a ironia é sempre niilista, mas existe um niilismo negativo, reativo, passivo. E há um niilismo ativo, então existe uma ironia interessante — não a socrática. E vamos entender um pouco o que seria essa ironia socrática.
A questão do humor, muitas vezes, é o riso em relação à neurose, por exemplo. Eu citei Woody Allen porque ele coloca a neurose no centro dos seus personagens. A maioria dos personagens do Woody Allen, nos filmes, é neurótica. E existe um riso. Esse riso pode ser interessante se ele tiver um aspecto de uma crueldade amorosa, digamos assim. Um riso destruidor da neurose que está entupida de falsos problemas. Isso seria interessante.
E tem um lado que é reformista. Tem um lado que é padre, que é cristão, que adapta a vida, como se o riso chamasse a atenção para a humildade. “Sejamos humildes.” Mas qual das humildades? A humildade que humilha, a humildade que rebaixa, ou a humildade que é, digamos assim, “peraí, eu preciso avaliar as minhas forças reais e não me superestimar”? Então essa humildade é “caia na real”. Quais as forças reais que te atravessam? Essa humildade é interessante, é uma humildade aliada, não é uma humildade da humilhação. É uma humildade como uma avaliação real de si, segundo aquilo que você pode nas relações que você tem, segundo as maneiras como você existe.
Se formos ver a questão das comédias, geralmente elas têm esse mesmo nível. E Bergson, no último capítulo de O riso, que é a parte mais importante da obra dele, chama a atenção para uma espécie de rigidez que faz rir, ou seja, uma fixação, um isolamento — porque a fixação vai para o isolamento, leva a nossa energia a se isolar —, e uma espécie de automatismo. Isso é risível. Mas eu posso ser rígido em relação a uma recusa dos valores estabelecidos. Eu vou ser objeto de riso? Vou, mas eu aprendo a rir de mim mesmo nesse sentido.
Sempre que eu adoto um valor estabelecido, eu devo rir de mim mesmo. Fazer igual a Nietzsche. Quando acusam Nietzsche de excêntrico, ele diz “Sim, muitas vezes eu fui excêntrico. Sempre que eu me centrei no homem, eu era um excêntrico. Sempre que eu valorizei o homem, a forma-homem, o Eu, a identidade, o sujeito civilizado, centrado, moral, especulativo, o indivíduo eficiente, eu fui excêntrico.” Ele não usa essas palavras, eu estou aqui inventando, mas ele diz isso, de alguma maneira: “Quando eu deixei de ser excêntrico? Quando eu me concentrei na minha potência, na vontade de potência que me constitui.” E a vontade de potência, do ponto de vista do homem “normal”, é excêntrica. Mas, do ponto de vista da vida intensa, é o nosso centramento necessário. O nosso centro não como uma origem de nós mesmos, e nem um centro que vai em direção a um fim, a uma finalidade. São duas ilusões de consciência: origem e fim. Mas o centro como ponto de vista, o centro como uma perspectiva interior no tempo.
O que eu sou, na essência? Eu sou uma perspectiva de tempo. Um tempo imanente, não o tempo cronológico. Um tempo que emerge e se põe a diferenciar, como um modo de realidade que produz realidade ao se efetuar a partir desse ponto único e absoluto enquanto ponto de vista. Porque é absoluto. Se não fosse absoluto, não faria parte da cadeia infinita. O ponto de vista não tem como não ser absoluto. Não é um ponto relativo.
Esse é o centramento do homem — do homem que já não é mais homem, porque aqui você já ultrapassou a forma-homem, assim como a forma-deus. Não está mais na forma, você está na linha de acontecimento que te constitui. Você é uma linha de acontecimento. Você é um ponto de vista. Você é uma duração com o seu duplo lado, o dentro e o fora; com a dupla ponta do acontecimento, a futura e a passada. Eu sou uma dobra de tempo.
Enfim, isso é para já fazermos um contraste com o que nós normalmente fazemos da nossa vida e por quê. Desde que somos separados do que podemos, o que acontece? Nós nos tornamos seres sérios. E aqui eu queria chamar a atenção para uma sutileza. Ser sério não é não sorrir, não fazer palhaçada, não achar graça de nada. Não é dessa seriedade que estou falando. Existe um monte de gente que ri à toa, com o perdão das hienas. Comem merda e estão rindo de quê? Mas riem muito. Sempre retornamos a Nietzsche porque ele foi o que mais investiu na pesquisa, na investigação sobre as formas de entorpecimento do homem. Rir também é uma maneira de se entorpecer. Assim como eu me embriago para esquecer, ou assim como eu me ocupo para não pensar em bobagem, ou assim como eu não faço nada porque dá muito trabalho e eu preciso esquecer de mim mesmo, assim como eu amo ou eu odeio, assim como eu estou sempre me apossando, me apropriando de algum elemento corporal, semiótico, ou sentimental para seguir na vida. São maneiras de esquecer de si mesmo. São trapaças que fazemos com nós mesmos para descuidar da nossa dor e da nossa tristeza. Não usar a nossa dor, não usar a nossa tristeza.
Isso, como diriam os franceses, n’est pas sérieux, isso não é sério. Isso não é uma seriedade interessante. Isso leva para uma seriedade triste. A seriedade interessante não tem nada a ver com o atolamento na tristeza, e, no entanto, ela é sóbria, ela é reservada, ela é profunda. Mas aí você diz “Isso contrasta muito com o humor”. Contrasta. Contrasta porque é como se essa seriedade fosse trágica. E ela é. Ela é trágica, mas… sempre Nietzsche… É Bergson, mas Nietzsche vem para fazer saltar. “O trágico, nem os gregos entenderam”, Nietzche diz isso sempre. Nietzsche se gaba de dizer “Quem entendeu a tragédia fui eu, porque o trágico é alegre”.
Como você vê alegria na destruição? Afinal, o que é a tragédia, senão destruição? Você pega a obra do Fitzgerald. Como diz Deleuze, nunca Fitzgerald foi tão genial quanto no seu último texto, na sua última novela, para descrever a falta de criatividade, a perda do gênio, a perda da vontade, do desejo. Fitzgerald foi genial quando falou sobre a fissura. Algo racha em nós e perdemos a superfície. E aqui é um trágico triste se você não observar o duplo do trágico, o duplo da destruição — assim como esquecemos de observar o duplo do humor. Muitas vezes ficamos com o lado bom do humor, que é o riso, mas esquecemos o lado cruel do humor, que é a crítica e a destruição.
Eu gosto de dizer que o humor é o mais inocente dos assassinos. Viva o humor. E que temos que aprender a amar a destruição, mas a destruição pelo humor. Destruição do quê, exatamente? Daquilo que rebaixa a vida, daquilo que captura a vida, daquilo que fixa a vida. E aí é só começarmos a fazer um exercício cotidiano. Onde somos capturados? Em cada momento da nossa vida, nas pequenas coisas e até mesmo nas que acreditamos serem elevadas, não importa. Nos vários níveis da nossa atividade, nos movimentos que atravessam o nosso corpo, nas nossas sensibilidades, nas nossas sensações, nas nossas paixões, nas nossas emoções, nas nossas memórias, nos usos que fazemos dessa memória, nos vários tempos que nos atravessam, no que é sucessivo, no que é coexistente, na imaginação, na imagem do tempo, na imagem do movimento, na imagem-movimento, na imagem-tempo, nas ideias, nas significações, nas linguagens…
Qual é a presença nossa, quem em nós se apresenta para penetrar em todos esses elementos, nas palavras, nos gestos, nos movimentos, nas sensações, nos sentimentos, nas emoções, quem de nós atravessa isso e dá um sentido? Talvez isso que Maurice Blanchot chama de “o pensamento do fora”. E Nietzsche é o primeiro a arrebentar o pensamento interior, o pensamento da interioridade, o pensamento capturado por uma interioridade ou até por uma falsa interioridade. Por quê? Porque há que ter uma força que se apodera dos elementos que acreditamos serem em si. Uma palavra, uma ideia, uma significação, elas são em si? Não. São sempre equívocas. Por que eu acredito que são unívocas? Por que eu preciso que sejam unívocos uma verdade ou um ideal que eu sigo? Por causa da minha seriedade moral. Por causa da necessidade moral. Por causa da necessidade de um dever-ser sem o qual minha vida não vai sair da merda, não vai se resgatar, não vai ser reconhecida, não vai se empoderar, não vai ter prazer, não vai ser feliz, não vai gozar. Eu preciso da forma do dever-ser.
Quem em mim precisa dessa forma? Que seriedade é essa? Nós precisamos ir mais longe e fazer com que essa seriedade que faz com que o homem jamais ria seja totalmente risível. Como podemos rir disso sem sermos debochados? Sem termos o mau riso do ressentimento? Do tipo “Ah, você achava que era alguma coisa? Você é um bosta igual eu”, ou seja, “vamos rebaixar a vida”. Todo mundo adora rebaixar a vida na medida que não consegue se ligar ao que pode. Não tem como não ser invejoso e não querer que o outro também esteja rebaixado, para poder sentir piedade do outro, mas ai!, qualquer movimento mais libertário que o outro possa fazer, o ódio sobe.
Que ódio é esse? O que nos faz odiar? O ódio vem da tristeza. Mas o que nos entristece exatamente? Há alguma cumplicidade em nós, esta é a pergunta. Ou existe um mal independente de nós? O homem gosta de se acomodar, de sentir que é fácil resolver, acusando um outro ou mesmo acusando a si mesmo. Nietzsche diz “Que nojo, a forma de envenenar a vida”. Mas não é assim tão fácil a questão da abertura. Não é fácil porque não é uma abertura sem critério. “Vinde a mim todo o acaso, mas não de qualquer maneira”.
Em A lógica do sentido, Deleuze, naquele texto sobre o humor, e mesmo sobre a questão humoral nos estoicos, ele vai dizer que há uma superfície necessária, sem a qual é impossível rir. E essa superfície tem um aspecto impassível. Aí você vai ler Bergson e ele diz que você não consegue rir se você se comove, porque aí você vai sentir ou piedade, ou complacência. Bergson não usa essas palavras, aqui eu estou usando um aspecto mais crítico. Porque você tem uma empatia, uma simpatia, ou você ama, ou você odeia, ou você simplesmente se alegra, mas não há aquele humor que se libera. Você é impedido de rir. Para que você ria, é necessária uma espécie de insensibilidade, você não pode ser tocado demais por aquilo. É algo que libera. É como se você tirasse o seu da reta. Eu não estou envolvido, eu consigo rir livremente. “Não diz respeito a mim”. Mas diz respeito a quem? A um grupo, a uma sociedade? Tem um aspecto aí então. O que é o bullying? O bullying é um mau riso, é um deboche, é um rebaixamento, é um enquadramento.
São questões que eu estou levantando porque eu queria entrar mais a fundo a partir de um eixo. E esse eixo é aquele que nos coloca como perspectiva do tempo. Este seria o eixo. A perspectiva do tempo está em tudo, inclusive no sujeito capturado. O que vira a perspectiva do tempo no sujeito capturado? Ele se toma como um começo, como uma origem. Como um indivíduo, talvez, ou até como uma pessoa, ao modo kantiano ou ao modo romântico alemão. Ele já é uma pessoa. Ele saltou do indivíduo e entrou na pessoa. Mas é um começo, ou individual, ou pessoal.
E ele se relaciona com a verdade. Se ele se apreende como pessoa, já tem um isolamento aí. Se ele se apreende como um indivíduo, já tem um isolamento aí. É preciso que ele se religue, se una ao todo. Ele é uma parte que busca o todo. Ele é um indivíduo que busca o coletivo. Ele é um elemento isolado que busca se associar. Ele busca isso. Ele busca uma verdade, ele busca uma significação.
Nesse texto sobre o humor, Deleuze fala sobre a origem da linguagem, este é o problema de Deleuze ali. E os linguistas ficam rodando em círculos. Dizem que a linguagem começa com a significação, porque há uma verdade que temos vontade de falar. A verdade é a causa da linguagem. Ou então ela começa com a designação, eu aponto isso, aquilo, eu nomeio, eu indico. Essa é outra dimensão da linguagem. São os estados de coisas, as coisas, os objetos. Mesmo o meu corpo, meus estados físicos, são designações. Mas existe aquele que fala, que começa a falar. Seriam as subjetivações. Deleuze chama de manifestação. O que se manifesta, esse quem manifestante, o sujeito de enunciação, o que começa a enunciar, a falar. Esse sujeito é um indivíduo. Esse sujeito é uma pessoa. Ele começa.
Qual é a origem da linguagem? É a significação? A verdade ideal, a altura platônica? É a designação do mundo, ser no mundo, o meu corpo que faz parte do mundo? Ou é o espírito? O sujeito? O Eu? Deleuze diz que não é nada disso. Não é nem a significação, nem a designação, nem a manifestação. Nem o sujeito, nem o objeto material, nem o objeto ideal, poderíamos dizer assim. É o sentido.
Mas o que é o sentido? Não é o sentido sensível, ainda que tenha sentido no sensível, claro. Está cheio de sentido no sensível. Mas o sentido é essencialmente incorporal. O sentido implica um vazio, ele implica um não alinhado, um não formalizado, um não estratificado, um não formatado, um não figurado, um não imaginado, um não marcado, antes do designado e do designante, antes do manifestado e do manifestante, antes do significado e do significante. Antes disso, o sentido é linha de acontecimento. O sentido é sempre sentido de acontecimento.
Mas o que é o acontecimento? O acontecimento é alguma coisa de impalpável, do ponto de vista do corpo. Nós não pegamos o acontecimento e, no entanto, é algo extremamente real. O acontecimento corta como navalha. Tem o antes e o depois do acontecimento. O acontecimento corta. Há um acontecimento, e ao mesmo tempo em que ele corta, é como se ele estivesse sempre chegando, mas nunca chega; e ao mesmo tempo como ele já tivesse acontecido. Já aconteceu e ao mesmo tempo ainda está por vir. É uma dimensão vazia.
O que é o vazio aqui? É o sem forma. O sem sustância, o sem estado de corpo, o sem estado de coisas. É o liso, o que Deleuze vai chamar, no Mil Platôs, de superfície lisa. O acontecimento e o sentido são lisos. E o sentido nunca é o bom sentido ou o mau sentido, mas, se eu estou separado do que posso, eu não vou escapar do bom e do mau sentido. Eu sou um indivíduo, eu sou um sujeito que começa a falar. Eu sou uma realidade? Sou, mas eu preciso encontrar a verdade que me integre ao todo? Preciso. Eu preciso encontrar o universal que unifica a minha parte ao geral. Esse universal que eu sou, essa forma de verdade, essa altura.
E para que isso serve? Isso serve para aquele que vive separado da potência de acontecer, separado do acontecimento. Aquele que está impedido de se apresentar enquanto acontecimento de si mesmo. Ele está fixado em alguma coisa, está atolado em alguma coisa. Então não é a presença do devir no acontecimento, não é a presença do fluxo no acontecimento, não é a presença do tempo ou da duração no acontecimento; é a presença de um estado no acontecimento. É o estado que esquadrinha o acontecimento, é o estado que estria o acontecimento, que formaliza, que formata. É o estado que interpreta o meu fluxo, o meu afeto, como um sentimento. É o estado que projeta no mundo a causa do meu sentimento — de alegria ou de tristeza, por exemplo —, e identifica se é tristeza, para afastar esse objeto. A seriedade do ódio.
Eu estou analisando essas coisas porque não é muito fácil pensar o humor, distingui-lo em seu elemento puro para separá-lo da ironia (e ver os vários tipos de ironia que há), mas separá-lo principalmente do deboche ou do mau riso, e desvinculá-lo do riso fácil das aparências. Afinal, não é gargalhar simplesmente. É claro que as gargalhadas, até as mais silenciosas, são as mais interessantes, talvez. Mas aí é um falso problema se a gargalhada fica em silêncio ou não. Às vezes é muito oportuno não expressar a gargalhada, mesmo rindo muito.
Deleuze diz assim, “É curioso como as pessoas leem Kafka ou Beckett”. Elas choram, se entristecem demais, e elas se afundam em uma compaixão. E, a meu ver, é impossível, se você está entendendo Kafka e Beckett, é impossível lê-los sem rir, e rir muito. Se você vai ler Nietzsche, nossa, o Zaratustra o tempo inteiro te chacoalha por dentro, mas você não precisa sair às gargalhadas, rir e expor isso. Você pode até fazer, mas o que eu estou dizendo é que esse elemento é extrínseco ao humor. Então é como representar intensidades. Às vezes eu faço críticas a certos teatros que são muito intensos, mas essa intensidade é um… você tem que mostrar que você é muito intenso. Isso não é intensidade. Pode até ser, mas não necessariamente. Geralmente não é. Mas não por aí que você avalia se é intenso ou não.
Não é pelo riso fácil que você avalia se tem humor ou não tem humor. “Ah, o cara é mal-humorado, está sempre de cara fechada.” E quem disse que ele não tem um humor fino? Esses elementos são propriedades extrínsecas, como o riso, simplesmente. Há um riso da força. Há um riso da potência. Há uma alegria. Como você pode se alegrar com a dor? É porque a dor e a tristeza são caminhos do desejo, que são necessários percorrer. Se você não percorre, se você não dura, se você não rumina aquilo, se você não deixa aquilo te invadir, se você não vivencia aquilo porque tem piedade de si mesmo, você está desperdiçando. Não só desperdiçando como dando o primeiro passo para virar um trapaceiro. O primeiro passo é não usar a tristeza no sentido de encontrar a força real que é uma potência.
O que causa tristeza não é o mal. Spinoza já dizia, “O mal é sempre uma potência maior que vem de fora e que me coage”. Isso é o mal. Ora, e por que eu não sou capaz de admirar uma potência maior? Assim como os gregos admiravam Helena, que era a causa da tragédia e da guerra. Nietzsche cita esses gregos como aqueles que têm saúde suficiente para poder admirar o inimigo, e se sentirem no mínimo provocados pelo inimigo. Como diz Don Juan Matus, na obra do Castañeda, é muito interessante quando você encontra um tirano. Hoje em dia você não encontra nem pequenos tiranos. São ridículos os tiranos. Mas quando você encontra um grande tirano, que sorte que você tem, que presente que você tem. É a sua provação, porque aquilo é uma potência, de alguma maneira. Tem potência lá.
Deleuze diz que, se não fosse filósofo, gostaria de ser uma carpideira. E aí você diz, “O que esse cara está falando?”. Carpideira? O que faz a carpideira? Chora. Chora a miséria dos outros, a morte dos outros. E aí você entende que é a necessidade do devir imperceptível, da proteção do nosso bebê, da proteção daquilo que está nascendo em nós. Por quê? Porque o que está nascendo em nós pode sofrer uma overdose. Pode ser assassinado, pode ser abortado, pode ser um natimorto. Então eu preciso lamentar as potências que me ameaçam com máscaras. Por que máscaras? Porque você tem que se preparar para se relacionar com as potências. Não é de qualquer maneira que você vai.
O moralista é aquele que não consegue enfrentar as paixões. Ele vai ver na paixão um mal. A paixão só é má quando eu estou fixado nela. Aí é, aí ela vira má. Por quê? Não é para você ficar na paixão, a paixão é uma passagem. Ela é boa como passagem. Eu posso aproveitar a paixão, mas eu tenho que transmutar. Eu tenho que encontrar a força que causou a paixão. O que é uma paixão? A paixão é efeito de uma força exterior que submete uma força interior, se quiser. Uma potência de fora que, no encontro, me coage a sentir, a agir e a pensar desta ou daquela maneira. Eu estou na paixão. Mas eu que aprenda a admirar a potência que me fez isso. Não é o mal, é a potência. Eu que aprenda a admirar a célula que se divide e produz um câncer na vida. Aquilo é admirável. É admirável um vírus ou uma bactéria. São potências.
A condição para eu não moralizar é transmutar essa visão de que o mal seria uma substância, mas o mal, na verdade, é um mau jeito, é uma má perspectiva, é uma má maneira de perceber o que me decompõe, o que me ameaça, o que me destrói, o que eu não suporto porque ainda não estou suficientemente trabalhado ou preparado para me relacionar com aquilo.
Por que eu não aproveito e faço igual no Tai Chi? Aproveito a força que vem de fora e uso aquele movimento para inventar um golpe ou inventar uma saída. Eu aproveito a força. Na paixão tem força, não tem o mal. Só é mal quando eu não uso a força. Por que eu quero eliminar a paixão? Por que eu quero eliminar a doença? Por que eu quero eliminar isso que está me entristecendo, sem experimentar? Peraí, você tem que experimentar antes. Por isso é bom o silêncio, é boa a não tagarelice, são boas as não respostas precipitadas, as não determinações. “Ah, já tem resposta para tudo”. Não tem resposta, é bom ficar na ambiguidade, na claudicação, no vacilo. Desde que esteja acordado, claro, senão você seria um vacilão. Mas é bom permanecer. Como diz Nietzsche, leva tempo para chegar ao fundo uma pedra que é lançada em um poço profundo. Leva tempo. Ou seja, tem que durar em nós. E assim como temos que ruminar as ideias, as palavras, temos que ruminar os sentimentos, ruminar os afetos, ruminar os movimentos, saboreá-los, fruir deles.
O que é fruir? Ao mesmo tempo em que aquilo me atinge, eu me lancei, algo se passou, o que eu faço com isso que se passou? Eu acho que aqui está o segredo. Só conquistamos o humor quando somos capazes de criar as condições para usufruir o mal que nos acontece. Aí somos capazes do humor. Senão, não chegamos a ultrapassar a ironia.
E o que seria o humor na dança? A dança tem que ter muito humor. É impossível você dançar de modo livre se não tiver humor. O que seria então o humor? Às vezes temos muito humor, mas não sabemos apreendê-lo. Ele é intuitivo em um sentido vago, ele passa, ele atravessa, mas às vezes você pode exercer uma conquista aí, extrair mais humor dos movimentos. E o humor implica leveza.
Ficamos inventando títulos para esse encontro. Depois eu virei para a Key e disse assim, “pode ser ‘O humor como libertação de si’”. A libertação de si não como libertação do Eu ou do indivíduo, mas como libertação das potências em nós, ou das potências da vida, como a libertação da vida em nós. O humor como libertação da vida. E aí criamos dois enunciados como subtítulo: “O humor como a mais amorosa das crueldades”, e “O humor como a mais alegre das criações”. O libertário ficou no primeiro título. Então, a alegria, a amorosidade junto com a crueldade, e liberdade.
O humor tem um elemento crítico destruidor essencial. Mas aí é preciso focarmos. Em que deve incidir esse humor nobre, que destrói, mas que destrói de modo inocente? Assim como o leão de Nietzsche diz “não” ao que rebaixa a vida, o humor tem um aspecto leonino, o humor é leonino. É o leão que urra, que diz não ao não. Não ao modo hegeliano, obviamente. Não é a negação da negação no sentido hegeliano. A negação da negação no sentido hegeliano simplesmente é o “Eu não sou o outro”. Então, para me afirmar, eu nego que eu sou um outro. Eu nego que eu não sou eu. Esta é a negação da negação em Hegel.
Aqui a negação é o contrário, é a negação do que me desqualifica. E o que importa eu dizer que eu não sou um outro? Mas o que eu sou? Aqui tem uma positividade, então não é uma generalidade. Hegel chamava isso de o universal concreto. Mas eu quero saber o que é singular, e não o universal concreto. O singular é uma força real e imanente.
Então, o aspecto crítico do humor é o retorno do humor. Eu dizia antes, o sentido é que está embaixo da designação, da significação e da manifestação. E o sentido não é intencional, não é um bom sentido, a não ser quando estamos capturados. Aí ele vira um bom sentido ou um mau sentido, um sentido em uma única direção. O sentido necessariamente tem uma dupla direção. À medida que vai, retorna, e eis o humor. Eis o que me faz entender o elemento humorístico.
Deleuze cita os pré-socráticos, os estoicos e Nietzsche. Nietzsche mesmo vai dizer que ficam se lamentando que os pré-socráticos não deixaram quase matéria, os textos dos pré-socráticos que foram perdidos, ele diz “me dê só três elementos pré-socráticos”. “Me dê um aforismo sobre o lugar, me dê um aforismo sobre o tempo”, onde e quando. Lugar e tempo, aqui e agora. E “me dê o elemento, um aforismo sobre o elemento”. Em Péricles, o fogo e sua sandália de chumbo, por exemplo. Formam aforismos do pensamento e anedotas da vida. E o mesmo enunciado, o mesmo problema tem um aspecto que é um aforismo do pensamento, no sentido de que ele é uma colocação problemática do pensamento e, ao mesmo tempo, aquilo implica a vida como uma anedota, como um riso. Ora, esse pensamento é um riso da vida.
Esse pensamento é a verdade platônica? Ora, e o que eu me torno ao me relacionar com essa verdade? Ou seja, eu estou implicado. A potência está implicada, a força está implicada. Então, se eu não apreendo esse duplo aspecto, essa dupla face do humor — assim como em tudo tem essa dupla face. E isso é o sentido sob as formas da linguagem e sob as formas do movimento. Esse sentido é uma linha que ao mesmo tempo vai e vem do passado, e vem e vai para o futuro. Essa linha tem esse duplo sentido. Então, à medida que vai, eu vou até onde? Eu vou até as alturas platônicas? Platão nos convida, Sócrates já inspirava e Platão vai fundar a escada. Sócrates diz assim, “puxa, tem algo lá em cima”. E é aquilo que vale, ele que inventa a questão sobre o que é a essência de alguma coisa. A essência de alguma coisa é a verdade absoluta da coisa, a realidade em si da coisa. Mas e essa aqui? Essa não é a verdade verdadeira da coisa. A verdade está lá. É ideal. E, se é ideal, não está na existência, está lá nas alturas. É pura? Independentemente da matéria, do tempo, do espaço, não tem nada. Ela é pura, ela está nas alturas.
Sócrates nos inspira a subir, e ele ironiza. Ele pega um sofista, pega não sei quem, e ele estabelece um diálogo, e vemos muito isso nos diálogos platônicos. Ele nos dá a mão e vai levando, “ah, mas o que é isso, o que é aquilo?”, e aí, chega na hora da resposta, um ser mundano qualquer diz assim, “você quer saber o que é beleza? É o cavalo de Alcibíades. É a panela que cozinha feijão”. Sei lá o quê, não importa, ou a estrela, ou o sol. E aí Sócrates ironiza. O que é ironia? É “eu não te perguntei o que é este ou aquele objeto, esta ou aquela verdade, esta ou aquela beleza. Eu não te pedi para designar um objeto no mundo, apontar para um corpo ou para uma coisa. Eu te perguntei o que é a realidade em si.” É esta pergunta que Sócrates inventa.
Nietzsche vai lá e enraba Sócrates. “O que você quer, Sócrates, ao querer saber o que é?”. Nietzche detecta um corpo cansado, doente, triste e desistente. Há, como diz Deleuze, uma espécie de suicídio depressivo no assassinato de Sócrates. Porque Sócrates é condenado a beber cicuta, mas ele podia fugir. Aquilo não era tão verdadeiro assim, e ele não foge. Ele fica na prisão. Trinta dias ele tinha para fugir. Tem um suicídio, ele tinha já 70 anos, estava cansado da vida. Aproveitou aquilo.
Por que Sócrates quer subir? Porque ele perdeu o que está aqui. E o que está aqui? É a superfície. O que está aqui? São as relações. O que está aqui é essa abertura imediata que inaugura a minha existência, me faz existir e ainda me propõe problemas, porque você não vai existir de qualquer maneira. Se você se meter a besta e se abrir de qualquer maneira, você vai levar porrada. A vida é cruel, a vida é dura. A crueldade, a dureza da vida, o que faz sofrer é, para quem sabe ver, na pior das hipóteses, uma provocação; e, na melhor, um excitante, um tempero. A dor é um tempo. Nunca ela é má. É impossível eu ter humor se eu interpretar a dor, a imperfeição, como males na essência. O que é o mal? O mal é sempre uma potência que me excede, portanto é uma presença, é uma afirmação e não uma negação, que difere de mim e que eu não suporto, por quê? Porque eu não estou preparado para me relacionar com aquilo. Aquilo tem outras velocidades. Aquilo tem outros tempos. Aquilo tem outras maneiras que não se compõem com a minha.
O que faz um ressentido? Um ressentido recebe o golpe e não consegue. O que ele não consegue? Fazer três coisas: ou devolve, manda embora de volta, “Não quero isso agora, isso não me serve para nada”. Vomita, engole uma coisa, teve indigestão e vomita. Ou então passa mal, mas com muito custo você absorve aquilo, digere e vai virar uma coisa no seu corpo. Vai virar cálcio, potássio, sei lá que coisa vai virar aquilo. Você cozinha esse acaso. Ou, se não tiver como vomitar nem digerir, isola. Ou seja, não deixa que aquela paixão tome conta de toda a sua vida. Não deixa que aquela ingestão se torne dominante como lente para interpretar você mesmo e interpretar o mundo e as relações. Ou seja, para que ela não vire uma condição necessária para eu exercer o juízo ou o julgamento que envenena a vida, dos outros e a nossa.
Por quê? Porque se eu não consigo vomitar, nem digerir e nem isolar… o que é não isolar? Aquilo toma conta de mim. Toma conta de mim, e aí olha que interessante, aqui é risível se eu usar o que Bergson fala sobre o elemento do isolamento. É necessário um isolamento para que haja matéria de riso. Aquilo que eu não consegui isolar me isola. Pronto. E eu vou me endurecer de qualquer maneira. Alguma coisa vai se enrijecer em mim. Então eu não consigo tratar aquilo. Mas ainda dá tempo, mesmo que tenha tomado, porque aí, sim, eu posso procurar um analista, eu posso procurar um refúgio, ir às montanhas, um ayahuasca, sei lá o quê. Eu tenho que me permitir, porque acontece.
Mas, nas vidas mais saudáveis, o ressentimento dura pouco. É como diz Nietzsche, ele não nega os hábitos. Hábito é bom, desde que seja por pouco tempo. São automatismos que liberam a vida. E o ressentimento às vezes é um presente. Aliás, não tem outra maneira de sair do ressentimento de modo nobre e livre, é fazer do ressentimento um presente. É um castigo, não tenha dúvida de que é um castigo. Você é castigado, você é humilhado, você é rebaixado. Você se atola, você se bloqueia, você quer bloquear a vida. Não existe outra realidade.
E aí diz Nietzsche… sempre ele. Era sobre Bergson, mas Nietzsche vem. Ele diz que uma das regras… tipo, “Você quer uma regra para bem viver?”, diz ele, “Elimine os meios quereres”. Então, não queira pouco ou pela metade. Porque aos meios quereres correspondem os pequenos prazeres, os mesquinhos prazeres. Que são o quê? Formas de fugir de nós mesmos, de nos anestesiarmos. O prazer real, antes de ser prazer, é intensidade. Aí eu estou fruindo, me preenchendo de intensidade. E a intensidade é uma força, não é uma anestesia. Eu estou criando força em mim.
Mas, para que haja intensidade, eu tenho que intensificar a intensidade que eu sou. E quem intensifica a intensidade que eu sou? Uma espécie de conexão com o infinito. Que coisa misteriosa. Conexão com o infinito, como assim? É relativamente simples, apesar de ser complexo. É você levar aquilo até o fim. Você está errado, você está na ficção, você está na ilusão? Beleza, pega o seu fantasma e leva ele, faz dele o seu companheiro. Mesmo que seja um morto vivo que você carrega, e que você fique muito cansado ao final da jornada, você tem uma noite para descansar. No outro dia, pega seu morto de novo e vai. Você vai dar um bom destino para ele, vai enterrá-lo. Ou seja, você vai cuidar da sua memória. Dar um bom destino para a morte ou para o morto, para aquilo que morre em nós — porque aquilo fica. Aquilo é como um ressentimento, fica lá regurgitando.
O que é o ressentimento? Eu não cheguei no quarto elemento, né? Então, se eu não vomito, se eu não digiro, se eu não isolo, aquilo toma conta de mim de que maneira? Como isso opera? É o regurgito. Eu sinto, atolo, empaco e ressinto a partir desse empacamento, dessa mesma ótica, dessa mesma forma, e eu não consigo dissolvê-la em mim. Uma pedra no rim que não quebra. Não tem bolsa de água quente que rompa com essa pedra. Bolsa de água quente, olha que interessante. Podia andar junto com um maçarico. Botar um maçarico nessas cristalizações. Botar fogo, tornar líquido de novo, fazer fluir. Aqui está a cura: fazer fluir. Mas como se faz fluir? Pega o significado e transforma em sentido. Pega o designado do estado de coisa ou de corpo e faz daquilo um movimento. Não um deslocamento, mas um movimento intenso. Pega o desejo subjetivado, que está na falta, e reencontra o corpo sem órgãos nele, reencontra o acontecimento que acende o desejo, e não o objeto que falta. Sai do objeto, se liga no acontecimento. É difícil? É, é bem difícil. Às vezes isso pode levar dez, quinze, vinte, trinta anos para se libertar de um tipo (porque temos vários ao mesmo tempo). Às vezes nos libertamos de vários e de outros, não.
Como eu consigo romper a bolha? Talvez seja isso o que Nietzsche chama de super-homem, de além do homem. Romper a bolha é: se isso me chega, eu sou capaz de rapidamente, mesmo que eu chegue a me ressentir, fazer disso um fluxo. Talvez esse seja o super-homem. Aquele que não vive nas marcas, que não deixa durar quase nada, o mínimo de coagulação, e que é muito sensível. É como um corpo muito sensível que sente uma brisa suave que ninguém percebe. Ele já sente, ele se antecipa. Ele já tem essa memória de futuro, ele é capaz de criar esse corpo com uma potência de ser tocado por todo modo de vida, por todo modo de movimento, por mil nuances. Ele é um ourives, ele tem uma sensibilidade fina. E aí ele é capaz de se prevenir, de antecipar e aí sim, aí o riso vem antes. “Haha, você quer me pegar. Alguma coisa quer me pegar.” E então você começa a… qual seria a resposta mais interessante? Não precisa falar nada, você pode dançar. Fazer a potência dançar. E aqui eu estou chamando de dança, claro, uma coisa bem ampla.
O que é a dança? A dança é uma nuance. A dança é a criação de estância. A dança é o ritmo. A dança é a distância e a força. E a força está em relação. Se está em relação, a distância está variando. Então as variações na distância. A distância como distância no tempo. Existe distância no espaço? Claro. A materialidade que é atravessada pelo tempo que dura, ela é uma distância também material, também uma distância de movimento. O que é distância de movimento? Implica um intervalo. Como diria Bergson em Matéria e memória, o que nós somos? Nós somos um intervalo. Nós somos um ecrã, uma tela negra. Nós somos um buraco negro, diria o Anti-Édipo e o Mil Platôs.
Mas o que é o buraco negro? Há muitas maneiras de se ver o buraco negro. Há aquela dos físicos, interessante, que diz “Como eu entro em um buraco negro? Por velocidade. E como eu saio dele? Por velocidade.” Então um buraco negro não é o abismo, a perdição, o mal, mas o buraco negro da subjetividade recalcada, moral, aquela que está separada do que pode, aquela vida que está separada do que pode, é de fato a morte. É a depressão, é o não desejo. É o espírito de realidade, o demônio que puxa para baixo. Aquilo que, na passagem, faz com que a passagem vire um passado que pesa. Mais do que me libertar para a dança, pesa. Eu não consigo dançar. Eu não consigo rir.
O que me faz dançar? O que me faz rir? O que é o riso? O riso é uma saúde. Mas qual riso? Esse que destrói amorosamente. Por que amorosamente? Porque ele destrói o que odeia a vida, o que nega a vida. É isso o que ele destrói. É um amor maior, um amor cruel e não um amor piedoso. Não tem piedade pelos nossos atolamentos. Nós temos que ser impiedosos. Ímpios, naturezas ímpias com os nossos atolamentos.
A pena de si é o pior dos sentimentos, junto com a complacência, junto com o direito ao prazer ou o direito à felicidade. São as nossas pegadinhas. É por onde mordemos a isca. É o mau uso da tristeza e também da alegria. A complacência é o mau uso da alegria. E a piedade é o mau uso da tristeza.
Tristeza? Suspende. Não queira logo ficar alegre ou ficar feliz. “Poxa, muda aí, vira o disco, vamos lá nos divertir, bebe uma”… Beleza, é o que 99,9% da humanidade faz, geralmente. Doença? Remédio logo. Mas quem disse que a doença não era uma provocação, uma experimentação? Por que não ficar um pouco mais doente? Por que logo tomar remédio? Tudo bem, tem que ter as doses. Você também tem que ter a sensibilidade, senão você pode até se matar, mas enfim. São outras questões.
Mas proibir a experiência por causa de um cagaço, de um cu na mão, de uma covardia? O que nos torna covardes? A descrença. Por que desacreditamos? Porque não se apresenta em nós, mais. O quê? As forças que nos constituem. E o que falta a elas? Nada. Falta a elas se conectarem de novo com o acontecimento que faz delas uma força. O que é uma força? Uma força é uma realidade em relação. Ora, se ela está separada da relação, ela vira uma substância. Se ela vira uma substância, ela vira um peso também. Uma substância viciosa ou uma substância virtuosa, aí o Eu moral como um virtuoso e o Eu trapaceiro ou transgressor como vicioso. Mas são substâncias em mim, não são forças. Por que eu não permaneço na tristeza para dizer assim, “bem-vinda, força que me entristeceu”? Por que me entristeceu? Foi mais veloz, foi mais rápido, pegou de mau jeito. Não tinha superfície ainda para fazer a conexão. Invadiu o meu respiro, me sufocou. Entupiu. Não deu tempo. Me afoguei.
A suspensão é uma arte, e é para quem pode. Tem que suspender. Tem que poder suspender, mesmo que, aos olhos do outros, você vire trapo. Não importa. Você tem que ser capaz de suspender. Para quê? Para se trabalhar, para fazer de si um laboratório. Para se perceber. Diz Nietzsche, “Nós, homens do conhecimento, desconhecemos a nós mesmos”. Por quê? Nunca nos procuramos. Por que nunca nos procuramos? Quem em nós procura? É o ser formatado, é o sujeito, é o estado em mim que procura. Ora, o estado nunca vai encontrar o que ele não é. E o que o estado é? Ele é fluxo cristalizado. O sujeito em mim, que é um estado em mim, é um fluxo cristalizado. É com esse fluxo cristalizado que eu vou conhecer as coisas. Eu digo “não, eu me procuro também, eu investigo a mim mesmo”. Mas eu estou me procurando com esse órgão estratificado, com esse aparelho de julgamento, com essa inteligência sólida. Eu não estou me procurando com o fluxo que eu sou, com a linha de tempo que eu sou. Por que não é a linha de tempo que conhece as outras coisas como linha de tempo que ela também é? Aí ela vai entender que há algo de comum nas linhas de tempo, uma duração absoluta para todas as outras durações. E é esse ser comum das durações que faz com que as outras durações ressoem em mim. Eu posso ser sensível a outros modos de viver, e saber que o outro modo de viver é uma potência, por mais frágil que seja, que quer acontecer sem finalidade. Não espere do outro modo que ele aja de acordo com o que você precisa.
É difícil? É difícil, é bem difícil. No nosso dia a dia, é complicado. Por quê? Porque nós nos organizamos de um jeito tal que esperamos o gesto do outro, a direção do outro, aquilo que faz bem para a nossa vida. A nossa organização é como um hábito. Precisamos daquela organização para ir além por motivos interessantes. Mas é uma espécie de sonolência, por quê? Porque o futuro bate à tua porta o tempo inteiro, e às vezes como força diabólica. E o diabólico é mal? Não, com o diabólico temos que fazer igual à serpente de Nietzsche: “Obrigado, dona serpente, por ter me picado e me despertado, porque meu caminho é longo”, diz o Zaratustra para a serpente. E a serpente olha para Zaratustra e diz assim: “É longo nada, porque meu veneno mata”. Aí Zaratustra diz: “Onde já se viu um dragão sofrer do mal de uma serpente?”, algo do tipo. “Toma de volta o veneno que eu achei que você tinha dado de presente a mim. Toma de volta. Você não é suficientemente generosa para dá-lo de presente a mim.” E a serpente vai e lambe o pescoço do Zaratustra, chupa todo o veneno de volta, porque ela precisava daquela mesquinharia, daquele mal pequeno que para ele foi um bem.
Difícil ter essa ótica, né? Porque não é uma intenção, não é “Ah, então eu vou ter essa consciência intencional”. Não, às vezes você tenta ter essa consciência intencional, aí vem o destino e te dá uma rasteira. Por quê? Porque não se trata de ideia, se trata de força. Ou a ideia como força, aí sim. Ah, é só uma anedota, uma parábola? É, mas aquilo é um campo de força, aquilo é um aforismo. Então existe um retorno sobre a vida.
Eu queria voltar um pouco, para fazermos um movimento talvez um pouco mais didático, não sei. O que vocês acham do jeito que eu estou expondo? Tá rolando? Dá para entender?
Eu acho que daria para focarmos um pouquinho na questão da seriedade. São dois tipos de seriedade: a seriedade do homem moral, triste, trabalhador; e a seriedade do jogo de criança. Nietzsche cita Heráclito, o que é a natureza? É uma criança que brinca. Ela é o tempo, o aion. Uma criança que brinca mexendo as peças do jogo para lá e para cá. É um brinquedo de criança.
O que há de interessante nessa visão do jogo, que não tem nada a ver com a visão do trabalho ou da luta? A luta é uma luta contra, o trabalho é “vai dar certo, trabalha aí que vai dar certo”, você carrega… Claro que existe um trabalho que não é esse trabalho triste de carregar. Aí chamamos de atividade, criatividade, produtividade, enfim, não importa. Você está no laboratório, e aí pode até chamar de trabalho, mas é de outras coisas que estamos falando. E tem o jogo. Então, ou você luta contra as trevas, luta contra a noite, luta contra o caos, luta contra a impotência, luta contra a tristeza, luta contra a injustiça, luta contra a mentira, luta contra o nocivo. É uma luta. E como você luta? Com armas, você cria armas. Sócrates inventou uma arma muito importante: a do ideal. O ideal é uma arma para se lutar contra isso que entristece a vida, isso que faz com que percamos a brincadeira, saiamos do jogo e aprendamos a apagar a fogueira ou vender o almoço para comprar a janta, aprendamos a sobreviver, apenas. Porque é mais importante se conservar e depois, talvez, possamos ser um pouco mais livres.
Então, essa desistência, esse conformismo é uma seriedade. A vida é séria? Como diz Nietzsche, hoje em dia usamos a razão como se a razão fosse natural ou como se ela fosse aquilo que menos tem a ver com violência, aquilo que menos tem a ver com as paixões. A razão pura, neutra, imagina? A razão de um juiz, ele julga imparcialmente, é neutro. E ele diz, quanto sangue, quanta crueldade precisou para que alguns “sins” e “nãos” fossem selecionados, e os homens se atentassem para isso, tivessem medo de certos nãos e esperança de certos sins, e se pusessem a racionalizar as coisas. Que campo afetivo tem embaixo da razão?
E Nietzsche diz que isso é uma seriedade. Quando você tem um costume e uma solenidade, você diz “Ora, aqui teve muito sacrifício.” Abraão sacrificou o filho. Agamenon sacrificou Ifigênia. Tem muito sangue, muito holocausto para conquistar a neutralidade pacífica e civilizada, não violenta. Somos humanistas, odiamos a violência, adoramos a paz. A coisa mais hipócrita hoje em dia é que a paz é elemento da guerra total. Nós estamos em uma guerra total, em paz. A paz é a condição dessa guerra sem tréguas e total que nós vivemos. Qual é a guerra total que nós vivemos? A do ressentimento generalizado. A política é a política do ódio, seja a social-democrata, seja neoliberal, seja socialista. As várias políticas que se imprimem através dos vários estados têm pressuposto o rebaixamento do homem.
É como se houvesse necessidade — claro que não dá para generalizarmos, estou dizendo aqui o que é dominante, e o que é dominante é o rebaixamento necessário para daí oferecer o empoderamento. Deixa o impotente… mas a saída é empoderamento. Como? Não é de qualquer maneira, não. Nem a moral é de qualquer maneira. É se rendendo, se rebaixando, aceitando.
Que seriedade é essa? É a seriedade triste. É a seriedade hegeliana. A do trabalhador dialético. Essa seriedade. E mesmo a seriedade do Sócrates. O pesadume, a depressão. Ou a seriedade schopenhaueriana. A seriedade kantiana, não há dúvida, é uma seriedade.
Contra essa seriedade ou a favor dessa seriedade nós usamos o humor? O humor estabelecido, dominante, ele está para reforçar essa seriedade. É mentira que ele é uma alegria livre. É mentira, porque ele tem raízes a partir dos valores estabelecidos. Ele ri do que não se acopla, do que não se adapta, do que não se liga, do que não se conecta, do que não se inclui nessa máquina ou nessa formação social, ou nas várias formações sociais. É disso que ele ri. O riso é função da moral. O nosso maior inimigo não é a religião ou o estado ideal, nosso maior inimigo é a moral em nós. O nosso inimigo maior está dentro de nós, é a nossa moralina.
Então é preciso detectarmos a nossa seriedade. E como o riso salta nesta sociedade? Para reformar. Se ele não reforma, no mínimo ele rebaixa, ele humilha. Para dizer assim, “se humilhe”, para daí você fazer a lição de casa. Qual é a lição de casa? Você se tornar “um dos nossos”. Você ser um cooptado. Você é um bosta, você não é nada. Mas mesmo você, cooptado, você, um bosta, é mais bosta ainda por ser um cooptado. Porra, aí que você virou um bosta total. Não “aos nossos olhos”, não aos olhos do establishment. Você é um dos nossos. E se agora está difícil, daqui a pouco vai ficar bom. Você vai ver, tenha fé. Vai chegar lá.
A questão é: o riso te faz ressentir, ou te entristece, ou te humilha? Que tal aproveitar? “Você é um bosta.” “De fato, eu sou um ninguém.” Não o zé ninguém do Reich, um ninguém no sentido de que não tem ego, não tem posição de desejo para desejar, foda-se a porra da minha imagem, o que quiserem falar ou pensar de mim. Quem me conhece? Quem sou eu? O que se passa em mim? De que maneira isso se acopla ou se relaciona? O que importa o espelho a esse que faz de si um laboratório? Ele não daria um passo se ele se olhasse no espelho antes. Ele daria, sim, mas sempre com a conformação. Aí, que passo é esse? Na dança, talvez seja o passo do ballet, por exemplo, não sei. Com o perdão do ballet, com o perdão do que há de interessante no ballet, mas você não dá um passo sem mediação da forma?
Por que você não se experimenta em linha aberta? Ah, porque não é fácil se experimentar em linha aberta. Porque, para se experimentar em linha aberta, você precisa conquistar a espessura do acontecimento, senão você se chafurda na vulgaridade. Você se torna um trapaceiro de outra espécie, que é como, “Eu me abro, eu me misturo”, mas a questão é a mistura? É, a questão é a mistura, mas que mistura? É a mistura sem a confusão, a mistura com composição, é o refinamento das linhas diferenciais. E, para refinar as linhas diferenciais, eu tenho que ter um elemento que diferencia, que corta finamente. Qual o corte mais fino que existe? O do tempo, o do acontecimento, o desse vazio impreenchível. E que bom que ele é impreenchível. Que respiro, porque nada vai entupi-lo.
Tem alguma coisa na realidade que não se deixa preencher, que não se deixa entupir, que não se deixa formatar. É isso o vazio do acontecimento. Se não tiver esse vazio… esse vazio jamais é o nada. Como dizem Epicuro e Lucrécio, “Foi por não ter reconhecido a realidade do vazio que nós nadificamos tudo”. Tudo virou nada. Tudo virou banal, e o acontecimento também. O acontecimento como mero acidente, fato, casual. O que é o acontecimento? O acontecimento é aquele vazio sem o qual não há invenção, não há produção de realidade, não há criação. Ora, é a própria fonte, o vazio é condição de criação. O vazio é o não-senso do senso, é o provocador da invenção do sentido. O vazio não é falta, o vazio é uma presença. É aquilo sem o que o acontecimento se efetuaria e se encerraria, fecharia ali. Aquilo sem o que o finito seria mortal, não se ligaria ao infinito. E o efetuado do acontecimento se confundiria com o acontecer do acontecimento. E, uma vez efetuado, não tem mais nada para acontecer.
Ora, eu tenho que aprender a me relacionar (e isso que é conquistar a superfície) com o elemento inefetuável do acontecimento, mesmo que eu me efetue nele. Mas eu tenho que fazer no mínimo coexistir a efetuação com a contraefetuação. Assim como o arqueiro zen vai dar um tiro de arco e flecha, mas ele também é um não-tiro. Tem o alvo, tem o caminho da flecha, tem a flecha, tem o arco, e tem ele. E ponto. Ele como ponto e a contraefetuação. Ao mesmo tempo que vai para o alvo, volta para quem está atirando. Isso é o sentido. O sentido é intensivo, ele retorna sobre si. Isso que é o eterno retorno do sentido. Isso que é a capitalização da força. Não um lançar-se, não é um desperdiçar-se, não é um se efetuar para se esgotar. Como um major que reage, diz “vamos costurar os órgãos”. Os órgãos querem se efetuar de que maneira? Eles querem se preencher, como eles se preenchem? Com objetos exteriores. Com prazeres extrínsecos ao desejo. E bloqueia isso, por quê? Porque está indo e eu estou virando trapo.
O que faz com que eu mantenha o arco tenso? A vontade de efetuar, desde que haja contraefetuação. Então eu não vou em uma linha só. Eu não estou me efetuando e “foi”, vira memória e um nível de vivências. Eu tenho todo o meu passado, a minha história, e viro uma sumidade, uma múmia, um museu, mas aí eu posso fazer até uma fundação, um memorial. E o que era vida? O que era vida foi desperdiçado. Por quê? Porque o ir era um significado, o ir era um ideal, o ir não era um acontecimento. Eu não estava no acontecimento. Quando o ir é um acontecimento, tem o vir junto com o ir. No acontecimento tem o ir e o vir ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo que vai, vem. É um circuito, não é uma linha do bom senso ou do mau senso. É um circuito, por isso ele é intensivo. Essa linha toca o infinito do acontecimento. Ora, o que é o infinito do acontecimento? É o inefetuável. Esgote o andar dos homens e dos animais. Você esgota isso. Bote todos os animais que existem, existiram e existirão, eles vão esgotar o andar, o amar, o respirar? Não. Existe um acontecimento inesgotável. Pegue os verbos no infinitivo, comece a trabalhar com esses verbos e veja a dimensão inesgotável que há neles.
Quando eu toco esse infinito, é esse infinito que intensifica a intensidade que eu já sou. Não é que eu não seja intensidade, eu sou, mas a minha intensidade está capturada, está estendida, está desconectada desse inesgotável do acontecimento. Então não adianta simplesmente se abrir e se misturar. É preciso estabelecer uma conexão com o acontecimento, e não com um outro, com um objeto. Não se trata de se relacionar com um objeto ou com um outro. O objeto e o outro são ocasionais, o que importa é o acontecimento, o que acontece na relação com o outro.
Ou seja, o que acontece a mim na relação com o outro? Isso que é o meu devir. Não há riso livre sem esse devir como primeiro em mim. Como primeiro assim, “aqui tem a afirmação que se sobrepõe às negações”, inclusive à destruição que o humor provoca, porque a destruição é secundária. Por que é risível, por que dá para rir? Porque tem uma força afirmativa que é mais potente do que aquilo que é negado. O que é negado, no fundo, era um fantasma, era uma ilusão, era uma fraude. Ou melhor: o que é negado é como a morte, a morte não existe. A morte é função da vida, e não o destino de toda a vida. Ela é funcionária da vida. Ainda bem que existe a morte, ainda bem que existe a destruição. Temos que aprender.
Kafka dizia, “escrevo para morrer contente”. Mas “escrevo para morrer contente” a cada momento, estou escrevendo, ficando contente e morrendo. O que está morrendo em mim? O corpo morre? A mente morre? As coisas morrem? Claro, mas o que é morrer? É simplesmente transmutar. Aquela forma é ficção? Tanto faz. É verdade? Tanto faz. É falso você ficar preso se é ficção ou se é verdade, se é artificial ou se é natural. É ridículo isso, tanto faz. Funciona? Para quem? Para quê? Para deixar minha vida interessante ou para deixar a minha vida empoderada? Os homens são pegos por quê? Porque eles querem se empoderar.
O que mais ouvimos, nos movimentos de esquerda, nas minorias, é o empoderamento das minorias. O empoderamento do negro, o empoderamento do indígena, o empoderamento do homossexual, o empoderamento de não sei o quê, como se fosse bem bacana isso, do bem… e é uma grande pegadinha. É por isso que esses movimentos de esquerda são tristes. Por isso que eles não têm humor — humor real, não esse humor que ri à toa, aquele que estávamos falando antes.
Eu estava falando da seriedade. Então há dois tipos de seriedade, e eu fiz o contraponto com Hegel e Nietzsche. Pega o trabalho triste do Hegel, o homem que trabalha, que progride, que evolui, que vai chegar lá, que vai de degrau em degrau; e você pega o jogo do Nietzsche, levar a sério como as crianças levam a sério os seus jogos, os seus brinquedos.
Uma criança leva muito a sério os seus brinquedos, ela é capaz de chorar, de dar chilique, de se desesperar, por quê? Porque alguma coisa foi interrompida naquele fluxo energético, naquele circuito energético que ela tinha criado. E os adultos geralmente esmagam isso, desprezam isso. “É só um brinquedo, não é nada, você está fazendo tempestade em copo d’água.” Aquilo é muito importante. E, claro, daí têm todos os vícios que a criança começa a incorporar, porque ela imita o adulto, ela vê como o adulto é trapaceiro, e aí ela vai também fraudar isso. Mas aí ela já perdeu o devir-criança. Aí ela já está simplesmente uma criança infantilizada, o que é outra coisa. Mas, no devir-criança, ou no devir jovem de cada idade, há uma seriedade no jogo. Há um rigor no modo de existir. É esse rigor que é necessário para se ter humor — o humor interessante, e não o humor meramente cômico.
O que é o rigor? É aquilo que diz Bergson, é como a intuição em filosofia, o método mais preciso. É tão preciso quanto 2+2=4, mais preciso ainda. Em 2+2=4, você ainda está prisioneiro de um campo formal. É mais preciso ainda que isso, é absolutamente precisa essa intuição rigorosa. E onde encontramos a intuição? Experimentando. Como? No acontecimento. No quê do acontecimento? Nisso que é linha com o ser de passagem. Passagem do quê? Aquilo que se apresenta e acontece, se modifica e se incendeia, e se intensifica porque entra em conexão com o infinito do acontecimento. Então é a ponte real, não há abismo entre o finito e o infinito, não há abismo aqui; há ligação direta, conexão direta. É aqui que eu ganho consistência, e não organização. É muito diferente. A consistência é ligação de força com força, e não forma com forma, ou signo com signo, ou corrente com corrente, ou cadeia com cadeia. Não, é intensidade com intensidade, realidade com realidade.
Spinoza diz, ao contrário de Epicuro e de Lucrécio, que não existe o vazio. O que Spinoza quer dizer? Aquilo que Bergson também quer dizer: entre o sol e a Terra existe o vazio? Não. Entre o sistema solar e outro sistema solar existe o vazio? Não. O que ele quer dizer com “não existe o vazio”? Tudo é continuum, não tem interrupção. Há algo sob tudo que é um continuum infinito, sem interrupção. Então há um continuum em mim mesmo que se conecta com os continua que me atravessam, com os outros tempos que coexistem, as outras durações. E essas outras durações, na existência, se conectam com durações não existentes, acima ou abaixo de mim. Eu sou uma rede de durações. Um feixe luminoso, como diria Don Juan. Um diagrama de forças, ou de afetos, ou de tendências.
Eu sou uma multiplicidade ao mesmo tempo atual e virtual — virtual no tempo e atual na matéria, e que dura enquanto intervalo. Intervalo entre o quê? Eu dizia antes que Bergson diz que nós somos um intervalo entre aquilo que chega de movimento e aquilo que sai de mim. Há uma espera, há uma distância na matéria ou no movimento, e também no tempo. Há essa distância. E nessa distância tem o vazio. E nesse vazio sobe o virtual, sobe a realidade a ser inventada, sobe a potência de criar realidade. É essa distância que é a tensão, que tensiona, que intensifica. É uma intensidade finita em conexão com a intensificação infinita. Isso implica fazer a vida saltar.
Como diz Nietzsche, a vida nunca salta, é sempre meio medíocre, aquela coisa. Como um sensório-motor, a ameba vai, come, dorme… a formiga vai, trabalha. De repente a natureza salta. Com um filósofo, um artista, às vezes ela salta. Com Nietzsche, ela saltou. Salta a natureza. O que é saltar a natureza em nós? É, em primeiro lugar, se desconstruir como esse falso finito que nós somos e apreender o real finito que nós somos, e ao mesmo tempo reconectar esse real finito com o encadeamento finito do infinito. Aí, sim. Aí eu monto na vassoura de bruxa. Aí eu me faço por dentro por um modo de coesão e não de organização. E aí eu crio um novo corpo, aí eu crio um novo modo de pensar e de sentir. Por quê? Porque eu não trapaceio, eu não dou saltos que nem macacos. Eu apreendo a continuidade necessária entre uma coisa e outra. Mas qual necessidade? A da composição. Não é a da carência, não é do que falta. É a da potência. É a razão de potência, é essa necessidade.
Tudo é necessário, não há escolha desse ponto de vista. Ou melhor: será que eu sou capaz de escolher entre essa necessidade… Como diz Nietzsche, “Eu queria sentir a necessidade de Spinoza”. Queria sentir essa necessidade profunda, imanente, perfeita, absoluta, que bota em xeque as nossas escolhas. Ou seja, a escolha não se dá entre objetos, entre verdades, entre isso ou aquilo; a escolha se dá no modo de vida que retorna a mim, no modo de vida que eu quero ter, aquilo que me torna interessante. Então eu escolho estar aqui ou ali, fazer isso ou aquilo, me ocupar com isso ou aquilo, pensar isso ou aquele outro, ler este ou aquele livro, ver este ou aquele filme? Quem escolhe essa escolha é aquele que quer se tornar isso ou aquilo ao se conectar com isso ou com aquilo. Ao se conectar com isso ou aquilo, eu me torno isso ou aquilo, então a escolha está no modo de vida que eu quero ter.
Aqui o humor começa a fazer mais sentido. Por que rir? Porque o mais importante é saber rir de si. Presta atenção no retorno. Temos tudo que merecemos, está tudo certo. Por quê? Porque, se prestarmos atenção no retorno, nós modificamos. Nós somos capazes de tomar a vida nas próprias mãos, criamos memória de futuro. Geralmente estamos dormindo? Geralmente. Geralmente nos deixamos ou achamos que certas coisas não vão nos pegar? Geralmente. Sofremos por causa disso? E muito. A vida é dura? Como diz Nietzsche, para que tendes o outro dia? O sol nasce de novo. Pausa, processa, digestão. Viva a tristeza.
Eu lembro, eu tive um encontro com o Zé Celso e ele ficou chateado comigo porque ele começou o evento cantando aquela música do Vanzolini, “Reconhece a queda e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. E aí, muito bom. Teve o golpe, teve tudo, estava todo mundo meio mal. “Levanta, sacode a poeira”, e por que teve o golpe, porra? O que é o golpe? Teve golpe, de fato? Que estado é esse? Houve conquistas de direitos sociais, das minorias? Tantos direitos assim que, em algumas canetadas, foram por água abaixo? Que conquista é essa? Que produção de si que teve aí? “Ah, o estado tutelar social-democrata.” “Ah, foi embora.” Por quê? Porque agora é hora do outro, o liberal totalitário, porque ele vai fazer funcionar o capital um pouquinho melhor. Ou antes o social-democrata fazia funcionar para incluir milhões no campo do consumo? Agora, não.
Bom, a tutela basta? Cadê a lição de casa? Nós sofríamos por sermos excluídos? Nós vivemos essa tristeza, nós conquistamos a força? Não, nós éramos miseráveis, pedintes, passionais reivindicativos. “Viva um político que nos salve, uma política que nós salve! Conquistamos os direitos!” — quem conquistou os direitos? Do ponto de vista do capital, foi muito mais necessária a inclusão da pobreza no consumo do que do ponto de vista da vida, porque essa vida está de novo lançada aí. Onde houve? Eu não estou dizendo que não é nada. Eu estou radicalizando, eu estou fazendo aquilo que Nietzsche faz, “elimine os meios quereres e vá além da significação”. Chegue no limite e veja que o limite é um limiar, e no limiar aquilo transmuta, muda de natureza. Então eu estou pegando agora o limite interior do sujeito assujeitado. Eu tinha o ideal do direito protegido? O significante, tinha? Os deuses estão rindo. De novo, vocês lançados na miséria. Por que será? Somos vagabundos — no sentido pejorativo agora —, somos passivos, somos largados, frouxos, covardes. Não nos trabalhamos, não nos processamos, não fazemos dessa tristeza uma força. Não conquistamos de fato. Uma canetada derruba tudo, e o que a sociedade fez? Está aí. Nem o que os paraguaios fizeram, não invadiram nem o Congresso, como assim? Não botaram fogo no Congresso.
É esse aspecto que eu foquei e o Zé Celso ficou triste porque eu estava incitando a culpa nas pessoas. Gente, vamos focar na queda. Presta atenção na porra da queda. Nos caímos. O que é a nossa queda? É a separação da nossa vida do que ela pode. E quando separa, o problema não é separar do que pode, o problema não é ficar triste, o problema não é ter maus encontros; o problema é o que eu faço com isso. É esse processamento.
Então nós cuidamos disso? Não, nós não cuidamos disso. Nós ressentimos. Nós viramos passionais reivindicativos, chorões, pedintes. E aí esses pobres que queriam ser classe média se ressentiram, porque houve uma retração. É um exemplo, esse é um dos sentidos, claro que não é só isso. E aí você vai ver, quem era esse miserável que você tirou da miséria? Ele era muito mais miserável do que você imaginava, porque a miséria dele é a mesma do rico. A miséria desse pobre é a mesma que o rico tem, é a miséria humana. É a carência de intensidade. É essa miséria.
E essa miséria foi trabalhada? “Não, primeiro o prato de comida.” Quem disse que uma coisa vem depois da outra? É junto. Eu tenho que comer para não morrer de fome, claro, saco vazio não para em pé, já dizia minha vó. Agora, ao mesmo tempo, bem-alimentado, eu tenho que já estar trabalhando o aspecto essencial da vida, que é a criação de força. Eu tenho que me tornar uma fortaleza, e não um cidadão. A porra do cidadão, a pegadinha do cidadão. O sujeito moral que não é violentado, que cuida, que fala baixinho, no mesmo tom, não se altera. É muito adequado, é muito inconveniente. Não seja inoportuno, não seja inconveniente, não seja grosseiro. Seja um sujeito fino, moral. Seja um escravo de si mesmo. Porque a intensidade é fina, apesar de muitas vezes os efeitos aparentes parecerem, aos olhos desses finos, grosseiros. Às vezes parece assim.
Então o que se passa, exatamente? Que seriedade é essa? E que comédia é essa? Como diria Marx, a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa, como uma comédia. E a nossa é patética. É um patetismo. É um páthos de uma inércia. E aí você diz assim, “Gente, o que está acontecendo?”. O que se apresenta em nós? Nós estamos vivos? Por isso, talvez, o humor seja a coisa mais provocante, a crueldade amorosa necessária, por quê? Porque outras crueldades afastam, chocam, nos impedem de nos trabalharmos. Mas o humor é cortante. O humor talvez seja a nossa salvação — se precisamos de alguma salvação. A salvação interessante é pelo humor. Não pela verdade, pela bondade ou pela justiça, é pelo humor. Por quê? Porque o humor nos implica. O humor diz assim, “Eis que você é cúmplice”, e “Eis que riem de você”. Aproveita, ria também de você. Não se ofenda com o outro que riu de você, ria junto.
Realmente, é risível, mas risível em que sentido? É como se fosse um espasmo da vida, precisa chacoalhar aquela cristalização. Bota aquilo em movimento. Antes de ser simplesmente um gozo, estar rindo de alguma coisa, é um chacoalhar para pôr em fluxo. O riso tem esse aspecto, é por isso que essa destruição é bem-vinda. Ela é idêntica à destruição de revolver a terra endurecida para que a terra fique arejada e as sementes germinem. É a mesma questão.
Esse humor é muito interessante, tem que amar essa destruição. E nós temos que de fato amar. Temos que ter gozo pela destruição. Isso soa espantoso. “Cuidado com o nazismo, com o fascismo, você pode ser fascista, porque você ama a destruição. Os fascistas amavam a destruição. São suicidados.” Aqui não é a destruição hegeliana ou existencialista, a destruição niilista, reativa, negativa ou passiva. Aqui é a destruição daquilo que enjaula a vida, que captura, que nos apequena. É a destruição disso. Então não é a destruição de um outro ou de si, é a destruição das maneiras, dos maus jeitos. Ria dos maus jeitos, é bom.
E aí, sim, eu pego Bergson e digo assim, “Onde tem o riso?”. O riso de um movimento, o riso de uma fala, o riso de uma sensação, o riso de um traço de caráter. Por quê? Porque o riso, antes de ser um defeito, ele pode inclusive ser uma virtude. Um excesso de honestidade pode ser risível. Mas, antes de tudo, ele é uma insociabilidade. Ele é um não se associar, um não se conectar. Mas quem disse que eu quero me associar ou me conectar? Então eu vou rir de uma dimensão interessante minha, que quer a solidão? Por que a solidão é ruim ou é risível? Então, cuidado com esse mau riso em relação a coisas necessárias que nos tornam insociáveis. São necessárias para a produção de si, para a criação de si, para a libertação de si.
Então, o que é o aspecto insociável? É o aspecto que não se compõe. E aqui o humor fino. O humor fino está em saber rir daquilo que é de mau jeito e que atropela a composição. É disso que se trata. Aí eu começo a ter um riso fino. Então eu posso ter um movimento de dança, não sei. O corpo suspende, para, trava, claudica, hesita. E por que não esperar ali? Por que não ficar, permanecer ali? O problema não é a fixação, o problema é não permanecer nela o tempo suficiente para que ela vire um vulcão novamente. O problema é esse. E por que não permanecemos nas nossas marcas, nos nossos estados? Permaneça neles. Viva e veja que seu estado começou em algum momento, e ele vai acabar. Veja como ele emergiu e onde ele acaba. Ele está entre dois acontecimentos, um antes e depois. E ele tem que durar, ele tem que ser habitado. Dê um espírito para ele, “Habite, porra, faça alguma coisa, se apresente!”, não fique só com ele, porque ele depende de você. E aí você o leva até o fim, até o extremo, e lá você vai ver que o estado, na verdade, não era um estado. Ele não muda de estado quando vira outra coisa, lá tem um continuum. Só que não é que o movimento não se dividiu ou não se divide; ele se divide, sim, mas exatamente para se continuar de outra maneira, com outra natureza.
O movimento se divide mudando de natureza, diz Bergson. Isso era um falso problema em Filosofia: o movimento se divide ou não se divide? Nem uma coisa, nem outra. Uns dizem que o movimento se divide, portanto, ele não pode ser infinito, não pode pertencer a Deus ou ao absoluto. Outros dizem que o movimento não se divide, mas aí eles têm que atribuir isso a Deus, que é heresia, Spinoza. Bergson vai dizer a mesma coisa, não se divide sem mudar de natureza. Mas o que é se dividir sem mudar de natureza? Ele é uma modalidade, ele se continua em outra modalidade, mudando de natureza. Há um continuum infinito. Então ao mesmo tempo ele se divide e não se divide. Como ele se divide, como ele não se divide?
Então, leve o seu estado até o limiar. E o humor tem a ver com isso. O que é o extremo? Não é a altura, o extremo é a superfície. Até o Barchelard confundiu a obra de Nietzsche com alto e baixo, alto e profundo. Nietzsche não é das alturas. Nietzsche derruba as alturas, derruba Platão, derruba Sócrates, ele reverte o platonismo. Nietzsche é da superfície. O cume de Nietzsche é a superfície do acontecimento. Isso é o cume de Nietzsche. Andar de cume em cume é andar de superfície em superfície.
E mais: eu dizia, aforismo pensamento, anedota da vida. Pense o acontecimento, mas também o mimetize. O que é o mímico, o ator? O que ele faz? Ele imita. Ele devém, ele incorpora o que não tinha corpo. Ele dá corpo ao que era incorporal. Ao mesmo tempo em que ele tem a contraefetuação, ele é capaz de efetuar. Ele faz as duas coisas coexistirem. Ou seja, eu não estou só em uma direção do ideal, mesmo que seja o ideal do acontecimento, a idealidade do acontecimento que não é mais a idealidade do formal significante de outro mundo. É essa do acontecimento, porque, se eu estou na idealidade do acontecimento, necessariamente eu estou dobrando alguma coisa em mim, eu estou corporificando, eu estou produzindo desejo. Eu estou fazendo com que o desejo deseje, com que a vida vivifique. Eu estou vivendo uma vida vivificadora, um desejo desejante. Eu estou produzindo o produzir em mim, porque há um retorno do acontecimento sobre mim.
O acontecimento afirma a diferença, ele diferencia a minha diferença. É isso que é corporalizar ou criar movimento a partir do incorporal ou do puro tempo. Aí eu sou capaz de humor. Usar o humor…
Como está a nossa hora? Ninguém sabe. Ah, então ainda tem um tempinho. É até às 17h que íamos, né? Mas dá para ir um pouquinho mais. É, e aí eu abro para questões. É que isto aqui é uma introdução, é uma primeira pequena provocação para sabermos colocar o problema do humor, porque não é a comédia. O Bergson até usa a mesma coisa, comédia, humor, riso, ele mistura tudo, mas eu acho que… claro, se você for de modo fino, você vai ver que ele faz várias distinções também. Mas, na verdade, temos que ser bem contrastantes.
Que seriedade precisa do humor como um retorno à seriedade? Que, no caso, pode ser a seriedade moral, que usa o humor como um mau riso para adequar, para se conformar, para rebaixar e para empoderar. Para incluir: “Você é um dos nossos”. Você é cooptado, eis a obra do humor. A comédia, o riso dos costumes, o vaudeville.
E a outra seriedade: a seriedade da autonomia real da vida. A seriedade que toma a vida nas próprias mãos e faz da própria vida uma obra de arte. Na medida em que acontece, efetua o duplo desse acontecimento, que é a produção de si. Esse é o duplo do acontecimento. A partir do esplendor eterno e neutro que encontra no acontecimento — o que é o “esplender eterno e neutro”? É o infinito. É o inesgotável, o inefetuável do acontecimento. A partir daí produz o duplo. Não o duplo como um estado de corpo, um estado de mente, um estado de desejo; mas o duplo como potência de acontecer. “Torna-te o que tu és”, diz Nietzsche. Ecce homo, “eis o homem”, ou “de como alguém se torna o que é”.
O que eu sou? Depende de mim. Quão interessante eu posso ser nesse mundo? Que tal se eu me tornar uma potência de criar realidade? Será que isso é o máximo a que podemos chegar? Existiria outra coisa, mais potente do que essa? Mais interessante do que essa? É, é um desafio. “Torna-te o que tu és.” O que tu és? Que modo de vida queres para a tua existência? Que estilo? Você é moralista? Você é ético? Você é estético? Você é libertário?
O humor como mau riso, a comédia, então, é um complemento da seriedade. Está a serviço da seriedade moral. Triste. Uma seriedade triste. Mas há uma seriedade alegre, e aí o humor tem uma outra expressão. Ele é feito de um outro elemento. O humor, de fato, ao mesmo tempo em que ele é cruel e destruidor — mas de uma crueldade destruidora amorosa, porque pressupõe uma afirmação —, ele abre, limpa a superfície para a própria criação. Ele prepara o terreno para a criança inventar, para o devir jovem de cada idade ser inédito a cada momento. Ele prepara isso.
Por que rimos de modo livre, com os olhos desanuviados de preconceitos? Porque tem uma potência maior que excede e que também nos faz perceber que o mal que nos advinha era também uma potência admirável, à qual nós devemos agradecer demais. Até as baixas potências, aquelas que nos puxam para baixo, como provocadores indignos. Até essas. Só que essas geralmente… como diz Nietzsche no Zaratustra, chega o homem superior na montanha, na caverna do Zaratustra, “Eu conheço o machado que pode te abater, ó Zaratustra. É a piedade pelos homens”.
Às vezes nós sentimos piedade pelo miserável em nós e pelo miserável no outro. Fodeu. A piedade é um modo de prolongar a vida fraca. É o amor à fraqueza. E é um dizer “Não tem jeito”, é um conformismo. A compaixão? Só pela vida forte ou pelo modo fortalecedor ou vivificante da vida, intensificador da intensidade. Aí, sim. Compaixão por isso é o quê? É sensibilidade, é ser tocado por isso. Ser tocado pela vida frágil, que é potente, mas, ao mesmo tempo, pode ser capturada. E é enjaulada, é interiorizada, ensimesmada.
E aí, sim, o riso destruidor, o das jaulas, das cavernas, das formas, dos ensimesmamentos, dos isolamentos, dos enrijecimentos, dos automatismos. E por que não começarmos a extrair desse modo de perceber, dessa lente que extrai humor, extrair com essa lente fina a energia para nos tirar da seriedade que a dor nos impõe? Diz Nietzsche, “Por que levar tão a sério as dores?”. Quem leva tão a sério as dores? Qual é a seriedade que uma dor merece? “Ora, mas aquela dor é tão grave, ela puxa tão para baixo, não tem saída para essa dor.” Será?
Como dizem Deleuze e Guattari, “Como se sai de um buraco negro? Por velocidade”. O buraco negro é uma potência, não é uma ausência, ou um abismo, ou uma falta de realidade. É o contrário, é uma presença do invisível, do imperceptível, do escuro imprevisível.
Então, é isso. Como diz Deleuze, “Queria ser uma carpideira”. Ora, ele no fundo lamenta que ainda não está à altura da potência que o achaca. Ele está sendo achacado, provocado, seduzido por uma overdose, mas ele tem que cuidar. “Prudência, cuidado! A dose pode te matar”. “Lamento que eu ainda não estou à altura para ingerir toda essa dose de potência”. Ela ainda é uma overdose, esse é o meu lamento, e isso é ser carpideira. Isso é um devir imperceptível. “Cuidado, seja uma carpideira para não despertar a inveja dos impotentes. Cuide da sua criança, porque se você mostrá-la antes do tempo, não souber fazer silêncio, ela pode nem nascer, ou ser natimorta.”
São aspectos. Deleuze tem um texto sobre o humor em Lógica do sentido, que, se vocês tiverem (eu até aconselho vocês a adquirirem esse livro, é um livro fantástico), no qual ele fala do humor. Ele já tinha falado, em uma série anterior, sobre as três imagens de filósofos. E ali ele diz que existe o filósofo das alturas, o filósofo nas nuvens, Sócrates, Platão, esquece da terra e pode cair no buraco. Aí é o pré-socrático, é o filósofo das profundidades. É a sandália de chumbo de Empédocles. Diz Empédocles, “Eu uso uma sandália de chumbo para mais me colar à terra”. Nietzsche usa isso, “o sentido da terra”. Essa profundidade é digestiva. Essa profundidade é passional, mas é também ativa. Essa profundidade é a do corpo. Essa profundidade é antropofágica. A altura é ideal, outro mundo, o filósofo nas nuvens. Já o filósofo pré-socrático é o físico, não é o metafísico. Ele faz a physis no sentido grego, a natura. Ele é natureza. Physis em grego, natura em latim. Ele está dentro da natureza. Platão e Sócrates querem sair da natureza e encontrar uma sobrenatureza. Os pré-socráticos estão dentro da natureza.
Os cínicos, talvez um pouco os megáricos, mas principalmente os estoicos, a partir do cínico Antístenes, depois Cleanto, Zenão e Crisipo, criam uma terceira imagem do filósofo: o filósofo de superfície. O filósofo de superfície é aquele que não se contenta com o modo pré-socrático de ser. O pré-socrático, como vem antes de Sócrates, ele nem sabia da invenção da altura. O filósofo pós-socrático que tem inspiração pré-socrática derruba as ideias platônicas e socráticas no chão. Traga, come essas ideias. Como diz Pierre Clastres de certos indígenas que comem os significantes, fazem uma fagia semiótica, que é comer os nomes. Os pré-socráticos comem a idealidade platônica. Diógenes, o cínico, ao enunciado de Platão “O homem é um bípede sem plumas”, que vai para essa idealidade de “o bípede sem plumas”, essa definição ideal; ele pega um corpo, se apressa a mostrar um corpo. Por quê? Porque o ideal tem uma implicação no corpo. Ele vai lá, pega uma galinha, depena a galinha e a atira na academia. “Eis seu bípede sem plumas, Platão”. Ele nem fala. Ele não tem linguagem, tem profundidade. Bípede sem pluma era o homem?
Acontece que o mergulho na profundidade implica o retorno à superfície. Eis a descoberta estoica: o retorno à superfície. É a expressividade da potência implicada. Ora, ela não aparecia no mundo socrático e platônico. O que aparecia no mundo socrático e platônico? Platão diz, “Tudo é imagem, mas há uma imagem que deve vingar, e outra deve ser recalcada”. Qual é a imagem que deve vingar? Aquela que imita a ideia. A imagem-ícone, a imagem que decalca do modelo ideal a forma de ser, de existir, de pensar, de ser justo, verdadeiro etc. É essa que produz um comportamento, um sujeito moral em mim. Eu extraio do ideal o sujeito moral espiritual. É essa imagem que deve vingar. Então ele não está falando de potência que sobe, ele está falando de estado de desejo que deve se submeter à forma. É disso que ele está falando. O que sobe em Platão? Sobe em Platão a imagem “boa” que quer imitar não outro corpo, mas a ideia. Diógenes pega um outro corpo e o lança. Não é esse corpo bondoso, dócil, que vai se formatar lá na ideia.
Então há o retorno do ideal? Há, é a forma moral. Esse é o duplo do ideal. O duplo do ideal é a forma moral. O que eu me torno? Eu me torno um moralista ao me relacionar com o ideal. A ironia, o que é? A ironia é “Eu não sei o que é o ideal de Sócrates, eu sei que nada sei”. “E você, sabe o que é?”, “Ah, sim, eu sei, é isso”. Aí Sócrates: “Reles mortal, o que você é? Você não sabe o que você é. Você acha que a verdade é isso que você está apontando aqui no corpo. Isso é outro plano, rapaz.” Isso é ironia, o movimento de elevação, de ascensão.
O que é o humor? O humor é um tombo na ironia. Pega Platão pela mão, “Vem cá, Platão, você fez a gente subir por ali? Desce de novo, vem cá.” Agora vem cá, vamos ver quem era Sócrates e quem era o sofista. Vamos chegar no limite. Você consegue distinguir Sócrates do sofista? Tem uma hora que não consegue. Qual é o critério? O sofista — claro, tem sofistas e sofistas, tem embusteiros, tem de tudo, tem o trapaceiro, mas Platão aproveita e bota tudo em uma panela só. Assim como fazemos com questão da lei, da norma, vamos e criticamos uma coisa que é proibida ou que deve ser de outro jeito, então vamos criminalizar o virtual, controlar o virtual.
E então, o que se joga fora junto? Se joga fora todo o campo virtual. Então, junto com os sofistas vão os artistas, os sofistas interessantes, que são grandes pensadores, por quê? Porque eles estão ligados ao acontecimento. E, no acontecimento, não há verdade; há produção de realidade. Mas, para Platão, isso é o fim da picada, é a imagem que imita outra coisa, é o devir corruptível, que deve ser recalcado em nós, que deve ser jogado fora. É a parte de nós que deve ser eliminada. É o caos que não pode subir.
O que faz aquele que afirma o corpo e o caos? É na afirmação, a afirmação é a própria condição da superfície, é pela afirmação que o profundo sobe. O que sobe? Não os nossos restos, a nossa cloaca, mas o nosso caos. E é aí que você percebe que o caos não era caos, que, ao subir, ele tem uma ordem própria, ele tem um tempo próprio, ele tem uma duração própria. Esse caos são tempos diferenciados, heterogêneos. Nós somos multiplicidade heterogênea. Então há uma ordem nesse caos, há um caosmos dentro de nós. E esse caosmos é um campo de forças. Nós somos uma fortaleza, mas essa fortaleza se alimenta da superfície. É na superfície que está a fonte, é no relacional da relação que está a fonte. Saber beber daí, não ficar preso no ideal, na verdade, seja ela de que natureza for: religiosa, estatal, moral, científica, pública ou privada, sonhadora, fantasiosa, ilusória ou delirante, ou alucinante, tanto faz.
Toda verdade frauda o acontecimento. Presença no acontecimento é quando eu encontro o acontecimento que tem a dupla afirmação, que tem o outro aspecto que o humor desperta, o humor chama, o humor incendeia, o humor provoca para que essa profundidade se apresente na superfície. Não me falta nada. A profundidade está toda aí. O que me falta é só me pôr acontecendo. É só isso. Mas eu já estou em acontecimento, mas eu não estou fruindo disso. Eu não sou causa disso. Eu não encontrei a quase-causa do acontecimento para duplicá-la em causa essencial, física, desejante e pensante. Ou seja, apreender a causa no desejo, e ao mesmo tempo a quase-causa como horizonte do desejo. Aquilo que não existe, aquilo que é inédito, aquilo que está por fazer e que, se não for feito, nunca vai existir. Fazer com que isso venha.
É aqui que eu deixo de ser conformista. Deixo de desconfiar. Desconfiar do quê? Desse elemento, fonte real de realidade, desse princípio de realidade efetiva. Desconfiar de outras fraudes? É claro, tem que estar sempre desconfiando, muito, mas é aqui que eu tenho a confiança maior. E essa confiança liberta. Por quê? Porque eu deixo de me ver como falta. Eu começo a prestar mais atenção nas minhas durações, e percebo que elas me sugerem muitos caminhos, como um pintor quando lança a tinta no quadro, e o próprio acaso do lançar da tinta no quadro sugere coisas interessantes, mas que só são sugeridas porque já há essas forças dentro dele, de alguma maneira. Não com nenhuma forma ainda, mas que são despertadas, são excitadas, são extraídas e criam obra a partir daí. Criam a contraefetuação do acontecimento.
Então esse duplo, que não é o sujeito, como em Lacan, que o inconsciente há de advir sujeito, ou o inconsciente de Freud, que há de ter consciência. Não falta ao inconsciente consciência, não falta ao inconsciente sujeito, não falta à potência uma substância. A potência é em ato, é em acontecimento. Traga o acontecimento para o imediato da potência, mas o acontecimento não é o instante sem espessura meramente, o acontecimento é uma fonte. É uma fonte de onde deriva um continuum.
Nós somos filhos de Deus? Somos filhos de nossos pais? Somos filhos da terra? Nós somos filhos do acontecimento. E ao mesmo tempo somos pais, netos, avôs, isso e aquilo, porque tudo está em acontecimento. O acontecimento é nossa filiação primeira. Então nós somos órfãos, desse ponto de vista. O desejo é órfão. Ele não precisa desse familialismo estúpido. Como diz Lenz, “O que meu pai pode me dar, além disso que a natureza, esses alpes, o gelo, as plantas, as estrelas me dão?”. Então são as conexões.
Abertura, sim, mas qual abertura? Existe abertura que leva ao fechamento. Não tem aquela história do filho pródigo? “Vai, vai. Você vai voltar arrependido.” Era uma abertura? Não era uma abertura. Era uma isca para um fechamento maior, para dar um nó mais embaixo ainda, encerrar melhor. É o desgosto. É o desgosto profundo, que não tem volta. Então cuidado com a abertura. A abertura é “a cara”, como dizem, “É o cara”, a abertura é “a cara”. É a hora da vez. Sempre, e sempre será, mas não de qualquer maneira. Como diz Nietzsche, “botar o acaso de joelhos”. Botar o acaso de joelhos é fazer o quê? Encontrar a força que te entristecia e incorporá-la. É como você consome o inimigo, incorporando a força do inimigo.
Então, enfim, era esse ponto de vista. Eu não sei se tem alguma questão. Foi um passeio introdutório, com provocações para pensarmos de modo mais criterioso a questão do humor. Porque o humor não é palhaçada, o humor não é comédia, desse ponto de vista, ainda que tenha muito humor na palhaçada e muito humor na comédia, eu não estou dizendo que toda comédia não tem humor. Não é isso, não, é o contrário. Tem muita comédia interessantíssima, mas ela tem que ter o humor como ponto de partida, e não o preconceito. Não a vontade de formatar, não botá-la a serviço da seriedade triste, que geralmente é o que fazem as comédias de costumes.
Alguma questão? Se não tiver… Podemos retomar daqui a um tempo. Não sei, daqui a um mês? Não sabe ainda. Isso tudo depende das composições, dos processamentos, enfim.
[falas inaudíveis]
[Luiz Fuganti]: Dos desejos das pessoas.
[falas inaudíveis]
[Luiz Fuganti]: E aí vamos nos ater ao texto do Berson chamado O Riso. São três conferências que ele dá sobre o riso. Uma vai extrair o riso dos movimentos corporais, e aí tem tudo a ver com a dança também. Outra vai extrair o riso da linguagem semiótica, e ainda das misturas entre linguagem e corpo. E a última conferência dele é a extração do riso do caráter, que aí é mais profundo. Ou seja, a implicação que o riso tem sobre o nosso modo de existir. Aí é o aspecto cruel do riso.
Diga, vamos lá.
[Espectador]: Como que você sugere que a gente lide com a história? Quer dizer, como lidar com a história? Como pensar a história, enfim. Isso que você falou sobre o ressentimento me parece ter uma relação direta com a produção historiográfica, digamos assim. Não estou querendo dizer que historiografia esteja certa ou errada, enfim, mas como lidar com a história?
[Luiz Fuganti]: A história geralmente é um decalque. É uma coleção de fatos. A partir do quê? De forças que se interessam em ter aquele tipo de registro, porque aquele tipo de registro é um modo efetuar uma corporação, uma formação social, um campo de poder. Uma soberania, por exemplo, um estado. Vai falar bem de uma raça e mal de outra, enfim, não importa.
Como diria Walter Benjamin, “Há que se fazer a história dos vencidos”. Geralmente a história é feita pelos vencedores e pega os decalques, pega os fatos. O fato é o que deu na Folha de São Paulo, na Globo. Isso é fato, essa é a verdade. Ora, mas a verdade tem tantas faces. Então tem que sair do fato e entrar no acontecimento. Aí você começa a fazer da história uma coisa interessante.
Nietzsche diz que um historiador geralmente olha como um caranguejo. É aquele olhar retroativo. Bergson diz a mesma coisa. Essa mania de olhar para trás e ficar reapresentando o que foi. A história tem que virar, como em Foucault, um acontecimento. E aí você vê o que é coexistente no passado, o que segue sendo. Essa era a obsessão de Foucault. Ele foi fazer história? Não, ele estava fazendo filosofia através da história. Ele pegava o que ainda nós somos, esse passado que foi, e punha aqui na nossa frente, criando uma memória de futuro. Um uso interessantíssimo da história.
Nietzsche tem um texto maravilhoso que chama “Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida”, no Considerações intempestivas. É fantástico esse texto, acho que todo mundo deveria ler, porque usamos a memória ao modo do caranguejo — com o perdão dos caranguejos, que eles devem de usar de outra maneira, mas fazemos essa imagem dos caranguejos, retroativamente. A história tem que ser a copresença. É o que diz Bergson do passado, “ele não foi, ele é”. Ou o que diz Renato Russo: “O passado ainda está por vir”. Pegue ele lá, vá investigar o passado que ainda está por vir. Aquela coisa mal resolvida em você, viva ela. Pegue-a pela mão e faça dela sua companheira, até ela se transmutar e virar uma força que te impulsiona, e não um peso que te arrasta para baixo. Esse é o trabalho que temos que fazer sobre nosso passado.
Nós vivemos como diz Nietzsche: “Quem de nós pode levar a sério as vivências cotidianas?”. Nós, homens do conhecimento, buscamos tanto, somos naturezas aladas, como as abelhas que saem em excursão para trazer o mel do conhecimento para nossas colmeias. E nós trazemos o mel do conhecimento das nossas vivências cotidianas? Diz Nietzsche: “Para as nossas vivências cotidianas, temo, estamos ausentes”. Não estamos presentes, estamos ausentes dela. Não temos ouvidos, não temos olhos, não temos órgãos que percebem o que se passa conosco.
Talvez seja essa história que falte fazer. A história do que nos tornamos ao nos relacionarmos dessa ou daquela maneira com os acontecimentos ditos históricos. O que eu faço da história que ainda me atinge? É essa a redenção. Eu posso modificar o passado, sim. O passado não é a pedra que foi, um ressentido que não dá para mudar. O passado é totalmente transmutável, sim, senão o homem se aprisionaria. Senão, era melhor fazer igual Schopenhauer, “Eu desejo, me frustro, eu desejo, me frustro”, melhor não desejar. Eu desejo nada, me frustro, eu desejo isso, me frustro. O desejo aprisiona. Diz Nietzsche: “O desejo liberta”. Está falando de outro desejo. O desejo quer pegar o objeto para si. Diz Nietzsche: “O desejo dá”. Ele é dadivoso, ele é generoso, ele não quer tomar.
Assim eu posso fazer o uso disso que eu vivi e não me apercebi. Diz Nietzsche: “Depois contamos o que aconteceu”. Às doze badaladas do destino, olha, conta, calcula e pensa errado. “Ah, eu sou isso, eu sou aquilo.” Meu caro, essa é uma visão retroativa. Você não é isso, você está fazendo uma visão de si mesmo, você está fraudando o que você é. Você está jogando na lata do lixo o seu nome próprio, botando um sujeito no lugar dele. Então, encontre esse horizonte singular da sua existência, que se constitui como uma seidade. E se ele não existe, ele tem de ser inventado. Porque ele não existe, de fato. E como eu o invento? Cuidando de tudo isso que eu descuidei. Traz de volta. Por quê? Porque muitas vezes é isso que você se descuidou que está te levando para as bolas de neve, para o círculo vicioso, está te afundando cada vez mais. E chega a um limite, como aquele filme que eu sempre indico, o Solitário anônimo. Um curta metragem da Debora Diniz, no qual o cara diz, “O que é o seu futuro? É uma hipótese. Agora que eu não quero mais me matar… que eu não quero, não, que eu não sei, eu ainda estou vivo. O seu presente, o que é? É o real. E o seu passado é uma montanha de lixo”.
A sua história é uma montanha de lixo. Quem estava passando ali, no momento em que aquilo passou? Tinha algo em mim que estava passando? Esse algo em mim estava ausente de mim mesmo? Eu não estava presente nas minhas vivências cotidianas e o passado virou um peso, virou uma força de morte, virou uma depressão, virou um niilismo passivo, e eu não tenho nem força para me matar. O que se mata ainda tem alguma força. Não tem mais nem força, porque ele dizia, “Eu sou covarde para me matar”. O solitário anônimo diz isso. “Eu queria ter essa morte”. É o que diz Nietzsche do niilismo passivo, você quer a morte indolor. Você quer apagar, ser absorvido. Você desaparece de modo indolor.
Então isso é o ressentimento em relação ao passado. Por quê? Porque nunca se trabalhou, nunca se isolaram os elementos que se intoxicavam, e nunca se burilou eles para encontrar a face. Spinoza diz, “Não há mal e nem bem que me acometam se não houver algo de comum comigo”. Ora, mas o que é de comum não pode me negar. Comece pelo comum, então. E no comum eu vou encontrar a face sobre a qual aquilo que estava me fazendo mal, para que comece a me fazer bem ou ser transmutado em força aliada. Tem lá uma face que dá jogo, que dá composição. Porque, se aquilo me fez mal, é porque alguma coisa de comum tinha comigo. Olha que pensamento o do Spinoza. Em vez de ele dizer “O mal não tem nada a ver comigo, abaixo o mal, vamos acabar com o mal, vamos matar o inimigo”, ele diz, “Não, espera aí, se o mal me atingiu, alguma coisa de comum ele tem comigo”. Porque se não tivesse nada de comum, ele não me tocaria. Por que me deixei tocar? E se tem algo de comum, o comum é bom. O comum é aquilo que faz a minha realidade. Por que eu estou jogando isso fora? Por que eu estou julgando o mal?
É aqui que eu começo a transmutar a tristeza. Viver a tristeza e encontrar a força que tem por trás dela, a potência afirmativa que tem por trás dela, e não o mal que eu devo eliminar do mundo. Igual ao moralista, estúpido, igual ao Bolsonaro, que é uma caricatura disso. Mas tantos outros, e tanta gente civilizada, bondosa e até de esquerda que quer fazer isso. Aliás, está cheio de gente de esquerda querendo a mesma coisa, só que com motivos aparentemente diferentes, mas o fundo é o mesmo.
Então, enfim, não sei se te dei uma resposta. Eu estou com o limite do tempo, eu ultrapassei um pouquinho. Acho que está bom, né?
[Falas inaudíveis]
[Aplausos]