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Curso Educação Para Potência – Aula 02/08 – Memória como produção de continuidade (transcrição)

 

Por Luiz Fuganti

Este curso, “Educação Para a Potência”, vem em decorrência de uma ausência, que não é de agora, é a ausência do homem. Desde que o homem é homem existe essa necessidade de produzir-se a si mesmo, de criar maneiras de existir. Se a gente observar como as sociedades primitivas vão trabalhar essa questão da auto produção de si, de signos, de corpos, das relações sociais, que nelas tem essa singularidade, o que chama atenção é que elas não lançam mão de nenhum plano transcendente, de nenhuma divindade fora da natureza, de nenhuma referência racional autônoma. Elas já estão diretamente inseridas numa espécie de campo ou plano de imanência da própria terra. Se a natureza mesmo, através dos corpos, dos corpos produtivos inclusive, se servissem e inventassem maneiras de criar diferenciação e continuidade dessa diferenciação, talvez esse fosse o sentido mais profundo da palavra cultura. Inventar, diferenciar e se continuar nessa diferenciação.

Uma dos elementos essenciais deste curso é a questão da memória. Memória como uma produção de continuidade. Memória enquanto produção de futuro e não como representação do passado. Esse aspecto é essencial para entendermos qual a natureza da continuidade que nos interessa, a natureza dos cortes que nos interessam. Cortes reais, continuidades reais que se dão no campo da natureza. O homem, na medida em que desvia dessa atividade de produção de si mesmo, de imanência, ele também inventa uma falsa continuidade e, o mesmo tempo, uma falsa ruptura, um falso corte, na medida em que ele precisa instaurar uma instância que se descola da própria natureza, da própria vida. E essa instância começa a aparecer sobre a terra, nas sociedades humanas, a partir da emergência do Estado. O Estado, mesmo no seu momento mais primitivo, mais puro, é que inaugura esse corte artificial entre homem e a natureza. Entre cultura e natureza. Entre indústria e natureza. Não existe um ponto na origem da história que este momento se estabeleceu. Existe mais ou menos um domínio disso, a partir de 10, 12 mil anos A.C. isso se torna um modo dominante em algumas formações sociais humanas. Porque a possibilidade de emergência do Estado, está sempre dada. Seja há cem mil anos atrás, agora. Não é uma questão cronológica de marcar uma origem, como os evolucionistas imaginavam que o Estado era um certo avanço no estágio humano, uma certa evolução necessária. Somos radicalmente contra esse postura. Porque o Estado não só não é necessário, como ele tem necessidade de despontencializar a vida para se sustentar. Essa tese vai atravessar todo nosso pensamento e toda nossa prática. Não há Estado interessante do ponto de vista da vida. O Estado só é interessante do ponto de vista da vida enfraquecida. Esse falso corte, que de alguma maneira funciona, não é apenas falso como uma ideia, ideológica, que não teria nenhuma eficácia. Ele tem eficácia porque ele opera uma captura e um desvio das forças da terra, do corpo, do desejo, das potências que atravessam essas sociedades primitivas. E nessa medida, ele produz realidade, do ponto de vista desta forma negativa. Um produto real, que recai novamente sobre a vida. A vida se modifica na medida em que essa captura ou ficcção opera, ela se modifica nela. É o que Nietzsche chama de “produto do negativo”. Mas o principal produto aí é, não só a vida enfraquecida por um mau encontro eventual, é a vida cultivada como enfraquecida, porque o poder, o Estado, não tolera a vida senão no estado de fraqueza, separada do que pode. Somente este tipo de vida que o Estado tolera ou cultiva. E se tiver um outro tipo de vida ele vai inventar um jeito de quebrar essa vida ativa, até ela se tornar separada do que pode. É muito simples: a vida ativa, afirmativa, que de fato goza ela jamais se relaciona ou alimenta uma referência fora dela. Ela não precisa de referência, ela é, de fato, autônoma, é auto sustentável. Então é evidente que o estado não suporta esse tipo vida. Esse tipo de vida ameaça o Estado. Essa falsa continuidade, esse primeiro corte é o que Nietzsche chama de niilismo negativo.(O niilismo é o motor da história, e não a luta de classes.) Vamos entender de que maneira esse corte se opera e como se torna extremamente nocivo. A vida está sempre sujeita a maus encontros e ao enfraquecimento, que é inclusive o tempero da vida. As dores, os sofrimentos, as doenças são provocações da vida e é uma positividade. É como se a vida nos provocasse para tomarmos uma postura diferente. Essa é a perfeição da natureza. O que acontece é que esse corte faz uso desses maus encontros, dessas paixões tristes, dessas doenças, se alimenta desse uso e sustenta a vida nesse estado de fraqueza. Aí que começa a ruptura de uma continuidade vital. Nessa medida perde a capacidade de se manter num plano de imanência do nosso desejo na nossa própria vida. A gente precisa sempre se referir aos nossos desejos a um objeto que falta a ele.

Como podemos retomar essa condição de continuidade de si mesmo, da variação ativa que acontece a nossa potência, e se alimenta dessa abertura? Esse é todo o problema que tomamos aqui como educação para a potência. Retomar essa continuidade é o que chamamos de reencontrar o imediato. Um plano de continuidade que opera em dois registros ou, de duas maneiras diferentes, sob dois tipos de diferenciação:

  1. continuidade intensiva
  2. continuidade das qualidades expressivas que chamamos de memória de futuro

Sem esse plano de continuidade, o que Deleuze-Guatari chamam de plano de consistência, a vida se mantem separada do que pode. Como religar a vida ao que ela pode? Ao que ela pode de modo livre, afirmativo, ativo e por conseqüência com alegria, com gozo. Isso implica em dois aspectos essenciais. Numa postura crítica e numa postura criativa. Uma dupla postura. Claro, se a postura é criativa, necessariamente ela tem, por efeito, uma postura crítica. Nosso foco é na postura criativa. Por conseqüência a gente consegue fazer uma crítica. Não uma “crítica construtiva”. Tem que ser destrutiva mesmo, destruir o que inviabiliza as condições de uma vida ativa. Por efeito. Não é que vai se lutar contra. Mas na medida em que eu apreendo essa dimensão afirmativa, por conseqüência, há uma desconstrução de tudo aquilo que impede que nós nos reencontremos com o imediato do movimento no corpo, com o imediato do tempo no pensamento. Ou aquilo que temos chamado de superfície. A superfície relacional e estética. Sem essa retomada, esse reencontro, a nossa crítica é atravessada por uma espécie de niilismo negativo, reativo e passivo e precisamos atingir a dimensão do niilismo ativo, que é uma crítica que destrói as condições de inviabilização da vida. Mas isso só como fruto, como resultado de um toque, de um vislumbre com o imediato. Precisamos retomar esse reencontro com o imediato, que na verdade já fizemos esse encontro, por isso chamamos de reencontro. De alguma maneira ele está em nós, mas não tomamos parte do imediato em nós. Esse cultivo do imediato, vai nos abrindo uma dimensão que faz a potência crescer, que faz o combustível da invenção de novas maneiras de produzir real, nessa mesma medida que, com esse combustível a crítica se torna eficaz e acontece por efeito e não como objetivo. É por conseqüência. O “não” não tem o mesmo estatuto do sim. É uma conseqüência, é um dos efeitos do sim. Onde que incide essa crítica, esse não? E como ele é apenas efeito de um sim? Ele incide basicamente nos dois modos de vida humanos perderem a relação com o imediato, que são: o movimento que atravessa o corpo, que a gente chama de “regime de luz” ou de sensibilidade, campo da sensibilidade, o campo corpóreo e o outro que é o campo do pensamento ou do tempo. Uma coisa é o movimento do corpo. Outra coisa é o tempo no pensamento. Uma coisa é a região do corporal, a outra é a do intemporal. São regiões distintas. Não significa que haja uma dicotomia entre alma e corpo. São duas multiplicidades autônomas e, por assim serem, devem ser infinitas. Então é preciso reencontrar a dimensão infinita do movimento do corpo, do tempo e do pensamento a partir da finitude que nos atravessa e nos constitui. Nós como finitos, temos um começo e um fim finitos, temos que retomar esse infinito. Sem esse infinito a gente não apreende a noção de autonomia real. A gente fica com aquela noção moral da autonomia , que é uma noção kantiana. E como acreditamos, junto com Nietzsche, que moral e autônomo se excluem, então a gente precisa criar uma autonomia real. E encontrar a autonomia real significa reencontrar a dimensão do infinito e do imediato. Rencontrar a dimensão do inesgotável no acontecimento. Reencontrar a dimensão do real virtual sem o qual não haveria o real existencial, sem a qual não haveria realidade. A realidade atual é alimentada, fomentada, é maquinada pela realidade virtual. Realidade virtual e real, uma pressupõe a outra. É essa realidade virtual que está apagada, nadificada. Nietzsche usa uma expressão interessante quando usa a expressão niilismo. É uma vontade de nada. Niil não é não ter, é uma nadificação, uma desqualificação. Essa vontade de nada é dupla. Não se diz “nada” para esse mundo. Se diz tudo para um mundo superior. Viva o ideal, o valor superior. Como essa existência é declarada imperfeita, pelo mal uso do sofrimento, uma vez que se identifica dor e sofrimento em mal, imperfeição, diz um falso sim a um valor superior e então se desqualifica a vida e a natureza. Se lá é superior aqui é inferior. É um duplo nada. Lá é uma ficção, lá é o nada mesmo. Só que o desejo que investe na ficção é real e ele é introjetado em nós e nos desqualifica, na medida em que lá é mais que aqui. Você cria essa distância. Em busca de nada se nadifica, desqualifica a existência. Como? Perdendo a capacidade de acontecer. Em que zona isso se dá? Na zona virtual das relações. O virtual, de fato, não existe. Mas ele é real. O que faz uma vida separada do que pode? Jamais apreende a dimensão do virtual. Para os que têm a vida separada do que pode, o virtual é nada mesmo. É uma matéria que escapa. É como apreender o sentido incorporal? Você não pega. Mas aí você reduz a realidade ao corpo, é uma coisa estranha.

A questão crítica só se torna de fato interessante e não mais ressentida, quando começamos a vislumbrar esse outro real virtual. Esse real virtual é a dimensão de um sim afirmativo, como se já gerasse uma direção, uma tendência à produção de uma novo tipo de realidade que, por conseqüência, desconstroi as condições anteriores que nadificava uma vida ou que nos roubava a superfície. A vida separada do que pode é nada, e a vida ligada ao que pode é o real virtual. O real virtual desaparece diante de nós quando nos separamos do que podemos. Se eu começo a cultivar e reencontrar essa dimensão do real virtual, ao mesmo tempo eu sei de que maneira se opera essa nadificação, essa desqualificação sobre o movimento e sobre o corpo. Eu apreendo o modo do movimento se cristalizar em mim, do tempo e do pensamento se instantanear, que é uma outra maneira de se cristalizar. Há uma segmentação do movimento. Há um falso corte do movimento, assim como uma segmentação no tempo, um falso corte no tempo e, portanto uma necessidade de recosturar o movimento e o tempo. Essa operação é feita por dois tipos de máquina social, tanto sobre os corpos como sobre as almas. Pelo uso do movimento e pelo uso da linguagem. Você produz um tipo de sensibilidade, um tipo de organismo no corpo, uma subjetividade no pensamento e um tipo de objeto de pensamento significante, que inviabiliza o imediato no pensamento e no movimento. Inviabiliza portanto o reencontro com a fonte que é essa superfície, que não precisa de nenhuma referência para ser justificada, legitimada ou para se operar.

Como a gente reencontra essa dimensão, se ela não existe? Através do que? De que elemento existente, pois estamos na existência. Como meu corpo existe? Vamos apreender a região onde eu sinto que meu corpo existe, a região em que o meu pensamento pensa. Essas regiões que temos que começar a cultivar. E elas necessariamente são regiões preenchidas, ocupadas, povoadas, determinadas. Onde? Nos encontros que fazemos, nos encontros que a vida traz. É sempre no plano dos encontros que se dá. Você encontra com ideias, com imagens, com sensações, com pessoas, coisas, paisagens, não importa o que. Sempre essas regiões são preenchidas e determinadas. Se o meu desejo já está separado do que pode ou ele é confundido com o estado de corpo, com o estado mental, com estado de época, de relação, ele não consegue ver nos outros ou nas coisas que encontra, senão estados de coisas também. Então ele vai de estado de coisas para estado de coisas, de signo para signo, de seres à seres, de imagem para imagem, de sujeito para sujeito, de sujeito para objeto, de objeto para objeto, de substância para substância, de substrato para substrato. Mas não vai de movimento para movimento, de devir a devir, de tempo a tempo, de fluxo a fluxo, de acontecimento a acontecimento, de intensidade a intensidade, de potencia a potencia, de força a força. Essa dimensão está apagada, esquecida.

Como somos determinados nos encontros que fazemos? Já estamos sem a condição de encontrar o movimento enquanto movimento, o tempo enquanto tempo, a intensidade enquanto intensidade, já estamos nesta falta. Estamos e cultivamos as condições que nos garante a conservação de nós mesmos. O nosso valor supremo, no modo de vida reativo, separado do que pode, é a conservação. Não é o ultrapassamento, a criação, a ousadia, a invenção, não é a produção de um novo tempo, um novo lugar, um novo elemento. É a conservação de si. Claro, sempre melhorando, do ponto de vista do ideal, do progresso. Vamos evoluindo, progredindo e assim vamos melhorando a vida. Mas é a postura moral que faz isso. Então na experiência, na experimentação, o que se passa, já que nós apreendemos a região do virtual, se conseguimos apreendê-la, através da existência, e a existência tem essa dimensão do concreto, então concretamente somos preenchidos na existência e como esse preenchimento concreto na existência opera uma inversão, ou seja, nos separa do que podemos.

É a qualidade dos nossos alimentos, dos nossos encontros, das nossas relações que nos entopem ou nos liberam. É o jeito de encontrar, é o modo de viver. Aqui reside o problema do mal, ou do bem, ou da doença ou da saúde. Da liberdade ou da escravidão. Exatamente no entre. Não está no outro, nem em mim. No outro e em mim existe uma cumplicidade nesse entre. Somos vítimas de um entre, de uma máquina social, do capital, do poder tal. E precisamos criar um jeito de combater as forças do mal. Isso tem vários nomes. Todos os nomes das forças do politicamente correto que atravessam a sociedade. Nós, na verdade, continuamos piedosos, desse ponto de vista. Continuamos a achar que a natureza tem uma dimensão malévola e que precisamos investir numa outra dimensão, a do bem, e que por ela seríamos resgatados. E hoje em dia a coisa mais cínica é que esse papel é desempenhado pela lei. Inclusive na ideia de diretos humanos. É um cinismo extremo, embora maioria das pessoas não perceber como isso opera. Os valores em si. Os mais humanos, os mais democráticos, os mais libertários, escondem isso hoje em dia.

Aproximar dessa região do imediato, implica ao mesmo tempo, bodas, uma espécie de cópula com essa região que está dentro de nós mesmos, mesmo que seja uma coisa esboçada, vaga, mas é aí que nós conseguimos um plus de potência, de energia, para justamente apreender o que cristaliza essa potência. Onde? Nas relações que fazemos no dia a dia. Através do uso do nosso corpo e do uso da nossa linguagem. Sempre nessas duas dimensões. O que Foucault chamou de regime dos corpos e regime do discurso.

Na dimensão da linguagem faremos a sua desconstrução, seja oral, escrita, seja ao falar, ao ouvir, ao ler, ao escrever, ao se relacionar signo semiológico ou semiótico. No regime dos corpos a desconstrução será feita no movimento, no gesto, nas ações e nas paixões, naquilo que se passa no plano das velocidades e lentidões e nos ritmos corpóreos.

Isso tudo nos remete à questão da experiência, que falei na aula passada. O acesso à região do virtual, que o niilismo nadificou, se faz na existência, nos encontros que fazemos e a porta de entrada e saida para esse entendimento é a experimentação. Uma vida não pode ser chamada de vida, se não tiver acontecimento. Viver é acontecer. Acontecer é variar, é se modificar. E não é um modificar-se metafórico, uma metonímia, uma analogia. Não é apenas um faze de conta, nem é uma imitação, nem uma busca de uma identificação, nem a tentativa de encontrar um fim acabado, que salvaria a nossa vida. A saída perfeita para uma vida perfeita, nem buscar uma origem para voltar ao útero original do cosmo ou de deus. Viver é acontecer, é passagem, é se modificar, se diferenciar. Isso se passa naquilo que a gente chama de experiência, na experimentação. E nós temos uma visão muito vulgar e ordinária do que é experimentar. E o melhor que a gente consegue dizer a esse respeito é que experimentar é enriquecer. Então a gente evolui, enriquece, aprende, vamos experimentando cada vez mais valores, mas não basta a declaração de intenções. Será que a gente enriquece de fato ao experimentar? É só v. observar? Uma pessoa jovem, depois aos 25 anos, começa a ficar cansado, aos 35 já quer ficar em casa, quer ficar no seu cantinho. Ou seja, ao invés da vida, da experimentação gerar mais vida, ela vai gerando cansaço. É justo aquela ideia de Heideger “o ser para a morte”. Seríamos heidegerianos, nesse ponto? O ser só é o ser para a morte para quem está desconectado ou separado da fonte do acontecimento. Daquilo que Nietszche chama de “viver no próprio tempo” ou que Deleuze chama de “devir criança de cada idade”, “devir jovem de cada idade”. Cada idade, cada tempo, tem o seu frescor, seu ineditismo, sua fonte essencial. Mas nós vislumbramos no tempo o túnel para a morte ou para uma outra vida, ou para o que for. Uma vez que está separado do devir a gente fica preso ao que vai ser e, ao mesmo tempo, referido ao que foi. Fica entre a memória e o projeto e justamente a eternidade que se faz no acontecimento, no devir, a gente joga fora, ela passa a nossas costas, passa apesar de nós. Está o tempo inteiro passando. Como o conto do Henry James, “ A Fera na Selva”. Alguém sente que esta prestes a viver um amor e esse amor está bem diante do nariz. Quando vai ser, quando vai ser? De repente já foi e não tem mais como retomar, porque foi. E assim a gente passa a vida, perde o acontecimento o tempo inteiro. A gente sempre procura o mais importante em outro lugar. Gil, no seu modo simples de dizer, canta “ o melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Será que a gente consegue ter uma vida onde o melhor lugar do mundo é aqui e agora? A gente sempre acha que está perdendo alguma coisa em outro lugar. Que está aqui de modo conformado, pois não conseguiu coisa melhor. É uma visão depreciativa de si mesmo, pois algo de impotente está acontecendo com você. Ou está fixo no que foi, ou no que vai ser. Pois é justamente no que está se passando que está a fonte de qualquer realidade, e eternidade. Porque fomos educados, ou deseducados para nos separarmos dessa capacidade de acontecer no imediato. É claro, uma vida ligada a essa capacidade de acontecer, desde quando ela precisa pedir licença? Desde quando ela vai servir a alguma demanda? Mas isso é insuportável para uma sociedade fraca que precisa instaurar um regime de demandas extrínsecas e capturar a vida. É insuportável. Então a sociedade cria instituições justamente para separar a vida: as mães, os tios, as vós dizem vinde a mim as criancinhas para que eu as separe do que elas podem. E aí eu as domestico. Para preencher a miséria existencial, para seguir investindo no sistema que alimenta a dimensão parasitária da vida. São os supérfluos, os que não fazem a diferença, que não criam nada, que sempre precisam de um reconhecimento, uma provisão, um provedor, tiram lucro da provisão do outro. As crianças são uma maneira de reproduzir isso.

Esse desinvestimento opera na dimensão prática, experimental da vida. Vai para escola para adquirir uma competência, uma autoridade, uma posição, uma profissão, um reconhecimento. A pessoa vai crescendo, a vida vai se empoderando com os prêmios, com as iscas que o poder oferece. É o poder que dá existência. Neste empoderamento eu existo mais, tenho mais influência social. Consigo fazer mais coisas, mas tudo em relação a referências exteriores, ainda que você acredite que elas já estão em você. Então o que é o processo de experimentação? É um processo de entupimento. É um processo que liga ao peso, ao espírito de gravidade, de pesadume, que vai te tornando cada vez mais pesado, mais atolado, mais entupido, mais triste. Ainda que tenha sempre um jeito de compensar, pois na vida tem sempre esse descontentamento, como se a vida fosse uma insuficiência insuperável. Já que é assim, vamos inventar um jeito de compensar um pouco. Às vezes passa vida achando que é feliz dessa maneira. A questão de felicidade é uma ficção inventada no séc. 18, 19, que substitui a ideia de salvação.

Na medida em que eu aconteço, que eu produzo realidade e conduzo o meu destino eu fico mais entupido, mais triste, mais pesado, mais fixado, mais sedentário e todo esse passado, como fala Marx “pesa no ombro dos vivos, como mortos”. Mas, e os mortos e a história que fazemos em nós? Essa que nós somos responsáveis. Como produzimos essa estória e esse destino para nós mesmos? Esse passado não foi, ele cooexiste, estamos com ele o tempo inteiro e ele vai se modificando com a gente. Por isso a ideia de experiência é a porta de entrada de tudo. O que é experimentar? Precisa ter muito cuidado com o experimentar. Não é de qualquer maneira. Não poderia se chamar experimentação esse suposto enriquecimento, essa instrução, essa aquisição de coisas, esse consumo de imagens, de discurso, de objetos, de signos, de relações, de outros. Nós consumimos os outros e os outros nos consomem. Não é essa a ideia de experimentação.

Experimentar não é confundir signos, opiniões, discurso, palavras. Se você não tem opinião, então leia a Folha de São Paulo, ou a Veja.

Ou consumir imagem, sorvete, comida. O jeito como se consome as coisas. Comem-se como porcos. Como diz D. H. Lawrence, ao comer uma maça deve sentir o cheiro da terra, o orvalho, os elementos da terra. Onde está a zona de sensibilidade experimental, que te modifica, que cria um outro modo de desejar, de se relacionar com a maçã? Ficamos consumindo signos ou palavras mortas. A palavra já é o pensamento. Quando consumimos discursos, estamos inviabilizando, jogando fora nossa capacidade de pensar, colocamos a linguagem, a palavra no lugar do pensamento. A palavra tem um significante, mas ela já tem um significado na relação com o outro, no meio da frase. O significado já é uma redução, um aprisionamento do pensamento, do sentido. Já é a mortificação do pensamento, um fantasma. Como diz Nietzsche, nós só consumimos múmias e fantasmas. Fantasmas enquanto esses signos, essas palavras mortas, sem corpo e sem vida e imagens como múmias ou objeto de consumo, que você consome e no momento seguinte, o mais rápido possível,esse consumo de imagem ou de corpo se torna uma múmia. O capital tem essa necessidade de fazer com que o elemento, uma vez que atravessou o outro lado da axiomática, que eu o adquiri, ele tem que perder o valor o mais rápido possível.

Viver é acontecer, não como faz de conta. É se modificar, desejar de modo diferente, acreditar de modo diferente, investir de modo diferente, a partir de uma nova experiência. Algo em mim deseja, pensa de modo diferente a partir de uma experiência. Eu encontro e me modifico, entro em devir, eu não viro a outra coisa. Não busco uma identidade em mim mesmo, nem fico imitando, nem faço de conta. Algo em mim me torna diferente do que eu sou no encontro que eu faço. Aí a experimentação é real. Se eu consumo palavra morta ou fantasma, imagens e múmias o que acontece com essa força em mim que se torna diferente do que é? Ela se torna cada vez mais pesada, ela não é alimentada, é como diz Nietzsche “a vida de camelo e de burro de carga acaba no deserto”. Nós nos carregamos de signo e imagens, fantasmas e múmias, de valores estabelecidos, de referências. O desejo que diferencia nós de nós mesmos vai acabar no mesmo buraco, na mesma insuficiência que se seria o existir. E isso demanda mais consumo, mais fantasma, mais veneno e mais múmias. Pequenos prazeres. Uns venenos para o dia, outros para noite. Esse meios quereres, esse modo separado ou impotente de desejar que diz ao meu desejo: falta o objeto. E no objeto já está o anzol. Nós penduramos nosso desejo naquilo que nos é oferecido, nos discursos, na linguagem, consumo teórico, moral, de opiniões, de ideias ideológicas, nós penduramos nosso desejo no modo corporal, que é demandado pela máquina social. Como diz Artaud, “cú de rato morto pendurado no teto do céu”. É o nosso desejo pendurado no regime de signos e no regime de luz. Desse ponto de vista nosso desejo é um cú mesmo. É uma falta, um buraco que aumenta cada vez mais, pois não há um alimento, uma fonte real. O alimento está em outro lugar. Talvez na lei, no Estado, no progresso, na felicidade, no capital, talvez, em deus, ou seja lá o que for. Não é a toa que o ecletismo tomou conta da vida moderna, cada um encontra o seu: nova era, tem várias maneiras de buscar esse algo que estaria fora de você. Essa busca só retro alimenta e aumenta esse buraco negro dentro de nós. É como o buraco negro na física mesmo. É aquela região de nós mesmos que não volta para a vida. Apesar desse buraco negro na física ser mais sutil. Na verdade não existe buraco, não existe falta. Existe velocidades imperceptíveis ou que a gente não capta. O buraco negro é a tomada de velocidade das partículas mais rápido que a luz. Então vamos fazer da nossa vida esse tipo de buraco negro? Existem partículas mais rápidas do que nós mesmos, que o nosso pensamento, nosso movimento, que nos arranca de nós mesmos? A gente é capaz de habitar essa velocidade? Que velocidade é essa? É a velocidade extrínseca do poder, da imagem? Daquilo que Marx chama de movimento aparente gerado pelo fetichismo. Ou é a velocidade real do nosso desejo que acontece em zonas não reconhecidas ou cultivadas socialmente? Qual é a qualidade do nosso buraco negro?

O buraco negro em nós, o eu, o sujeito, é uma dimensão social, é uma instituição social. Assim como a prática do medo, da violência, da insegurança, são instituições primeiras, e a segurança é só um efeito da violência gerada. Gera violência para oferecer segurança. Gera desconfiança para oferecer confiança. Gera guerra para se oferecer paz. Desqualifica para se requalificar. Cria-se o buraco negro para pendurar o desejo num céu que o resgate. Que céu é este? É o consumo? De uma boa casa, de uma boa praia, uma viagem? Uma família, um amor, um ideal, uma vida bem sucedida? Que teto é esse? Que significante é esse? Que significante dominante que a gente inscreve no horizonte do nosso tempo, que faz com que nosso desejo vai atrás. E assim que opera a máquina social. Nisso os publicitários são mestres. De desenhar o significante, os mais necessários. São mestres em pegar o que é necessário, do ponto de vista do capital, e transformar em necessário, do ponto de vista da vida. Confundir o vital com o capital. Para eles é tudo a mesma coisa. São os desenhadores, escritores, os escultores do significantes que penduram nosso desejo, que fazem aumentar o buraco negro em nós. Buraco negro que Deleuze-Guatari chamam de muro branco. Essa dupla relação que cria uma rostificação em nós. Uma máquina de rostificação que faz com que a gente perca a cabeça. O rosto é aquilo que se põe no lugar da cabeça. Onde há rosto, a cabeça já foi cortada, já perdemos o corpo. A rostificação é essa máquina abstrata de separação de nós mesmos do que podemos. É justamente a ausência de realidade no acontecimento que é um real virtual. É um muro que se põe no lugar da fronteira. Na fronteira se instala o muro. A fronteira é o lugar onde se dá a ligação, a diferenciação. Como membrana. Não é o lugar que separa o dentro do fora. É o que põe o dentro e o fora em contato imediato de modo copológico. O muro faz um corte artificial. As nossas instituições sociais cultivam esses muros, de não prover, de não membrana. É isso que se põe no lugar do acontecimento. A maioria acha que acontecimento é um fato qualquer, uma ocorrência. Nietzsche diz que não existem fatos. Existem interpretações de forças que se apoderam do acontecimento. Esses fatos, essas interpretações, na verdade, escondem uma dimensão inefetuável, inesgotável do acontecimento. A dimensão virtual do acontecer. É essa dimensão que precisamos trabalhar. Você faz da ocorrência, do fato, não um acontecimento acidental, mas a singularidade sem a qual aquele fato não ocorreria. Você encontra inclusive a questão da repetição daquele acontecimento, que é a singularidade. Você encontra a singularidade do acontecimento e deixa de ter uma visão extrínseca do acontecimento, como se ele fosse um acidente, um acaso. Encontra o necessário do acaso. O essencial do acidente. O ser do devir. Reencontrar a fonte do real, o começo e o fim do desejo. O desejo começa e termina no acontecimento. O objeto e o sujeito do desejo é o acontecimento. O acontecimento quer em mim, não é um eu que quer em mim, para gerar uma diferença no que pode acontecer. É a minha parte que faz a singularização, que faz uma diferença indispensável, e não supérflua. E daí que eu faço da minha vida um destino. Um ato que se dá no encontro, que só acontece pela qualidade da experimentação. Esse encontro é essencial. É preciso encontrar, inventar, experimentar, cultivar um outro modo de nos dispormos em transação.

Isso começa por uma ausência de movimento. Fique parado, deixe de se mexer, largue o controle remoto, deixe de “precisar de”. Comece a criar um gosto pela solidão, pela catatonia, pela idiotice, fique mais lesado do ponto de vista da eficácia social. Prefiro não, do personagem do Herman Melville, Bartleby, o Escriturário. O artista criou no personagem uma região do desejo que não investe na demanda, não atende a demanda. Prefiro não. Não é nem não fazer, nem não pensar. Ele para no não. Nem se sabe o conteúdo, nem interessa. Ele suspende o sensóreo motor, não é mais demandado. Lógico que com prudência, pois o Bartleby acaba mal. Fazer isso de modo a não se despotencializar. Ao contrário, ganhando potência. Esse é o começo.

Em Matéria e Memória, de Bergson, fica muito clara a questão da zona da indeterminação, que é a zona de liberdade. O cérebro é uma zona de indeterminação, onde a demanda da resposta motora do meu corpo chega o tempo inteiro por objeto percebido. A percepção é a colocação de um problema para o meu corpo, um problema de movimento. O objeto conhecido já é a colocação de problema para o meu corpo para ele se estender. A percepção é uma ação possível sobre o objeto. A sociedade te põe coisas. Existe uma percepção exterior, um regime de luz, um regime corpóreo, que é estabelecido socialmente, que o desejo acredita que tem que responder aquilo, mas aquilo é uma palavra de ordem e você vai cumprir a ordem de fora e fica atendendo à demanda. Na percepção, no regime perceptivo, no regime de luz, numa certa semiótica social, na arquitetura, no urbanismo, nos meios de transportes, em tudo, tem uma demanda, que faz com que os movimentos do corpo se pendurem, e respondam a estas demandas. Bergson diz: na medida em que você suspende esse sensório-motor (o sensório é o que a percepção demanda e o que o motor responde ) você aumenta a zona de indeterminação, começa a se conectar com a região virtual de si mesmo. A suspensão é como uma espreita animal. O animal está lá, como que contemplando os elementos da natureza, está dizendo sim a todo aquele complexo atmosférico em volta e aí se lança numa ação eficaz, porque colheu tudo antes. Ele desenvolveu sua potência receptiva, sua capacidade de ser afetado. Essa é a primeira dimensão da experiência. Para a gente começar a cultivar uma experiência real e extraordinária, fora da experimentação vulgar, essa que nem problematiza.

Existem duas maneiras de problematizar as coisas: com o corpo e com o pensamento. O corpo problematiza também. O movimento no corpo problematiza. O tempo no pensamento problematiza. O tempo problematiza o próprio tempo. O movimento problematiza o próprio movimento. Problematizar é um cultivo. Precisamos criar gosto pela problematização. No problema tem riqueza. Na medida em que aumenta a capacidade receptiva, vai aumentando a capacidade de colocar o problema de modo mais real. De sair das ficções que geram falsos problemas e daí, necessariamente, falsas respostas. Aumentar a capacidade receptiva te dá também a condição para apreender o real do acontecimento como essência problemática, como fonte de enriquecimento, de fortalecimento.

Na observação real você tem elementos concretos: cores, figuras, linhas, coisas, quantidades, qualidade de movimentos. Para que se observe é preciso ter relação com isso. Algo se relaciona. A relação mesmo já é abstrata. Ela é incorporal, a relação é à distância. Há uma distância no espaço e no tempo. O próprio ser dessa distância é o virtual. O vazio do espaço, o entre tempo dos tempos, esses hiatos, intervalos, que na medida em que você suspende o movimento, você suspende o tempo da existência ou que você suspende a relação automática entre o sensório e o motor e aí que o caos, o virtual, todos elementos que não eram contemplados começam a aparecer. Como quando relaxa o corpo ao dormir. Essas viagens que acontecem através dos sonhos, só são possíveis porque suspendeu o sensório motor. O virtual começa a entrar. A matéria de criação está aí. Se ficar o tempo todo correspondendo a demandas não se cria nada. Existe um ditado: “Se eu trabalho não tenho tempo para ganhar dinheiro”. Isso faz sentido. A palavra escola vem do grego e significa ócio. Os pensadores gregos, não que desprezavam o fazer, mas tinham uma posição crítica em relação ao fazer. Se você entra num fazer tarefeiro não tem tempo de criar e pensar. É lógico que tem que ter essa dimensão prática, mas jamais perder a dimensão criativa, a potência de criar ao fazer e não a potência de reproduzir, de ser tarefeiro. Às vezes é uma mera tarefa que você responde automaticamente, ok, você está liberado para fazer outras coisas, assim como o estômago quando está fazendo a digestão e você está liberado para fazer outras coisas. Mas existe uma zona que você liga o fazer ao criar, fazer com potência criativa. Essa potência começa na capacidade receptiva, naquilo que chamamos potência de sermos afetados, essa potência pode aumentar à medida que crio mais aberturas, que eu torno capaz de me abrir para o inédito, o inesperado, para zonas até perigosas da existência. Para isso, primeiramente, tem que vencer o medo. Don Juan, de Castanheda e até mesmo Nietzsche diz que o primeiro inimigo do guerreiro é o medo. E é o medo a primeira instituição das sociedades escravas. A vida não acontece sem ser submetida a esse terror, por isso ela pode ser domada, domesticada. A cultura do medo é fundamental. E para experimentar é preciso vencer o medo, o que não significa ser imprudente. No lugar do medo, uma arte das doses. Experimentar na medida em que pode experimentar. Mas é um limiar que não se tem certeza se vai afundar ou não. É uma sensação que precisa desenvolver. Ou, se você se ferrar, que o faça até o ponto que pode retornar e se não retornar, isso também faz parte da perfeição da vida. É claro que a vida, uma vez dobrada, ela quer desdobrar-se do modo mais potente possível, quer ir o mais longe possível, segundo o que a constitui. Ela não vai querer sair de si mesma de modo idiota, qualquer. Não vai numa linha suicidária, a não ser por captura. Desenvolver a arte das doses, como um modo de prudência, que faz frente ao medo. Esse é o melhor lado do aumento da capacidade de ser afetado. Do ponto de vista crítico eu deixo de investir só naquilo que já tem forma ou figura, naquilo que já tem um encadeamento de signos admitidos socialmente. Deixo de me relacionar com isso, isso não é a dimensão do bem, da verdade, da justiça, do poder, porque aquilo também varia. A linguagem começa a variar, começo a experimentar uma gramática fora da fonética estabelecida, eu começo por a língua em variação, a fazer um uso diferente. A língua como expressão de um desejo em indagação. Fazer como Kafka que fazia língua piar, miar, grunhir, atingir a dimensão musical da linguagem. Para isso é preciso perder o medo de escrever, de ler, de falar de modo não correto.

Existe gente que não fala, mas pensa muito, pois o pensamento não se confunde com a linguagem. Eu posso variar a linguagem sem perder potência na relação do uso da linguagem com o interlocutor, pois o interlocutor pode nos desqualificar e se eu acreditar nisso, eu vou me apegar de novo ao modo correto de falar, e eu me proíbo essa experimentação, de entrar em variação. Foucault diz bem, uma forma de discurso é uma forma de época, ela é o que te permite dizer o que você pode dizer e que te faz dizer muitas coisas. Você nem sabe como, mas acaba dizendo. Só a partir do séc. 19 foi possível dizer que a loucura é doença mental. Que uso da linguagem permitiu que se inventasse a psiquiatria, o louco como doente mental, o próprio objeto da psiquiatria como sendo a doença mental e todos os seus mecanismos e dispositivos de implementação, de concretização desse limite que seria a loucura. Isso depende de um regime de signos e se nós nos submetemos ao modo correto de enunciar… O que é um enunciar? Um sujeito de enunciado? Já é uma autorização, já é uma verdade. Quando ingressamos numa universidade nós incorporamos o sujeito de enunciado para que nós, como sujeitos de enunciação, tenhamos autoridade, reconhecimento. Incorpora a forma do enunciado, que é um regime de signos, que é determinada por um modo de relação de forças ou um campo de poder. Se a vida se submete a isso ela não se libera jamais. Não vai fazer um uso experimental da linguagem. Da mesma maneira no corpo. O que é tolerável socialmente que o corpo faça? O que não é permitido que o corpo faça? Começa a entrar na zona do permitido, do cultivado, do que é tolerável. As etiquetas têm tudo a ver com isso. Etiqueta de um lado e a ética do outro, que não tem nada de ético e sim de moral. A etiqueta é toda moral e a ética também.

A porta de entrada da experimentação é uma capacidade de abertura ou de disposição, uma espécie de se permitir certos movimentos e pensamentos. Se permitir uma certa loucura: as vezes você não sabe mais se é você que pensa ou se algo pensa em você. Se você se move, ou se algo que move em você ou se é algo que te move. Existe um namoro importante. Esse cultivo de si mesmo é essa zona estética onde tudo se põe em questão, em variação e onde tudo adquire tendências, sugestões. Você não tem certeza absoluta de nada, mas sabe que tem zonas pulsantes ali que está apontando por direções. E qual é o critério? É o que acontece com sua potência. Você se fortalece ou se enfraquece? Se você se enfraquece espere um pouco mais para ver se, de fato, aquilo é fraqueza. Enfraqueceu mais? Dá para agüentar um pouco mais? Adoeceu, doeu? De repente aquilo esconde uma potência muito maior ou não, o enfraquecimento já é uma direção que não dá mais. Tem algo em mim que vai para outra direção, deixa esse algo dominar, experimente de novo. Fazer um laboratório de nós mesmos, igual fez Nietzsche da sua vida, um laboratório vital, com seu próprio corpo, e que construiu uma obra que chegou a limiares que o humano nunca tinha chegado antes. Ele não foi se instruir em algum lugar, se formar em algum lugar, buscar a referência tal. Isso nos já é dado de alguma maneira. Nunca usar as referências como ponto essencial, mas como uma espécie de meio, de oportunidade, de ocasião para se abrir cada vez mais e fazer de si um laboratório. Se, no tempo, eu tenho uma forma como formato, se no espaço eu tenho outra forma como formato, na medida em que eu me relaciono com a zona do movimento enquanto movimento em mim, no encontro que meu corpo faz com outros corpos eu vou desconstruindo essa forma do movimento e compondo linhas de movimento. Pondo linhas no lugar de formas. Fazendo com que a forma encontre suas linhas constitutivas. Tem algo ali, dentro de mim e que vem de fora também. Eu sou cúmplice daquela forma e daquela cristalização do corpo e na medida em que eu estou em variação eu posso criar um jeito que eu começo a perseguir aquela forma. Onde que ela começa? Como ela vai de lá prá cá? Criar as pontes, fazer continuidades reais. E não só imaginar que ela é isso e opera assim e aí fica uma coisa esquizofrênica. É esse rigor que podemos cultivar. É assim que faz o verdadeiro filósofo, não opera nenhum movimento de pensamento pela imaginação ou pelo simbólico, ele opera pela passagem real. Bérgson diferencia da lembrança, ou da memória ou a diferença do tempo com o signo. Geralmente as diferenças são feitas de modo imaginário, simbólico. Imagina-se que o imaginário é suficiente para entender o real. Bergson pega o movimento. O que é perceber? Ele parte já do objeto. Não haveria percepção sem o objeto percebido. Ele vai na matéria, começa a ver o movimento na matéria e vem acompanhando isso. Isso vai passando pelo sistema nervoso, retorna, acompanha passo a passo. É essa experimentação que devemos fazer, ao menos naquilo que nos interessa. A gente só é capaz de dar conta de tudo à medida que faz uma coisa só, de uma vez só, aí faz isso em tudo. É suficiente para entender o real. É uma questão de gosto de vida, de passagem, de dança, de estética, de rigor. Nesta capacidade receptiva eu encontro primeiro aquilo que me fecha, que me torna não receptivo. Então eu vou tentar receber o que não me recebe, aí eu começo a entrar. Isso que é desestratificar o estrato, ir do decalque ao mapa, na linguagem deleuziana.

Existe a instituição do medo, do ressentimento, do ódio, do intolerável, do não querer entender, da vingança. Sem isso o poder não se sustenta. Por isso a mídia é inteiramente aliada.

Experimentação, abertura, aumento da capacidade receptiva, o primeiro passo é vencer o medo. Mas não se vence o medo por declaração de intenção. Qual a força que se opõe a ele, precisa encontrar essa força. Só se vence o medo presenciando ou apreendendo uma espreita em você, um modo de espreitar. Você espreita enquanto não consegue ver de frente, se relacionar diretamente com a coisa. Espreitar à distância, isso já é uma arte das doses. Até que ponto você pode se aproximar ou se distanciar, tocar. Qual é a justa distância onde aquilo me faz crescer e variar. Esse cultivo da distância. Amor ao distante, não ao próximo. Justo o inverso da massa cristã. Essa distância que faz com que você apreenda a presença de outra potência, que pode ser um presente para você, um aliado, ou uma ameaça. Ma é aí que esta a fonte, o enriquecimento que dá o plus de potência. E com este plus que vou também aumentando a capacidade da própria prudência e, ao mesmo tempo que aumento a capacidade receptiva, pois aí eu já venci alguns obstáculos e posso me abrir ainda mais. Diferencio mais as distâncias, me relaciono com mais elementos ao mesmo tempo. Não é nem uma questão numérica, é uma questão de qualificação de elementos coexistentes na minha relação, percebo mais nuances. E quanto mais nuances, mais elementos eu me relaciono, mais dobras em mim eu faço. Mais consistência eu crio ou ganho. Mais consistência, mais capacidade de continuidade ou de variar, conservando esse modo de variar. Mantendo uma continuidade de si mesmo, senão um coisa acaba na outra, que acaba na outra e nada se produz. Uma continuidade essencial e qualitativa de elementos que vão se compondo e coexistindo com a minha própria potência, formando dentro de mim um fora selecionado. Ao selecionar um fora, eu produzo um dentro potente que, voltando para o jogo é capaz de, a partir de decalques, de muros, de coisas que opõe a vida, desenovelá-las. Criar linhas nas formas, fazer do ponto uma velocidade. Desubstancializando, descoisificando as coisas. Entrando numa relação com o movimento enquanto movimento, a velocidade enquanto velocidade, a intensidade e o tempo enquanto intensidade e tempo. É essa maneira de se investir na própria diferenciação que produz modificação real em você. Você começa a vislumbrar outras dimensões da experimentação. O objeto da experimentação, na mesma medida em que você, partindo das coisas, encontra movimento, ou partindo das palavras, encontra sentidos, você desinveste as coisas e as palavras, mas se relaciona com movimentos, tempos e sentidos. Zonas de você mesmo deixam de ser coisas ou estado de corpo, assim como as palavras deixam de ser estado de pensamento ou estado de consciência. Você se coloca em variação, encontra a multiplicidade em você e não uma unidade, um sujeito, uma consciência, uma falta, uma falsa unidade. A multiplicidade em você sobe e encontra outras multiplicidades fora. Multiplicidade se relacionando com multiplicidade, sem a interferência de uma unidade que unifica tudo, que totaliza tudo. Já é uma liberação da referência, da lei, de deus, do bem, de qualquer referência que legitimaria a relação. A relação não precisa de uma referência. Ela se legitima por ela mesma. Seu horizonte é a afirmação, é o necessário que acontece em cada relação. O necessário é o crescimento da potência.

É um desinvestimento de coisas, de palavras, de signos de imagem, de sujeito, de objeto ao mesmo tempo em que eu foco no movimento e no tempo. Um investimento na passagem. Sempre, nas sociedades fracas, nos regimes de saber e de poder estabelecido fazem da passagem apenas um meio de ir de um lugar para outro, de um lugar imperfeito para um lugar mais perfeito. Sempre institui um bom sentido, ou sentido único nas relações, pressupondo um bom senso, o senso comum. Um desejo numa boa direção. Do ponto de vista ativo a da vida chamamos isso de desfoque da vida. Você desfoca o que interessa, a passagem. E foca nas coisas, nas paradas, no repouso, no outro, no sujeito, no objeto, nas imagens, nos signos. Quando eu habito essa zona da multiplicidade em mim e no outro, necessariamente o foco está no entre. Não no outro, nem em mim. O foco está na passagem e não no sujeito ou objeto e nem dentro do sujeito, está no modo de acontecer. Esse foco, esse cultivo, esse olhar da águia para aquilo que interessa, na abertura maior do horizonte. A águia é a quem a visão panorâmica maior, o olhar para a imanência, vai no máximo da altura e ao olhar a terra ela foca. Tem o mais amplo e o mais focado olhar. O nosso foco na passagem é a panorâmica maior, o horizonte absoluto da nossa existência. Focar na passagem, se tornar a passagem. Aí você ultrapassa o medo e conquista algo além da prudência e faz com que a prudência seja apenas instrumento disso. Conquista a ousadia da águia, a altivez. Na passagem você é indestrutível, implacável. A passagem é incapturável. Ela só é capturada por ficção. Só se deixa capturar quando acredita na ficção.

Precisamos ver em nós o que alimenta o medo. O medo nos fecha, ou melhor, a dor e o sofrimento nos fecha. Nós temos uma relação negativa com o sofrimento. Na verdade, eles são os temperos da vida, detalhes para que a gente se ultrapasse e se torne muito mais interessante, são presentes da vida. Melhor que manter a vida num estado morno, onde nada se passa de interessante. Precisamos de anestesia para a dor: diversão, prazer, sexo, festas, para espantar a tristeza. Mas é como jogar a dor embaixo do tapete. Vai voltar. É o que faz a psiquiatria que dopa os pacientes com química. Aquela energia que era uma potência criativa, de mal jeito, fica toda ali anestesiada. O Solitário Anônimo, documentário sobre um paciente que quer morrer e não o deixam morrer. O humanismo e a piedade em nós não permite. Mas que violência é essa? A qualidade de vida não importa, vai levando. Mas aquela vida que é ativa, que não faz concessão, essa não dá, isso não existe, é utopia! Esse desprezo por essa dimensão perfeita da vida.

A vida é perfeita, embora muita gente não acessar essa perfeição. A experimentação tem que nos levar para este ponto de vista, vencer o medo. E neste ensaio exercitar doses de prudência. Encontrar uma outra clareza. O segundo inimigo de Don Juan é a racionalidade, a clareza. Tem tudo claro, quando vai para a dimensão do micro, que está na moda agora, tudo é micro, micro político, micro físico, Deleuze, cartografia, uma verborragia incrível, esse discurso articulado, mas não há pensamento, há substituição do pensamento pela palavra, pelo discurso bem articulado. Não adianta ter uma clareza que tudo é molecular, tudo é micro, mas não faz a imagem disso. É como do tempo só apreender o instante, mas o instante é ficção, sempre tem a passagem. E não, você acha que pega um instante, e mais um e mais um e imagina que alinhando instantes você faz o tempo. Ou pega segmento e movimento, segmento e movimento e juntando tudo v. reconstrói o movimento. Nunca vai reconstruir o movimento juntando pedaços de movimento, pedaço de deslocamento com pedaço de deslocamento. É um falso movimento. O movimento da dialética. Hegel está nisso. Nesse falso movimento. E mesmo o marxismo que acha que a dialética é o modo verdadeiro de pensar. É uma falsificação geral do movimento. Você acha que está entendendo, mas este entendimento está no campo dos signos, das palavras. Quando eu digo: Viver é acontecer, acontecer é modificar, modificar é experimentar, não adianta ficar repetindo signos, é trocar uma palavra por outra. Modificar tem nuances diferentes do que acontecer. Acontecer tem nuances diferentes de experimentar assim por diante. Não dá para ficar na palavra senão nunca chega no acontecimento, no pensamento, no sentido real. Isso que é a falsa clareza. Não é o pensamento como a realidade mesma, é uma representação da realidade. Por mais que atinja elementos microfísicos, micrológicos, mas do ponto de vista ilustrativo, e não da expressão real daquela natureza. O elemento crítico e distinguir a palavra do sentido, o estado de coisas do acontecimento. Uma coisa é o acontecimento outra é o estado de coisas, que decorre do acontecimento. Ex: o fogo encontra o ferro. O ferro fica vermelho. O vermelho do ferro é um estado de corpo do ferro, o quente do ferro é um estado de corpo do ferro. E o esquentar, o avermelhar que acontece nesse encontro é o acontecimento. Mas não basta ficar no verbo, na palavra, precisa apreender o sentido que se expressa nessa expressão, o expresso da expressão, que é o acontecimento. O acontecimento se exprime na linguagem e se atribui ao corpo, mas não é corpo nem linguagem. O sentido é o que do acontecimento se exprime na linguagem e que ao mesmo tempo se atribui ao corpo enquanto modo de ser do corpo. Há uma unidade. A natureza é uma só, a ordem, a conexão é a mesma para corpos, pensamento, tudo, há uma mesma ordem, há uma ordem imanente só que ela se diferencia no incorporal e no corpo.

O terceiro perigo de guerreiro é o poder. Na medida em que você obtém certa clareza que ultrapassaria a clareza estabelecida, isso te oferece um poder sobre os que estão limitados a esse saber. Esse poder cria um gosto. Mas aquele que está, de fato, na verdadeira clareza, o que aumentou foi sua potência e não o poder. Aqui você tem uma bifurcação, ou você segue essa linha da falsa clareza que te empodera ou você segue a linha de um pensamento real que leva ao aumento da potência. O pensamento real não é aquele que uma faculdade opera em nós e que vai descobrir a verdade das coisas. O pensamento real é criador de passagens, ideias, articulado com dois elementos: a dimensão do comum, do ser comum, e a dimensão da diferença, da singularidade. A criação é sempre singular, mas só há criação singular quando se encontra o necessário ou o comum da relação. O comum é a dimensão do sim, afirmativa, que sem ela eu não afirmo a diferença, que diferencia em mim. Se não há essa afirmação da diferença, não há criação da passagem da diferença, da maneira da diferença diferenciar. A maneira de diferenciar é uma co-criação. Na medida em que eu apreendo o comum ou o necessário na relação, isso afirma a própria diferença. Nesse encontro há criação de uma singularidade. O que Bergson diz, uma ideia para cada coisa. Uma roupa justa para cada corpo. Não existe uma roupa que serve para vários corpos. Isso é a singularidade. Eu crio singularidades e então crio planos de continuidade, memória de futuro, as pontes que continuam a mim mesmo, que me lançam para outros devires, outras necessidades. Esse pensamento criativo, que ultrapassa essa falsa clareza, nos põe em contato direto com essa potência que aumenta numa condição auto sustentável, tem um <i>moto continuum</i> de si mesmo e vence o quarto perigo do guerreiro que é o cansaço. O grande cansaço ou a velhice. Na medida em que ganha poder, você não conquista a potência, a capacidade de produzir eternidade, de se continuar a si mesmo, de modo autônomo. O poder implica, necessariamente, uma referência, uma fonte que me torna dependente dele. Sem essa fonte eu fico sem poder. E essa fonte é completamente instável, logo desaparece e eu caio num grande cansaço. Como diz Nietzsche, “não viver antes do tempo nem depois do tempo, mas viver no tempo de cada coisa”, se manter no tempo de cada coisa, colado ao imediato e dessa forma vem, não o cansaço, mas uma velocidade absoluta. Cada vez mais, como diz Deleuze, linha japonesa, essa linha sóbria. Cada vez mais só o osso, o essencial, sem adereços, de pele, de carne, penduricalhos, só o necessário.

Estamos falando então da experiência, não da experiência vulgar, que não opõe prática e teoria. Trata-se experiência de modo extraordinário, de modo pleno, que acontece do ponto de vista do pensamento, do corpo, da ética, da capacidade seletiva , da capacidade de se conservar, de se criar, de continuar o mesmo, do cultivo desse modo de aprender e ensinar, da educação para a potência. A experiência própria do pensamento, que é diferente da experiência do corpo, da ética. São distintas, ainda que elas se atravessam. Esse modo de apreender a experiência, de vencer os quatro riscos do guerreiro para uma vida forte, aplicado ao pensamento e ao entender de modo distinto o que é pensar. Pensar não é contemplar ideias prontas, não é um sujeito que reflete objeto e não é uma inter subjetividade que comunica informação, mas tem a ver com criação.

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