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50 anos de anti-Édipo

Durante muito tempo, a Esquizoanálise foi envolvida em uma mística de que era um pensamento difícil, prolixo, ou até inacessível. Este ano, em março de 2022, fez cinquenta anos do lançamento do Anti-Édipo, em Paris. Obra dos criadores da Esquizoanálise, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Quem ainda não adquiriu essa obra e tem interesse, mesmo que seja mínimo, na Esquizoanálise, vale muito a pena a edição atual brasileira, pela Editora 34 Letras, com uma tradução belíssima e rigorosíssima do meu querido amigo Luiz Orlandi. Está aí acessível, é um livro que não é nada caro, e é fundamental já entrar nesses textos.
Eu lembro que, em um certo momento, havia muita gente se queixando que era um texto difícil, e a resposta dos autores era que foi escrito para gente que tinha 15, 16, 17 anos. É incrível. O que eles queriam dizer com isso? Eles queriam dizer que para um livro não se deve ter uma abordagem pela interpretação dos significados, do que ele significa, mas, principalmente, do uso que se faz do que está ali escrito. Do uso que se faz daqueles conceitos, daquelas palavras, daquelas ferramentas — porque o que mais importa no encontro com o livro é a nossa vida se pôr em acontecimento. Se a nossa vida é tocada, se ela se põe em acontecimento, se ela entra em devir, não há nenhuma verdade no fim do túnel. Não há nenhuma significação verdadeira a ser atingida. Mas, na verdade, a escritura, o texto, o livro serve simplesmente como modo de deslizar. É como uma onda que você vai surfar. Dependendo de como a onda se apresenta e como você joga com o seu corpo, e o movimento da prancha, do corpo e da onda, pode dar jogo e pode dar fluxão, fluência. Pode fazer com que a sua potência comece a se diferenciar. É disso que se trata, é isso o que importa.
Então, não se preocupem com esse livro que, porventura, pode ser “indecifrável” para espíritos demasiado acadêmicos. Os acadêmicos, infelizmente, ainda estão habituados a valorizar por demais a crença na verdade, a crença na forma de um ser que, no fundo, não passa de uma imagem fictícia. Não há nenhuma verdade, nenhuma parada, nenhum ser para o devir que não seja a própria zona de passagem. Então nós estamos, nesses cinquenta anos do Anti-Édipo — meio século, portanto —, e o que nós temos hoje em dia? No Brasil nós temos, felizmente, esse contágio que está se dando cada vez mais. Eu não tenho ideia de como isso esteja acontecendo no mundo ou como isso esteja acontecendo na Europa. É improvável que essas ideias estejam germinando muito lá, porque são sociedades já muito velhas e muito decadentes. E a sociedade americana, por exemplo, que é uma sociedade bastante decadente também, ainda não se apercebeu do buraco em que se encontra. Então é possível que demore mais tempo para o Anti-Édipo atingir esses espíritos dessas regiões mais centrais e do Norte do planeta do que as regiões mais periféricas e ao Sul do planeta, como por exemplo aqui no Brasil.
Aqui, nós sentimos a necessidade e a urgência de obras como essas porque são obras que deixam de investir nas velhas maneiras reformistas de salvar ou ser humano, tal qual o ser humano foi investido há milênios, e principalmente nos dois últimos mil anos — mais fundamentalmente nos últimos 250 anos, talvez, no máximo, 300 anos. O Anti-Édipo é uma máquina demolidora disso que nós temos nos tornado. Uma máquina demolidora dos modos dominantes de existir. Os modos dominantes de existir estão envolvidos em um modo de desejar equivocado já desde a sua primeira manifestação, quando esse desejo se torna intencional. O modo intencional de desejar é necessariamente um modo derivado de uma vida separada do que pode.
E nós temos visto os pensamentos, as teorias, as práticas psicoterapêuticas que visam consertar desejos e mentes supostamente desarranjados, restabelecendo-as em um trilho de uma evolução, em um progresso, em uma inclusão, em um modo dominante de existir que não passa de um modo de assujeitamento do desejo. Essa produção de subjetividade que rebaixa a vida e que pendura a vida em um ideal significante que a torna ainda mais endividada, ainda mais refém, ainda mais pendurada em um futuro que jamais chega, na ilusão de empoderamento. E quanto mais ela anda nessa direção, mais ela cava, como diz a música do Cartola, “o abismo com os próprios pés”. Quanto mais anda dessa maneira, mais o abismo cresce.
Nós e a Esquizoanálise não estamos aqui para salvar o sujeito, para salvar uma forma humana e, ao modo de Kant, encontrar um modo superior humano de desejar, ou encontrar um modo superior humano de pensar, ou encontrar um modo superior humano de julgar. Nós queremos descontruir a forma humana, e não a deixar perfeita. A forma humana já é falha necessariamente…

 

Transcrição por Gabriel Naldi

Curso de Introdução à Esquizoanálise 2022 (Aula 1 – Pílula 1)