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Formação Pensamento Ocidental – Aula 13/32 – Epicuro e Lucrécio

Luiz Fuganti

Hoje vamos entrar em Epicuro e Lucrécio, acho que com duas aulas nós liberamos esse pensamento nas questões mais essenciais. É uma filosofia absolutamente pluralista – acho que é a filosofia mais pluralista da Antiguidade. Deleuze mesmo diz que os atos de nobreza do pluralismo em filosofia começam com Epicuro e Lucrécio; era uma filosofia absolutamente plural, ela parte já direto da diversidade e da multiplicidade, o princípio já é a diversidade. Então ela se diferencia de toda a filosofia antiga nesse sentido. Mas eu acho que com duas exposições dá para termos uma boa noção do que nos interessa aqui.

Lucrécio é o que melhor sintetiza o pensamento do seu mestre Epicuro. Lucrécio é um pensador do século I a.C – a data de nascimento dele é 94, se não me engano, e ele morre em cinquenta e uns quebradinhos; existem incertezas em relação ao nascimento e à morte dele, tem sempre variação de 2, 3 ou 4 anos, uns discutem que é em tal data, outros que é em outra, mas é mais ou menos nessa época, anos 90 para anos 50 a.C. E Epicuro nasce em 341 a.C e morre em 270; então Epicuro já faz parte da época chamada helênica, já faz parte do helenismo, que é a época que surge a partir da decadência da democracia grega – é a época dos impérios. É a mesma época dos estoicos, Epicuro é do mesmo meio e da mesma época dos estoicos.

Do Epicuro restaram basicamente três cartas a amigos e discípulos e se não me engano 121 pensamentos ou fragmentos. A obra que mais sintetiza e desenvolve o pensamento de Epicuro, portanto, é a obra de Lucrécio chamada De rerum natura (Sobre a natureza das coisas). Lucrécio escreve em latim, ele é um romano; e Epicuro é um grego. Claro que nesse meio tem uma série de discípulos; Epicuro funda uma escola em 306 em Atenas, na sua casa, no seu jardim, que vai ficar famosa como os Jardins de Epicuro. E lá ele reúne os amigos e faz a filosofia dele; a filosofia dele é uma filosofia entre amigos. A dos estoicos já era uma filosofia mais exposta, mais pública; a de Epicuro não, é uma filosofia que ocorre entre amigos.

Esse texto está em latim e espanhol, é bilíngue. Agora, existe uma tradução do De rerum natura nos Pensadores da Editora Abril e está boa essa tradução; e lá também tem texto e fragmentos de Epicuro. Existe um outro texto editado em francês, são textos escolhidos, Epicure et les épicuriens (Epicuro e os epicuristas). Existe um texto também do Victor Goldschmidt, La doctrine d’Épicure et le droit (A doutrina de Epicuro e o direito), só que está em francês. E aí teria uma série de outros textos, estes seriam textos básicos, digamos assim.

Participante: todas as traduções nos Pensadores estão boas?

Não, tem muita porcaria, muita coisa ruim. A Ética do Espinosa, eu corrigi inteira; são 5 livros e tem 4 tradutores e tem 1 só que está mais ou menos: o livro V. Para você ter uma ideia do nível, dos erros, eles confundem afecção com afeto; em Espinosa isso é gravíssimo. Tem muita coisa ruim na coleção da Editora Abril. Mas enfim, é o que temos. Para cada obra e autor a que nos referirmos, daremos um retoque sobre a tradução.

Existe um texto que é uma interpretação fantástica. Deleuze, como sempre, quando interpreta um filósofo vai além do próprio filósofo, geralmente acontece isso com ele. Diz ele que só Nietzsche fez o contrário com ele, que o enrabou, fez um filho nele; nos outros ele é que acaba fazendo filho. Então a obra Lógica do sentido tem um apêndice, o segundo texto dos apêndices chamado Lucrécio e o simulacro. Está na parte O simulacro e a filosofia antiga. É um texto de referência essencial para a obra de Lucrécio e de Epicuro. Eu vou seguir muito esse texto também; claro que vamos fazendo as articulações, mas esse texto é um texto que ilumina muito porque ele vai direto no osso dos problemas.

Participante: depois você poderia falar sobre por que Deleuze larga o simulacro?

Ele não larga o simulacro, nunca largou o simulacro; ao contrário, a filosofia de Deleuze o tempo inteiro é uma filosofia do simulacro.

Participante: o Castoriadis pega o simulacro, ele não.

Precisa ver o que se chama de simulacro. A filosofia de Deleuze é uma filosofia do acontecimento e o acontecimento já é o simulacro – acontecimento e simulacro são íntimos. O simulacro é o único capaz de expressão direta, expressão da intensidade, enquanto que a representação substitui a realidade por uma forma. O simulacro tem essa condição, ele é condição de expressão. O simulacro é essencial na filosofia de Deleuze e ele não abandona o simulacro. Não sei se você ouviu de alguém isso, mas se alguém te falou isso está equivocado. E há que se entender o que seria o simulacro, podemos até tentar um dia fazer uma exposição só sobre simulacro, mais para o final do curso. Acho que é essencial, mesmo.

O problema de Epicuro ao mesmo tempo é uma solução, digamos assim; é a finalidade, como simulacro, da sua obra, do seu pensamento, da sua vida, da sua filosofia, enfim. O objetivo da filosofia, em Epicuro, é o prazer – filosofia hedonista. Aparentemente uma coisa bem vulgar, bem mundana; os cirenaicos já tinham seguido nessa trilha: Aristipo, de Cirene, criou uma filosofia hedonista de uma forma extremamente radical – o prazer acima de tudo.

Participante: Aristipo?

Aristipo de Cirene. É uma das escolas socráticas – não que seja seguidor de Sócrates, é que é da época de Sócrates, por isso que se chama escola socrática. Tinha a escola cínica, escola megárica, escola cirenaica. E Epicuro evidentemente que não quer dizer a mesma coisa que Aristipo de Cirene; Epicuro tem como objetivo essencial uma postura ética diante da vida e essa postura ética reza que a vida tem que ser uma vida de felicidade e de prazer.

De uma maneira vulgar e ordinária, o que se opõe à felicidade ou ao prazer é a dor – geralmente é isso que se diz; então que para você ter uma vida de prazer você deveria evitar a dor. Aparentemente, evitar a dor é uma coisa muito simples; evitar a dor exige poucas regras, regras bem elementares e mesmo mundanas – não tem nenhuma exigência mais elevada, mais nobre, para que a dor seja evitada e o prazer seja obtido.

Mas Epicuro já se apercebe de que o problema dos homens em atingir o prazer não é a dor; é um problema muito mais grave e um problema mais sutil também, que é o que Epicuro vai chamar de inquietação da alma. Haveria uma inquietação, uma perturbação da alma que aterroriza os homens, que aterroriza a sociedade, que aterroriza os indivíduos, e que faria com que eles não só não pudessem evitar a dor, como também a dor acaba sendo multiplicada por essa inquietação, por esse terror, por essa angústia que invade a alma humana. Então o problema fundamental de Epicuro não é tanto um problema especulativo, é um problema prático, é um problema ético, é um problema que levanta a questão do obstáculo à felicidade ou ao prazer como sendo um obstáculo muito mais profundo, mais grave, mais sutil do que o simples elemento da dor.

Então a dor não seria um obstáculo – ao contrário, muitas vezes a dor pode até ser um aliado. O problema é quando você não só não ultrapassa a dor, como você também multiplica a dor. Que é o problema do Nietzsche também: como você muda o sentido da dor de um tipo ativo, de um tipo afirmativo e faz dela um signo de acusação, de culpa – não só de acusação do mundo como até de acusação de si próprio, que é a questão do ressentimento e da má consciência. E esse sentido reativo e sentido negativo da dor vai fazer com que a vida e a natureza sejam julgadas e depreciadas e as paixões tristes sejam valorizadas. Espinosa tem o mesmo problema, a denúncia das paixões tristes, a denúncia de quem se utiliza das paixões tristes, da tristeza ou da miséria alheia para governar, para se apoderar de alguma coisa ou para expandir a sua máquina de poder. Epicuro e Lucrécio estão no mesmo caminho – aliás Epicuro e Lucrécio são os primeiros a fazer essa denúncia explicitamente, a crítica explicitamente, e criar um caminho a partir da orientação para a natureza.

O objeto primeiro da filosofia de Epicuro e Lucrécio é o naturalismo. O naturalismo destitui, de saída, o mundo dos deuses e o mundo das convenções humanas ou das leis humanas; nem deuses, nem homem: a natureza. A natureza seria o objeto tanto especulativo como prático para o pensamento: o objeto especulativo é como a natureza funciona e qual o seu princípio; e o objeto prático seria como a vida humana se torna livre e alegre. Porque, no fundo, o que Epicuro chama de prazer é pura alegria, é algo mais profundo do que o prazer que interpretamos como sendo um hedonismo mundano. É uma questão, é um problema de alegria, no fundo; se vocês lerem a obra de Lucrécio vocês vão ver o tempo inteiro Lucrécio falando do ponto de vista da alegria. A diversidade como motivo constante e frequente de alegria: quanto mais diverso, mais alegria tem.

Ao determinar o naturalismo como objeto privilegiado do pensamento, eles também vão fazer do naturalismo o princípio ou a causa e a regulação de toda a natureza: o naturalismo determinado como diversidade ou como multiplicidade. Não haveria, para Epicuro e Lucrécio, um universo: haveria um diverso; não haveria, para Epicuro e Lucrécio, um Ser: haveria seres ou uma pluralidade de seres; não haveria um Todo, mas haveria uma distribuição nômade – ainda que eles não utilizem esse termo, mas ela é completamente nômade e nós vamos ver porquê. Então a natureza não seria nem uma unidade, nem um Uno; nem uma totalidade, nem um Todo; e nem um Ser – o Ser seria sempre já um composto. A natureza não se reduziria a um universo ou a um universal; o fundo da natureza é o diverso, é a diversidade, é a pluralidade, é a diferença.

Se Epicuro quer atingir o fundo da natureza, o princípio da natureza, determinar o objeto do pensamento, o objeto privilegiado do pensamento, que é o naturalismo, como princípio explicativo e operador da própria natureza, não é simplesmente porque ele está especulando e querendo saber de modo científico como a natureza funciona. Ele quer por isso a serviço da própria ética; ele quer fazer do pensamento especulativo um meio, um instrumento para a finalidade ética, para o pensamento prático. Então a filosofia em Epicuro é sempre um meio para o modo de vida – um modo de viver onde a inquietação da alma seja varrida do mundo.

O inimigo de Epicuro e de Lucrécio é a inquietação da alma. E a inquietação da alma nasce na superstição. Então o inimigo fundamental de Epicuro e de Lucrécio é a superstição ou o mito – a mesma coisa, mito ou superstição. Então eles não vão se opor, por exemplo, ao artifício, às convenções, à indústria, à política, à sociedade; eles vão se opor ao que há de mito em todas essas coisas, ao que há de superstição nessas coisas.

Quando o homem encontra ou domina o fogo, o bronze e o ferro, é uma conquista fantástica no plano técnico; mas quando ele mistifica ou atribui superstições a esses elementos, ele inventa a propriedade privada, ele inventa a acumulação de riqueza; nas leis ou na política, quando ele mistifica, ele inventa o Estado; e por aí vai. Então a questão não está no que acontece na natureza de artificial, de convencional, de secundário; a questão está na camada de mito ou de superstição que se cola a cada atividade ou cada prática dos homens.

Participante: seria mitificação ou mistificação?

O que você preferir. Mitificação ou mistificação. É uma mitificação e é uma mistificação. Mitificação é uma lógica do mito, digamos assim; e mistificação é uma submissão de tudo ao mito – o princípio seria algo místico.

Participante: que leva para o mistério?

Algo que leva para o mistério mas que interpreta como sendo uma instância fora, oculta, inatingível.

Participante: então é pejorativo o mito.

No caso de Epicuro, mito é inimigo. Mito e superstição, ele põe as coisas no mesmo plano.

Participante: está quase no plano ideal do Platão, do idealismo. Não atinge.

Exatamente, é a mesma coisa. Mas o que é incrível é que Epicuro e Lucrécio vão nos dar a gênese da superstição, a gênese do mito; e de modo completamente físico, imanente. E numa maneira de ver o tempo, de ver a velocidade, de ver o movimento das coisas. É uma filosofia brilhante.

Mas o que eu queria situar inicialmente, a título de introdução dessa nossa exposição, é que o objeto especulativo da filosofia de Epicuro e de Lucrécio, o pensamento especulativo, é um meio para a finalidade prática; e a finalidade prática é destituir a superstição e o mito que geram inquietações de alma, que geram uma perturbação multiplicadora da dor, que fazem da vida uma coisa miserável, que fazem da vida uma coisa que deve ser negada. Então essa é a denúncia fundamental e o pensamento especulativo vai ser um meio, vai ser um instrumento para entender como a superstição emerge, como o mito emerge. Então esse é que é o problema.

Ora, se eles denunciam o mito, ou os deuses, ou a teologia, ou uma filosofia que estaria ligada a um ideal fora do mundo, e ao mesmo tempo eles não se ligam às convenções humanas ou às leis humanas, é por este motivo mesmo que eles determinam como objeto privilegiado do pensamento o naturalismo. É a natureza que interessa porque com a natureza você não precisa de mais nada, a natureza se basta. Agora, o que de mais essencial na natureza causa isso tudo?

Se eu digo causa é porque Epicuro e Lucrécio acreditam, pensam que a natureza é causal. O que é pensar que a natureza é causal? É que para todo movimento tem causa. Os estoicos diziam a mesma coisa. Há uma diferença entre estoicismo e epicurismo – no final damos uma sinalizada nestas questões. Os estoicos inventaram uma filosofia do acontecimento; Epicuro e Lucrécio inventam uma filosofia da diversidade, da multiplicidade: tudo é múltiplo, tudo é diverso.

O naturalismo está ligado a uma multiplicidade; se ele está ligado a uma multiplicidade, qual seria a razão ou o princípio do Diverso? Seria o Uno? Seria o Todo? Seria o Ser? É isso que não pode ser; o que eles exigem é um princípio diverso para o próprio Diverso, e não uma Unidade, um Ser ou um Todo que geraria o Diverso. E é aí que eles denunciam as filosofias anteriores, que foram incapazes de encontrar um princípio diverso para o próprio Diverso. Porque tudo que se constata é diversidade; não tem nada que sugira uma unidade, uma totalidade ou um ser encerrado em si mesmo, a não ser uma ilusão de compostos – o composto é que te dá essa ilusão, o indivíduo é que dá essa ilusão. O que é o Ser senão um indivíduo no mundo? O que é uma unidade senão uma unidade individual ou uma unidade de uma parte ou uma unidade de uma espécie? Que unidades são essas? O que é um Todo, uma totalidade, senão um conjunto de indivíduos, uma forma coletiva de ser? Ora, isso não pode ser nenhum princípio do Diverso, dizem eles. O Diverso, enquanto Diverso, exige uma razão por si só diversa. Então o princípio tem que ser diverso.

A natureza não é atributiva como em Platão, Aristóteles e Sócrates. Sempre Aristóteles, Platão e Sócrates tiveram o problema da atribuição nas suas filosofias, o problema de encontrar um substrato e acidentes ou propriedades ou qualidades que se atribuem a esse substrato, ou que são atribuídas nesse substrato. Então a lógica de Sócrates, Platão e Aristóteles é sempre a lógica do é: “a árvore é verde”, “o homem é racional”.

A lógica de Epicuro e Lucrécio é uma lógica do e, é uma lógica da conjunção: “isso e aquilo e aquele outro”. A natureza é conjuntiva e não atributiva. A natureza é distributiva e não coletiva – ela não é uma coleção de indivíduos, de elementos, de átomos que, na sua soma, se fechariam em um Todo; a natureza é distributiva. A natureza é feita de cheios e de vazios, de buracos e de plenos, de dobras, de cascas, de peles, de túnicas; ela é, como diria Lucrécio, capa de Arlequim. Ela é cheia e vazia, ela é alternância e simultaneidade; ela tem um modo de se compor e de se decompor, de se conectar, de se chocar, de se encontrar – os movimentos próprios a tudo o que gera um produto na natureza ou um corpo na natureza. Então os produtos da natureza, que são diversos, já são gerados por princípios diversos. E a nossa questão é entender do que se trata quando eles dizem que o princípio já é diverso.

Detecta-se a diversidade no mundo por três aspectos fundamentais: pela diversidade das espécies dos seres, pela diversidade dos indivíduos e pela diversidade das partes que compõem um indivíduo. Então você tem uma diversidade ligada à especificidade, você tem uma diversidade ligada à individualidade, você tem uma diversidade ligada à heterogeneidade. Não há, dizem eles, nenhuma espécie que seja igual à outra espécie na natureza; e mais: não há um indivíduo da mesma espécie que seja igual a outro indivíduo da mesma espécie; e mais ainda: não há uma parte no meu corpo que seja igual a outra parte no meu corpo. Não há uma folha de uma árvore igual a outra folha dessa mesma árvore, não há um grão de areia igual a outro grão de areia, não há uma vaca que não reconheça o seu bezerro, não há uma mãe que não reconheça o seu filho no meio de uma multidão. Os produtos da natureza são necessariamente diversos e, na medida em que são diversos, são sempre únicos, são sempre singulares.

Esse princípio de diversidade, sob esses três aspectos, levam-nos também a inferirem a diversidade dos mundos. A própria Terra: você pega a Terra, você tem os elementos da água, os elementos da terra, os elementos do ar, que são partes heterogêneas que fazem o mundo terrestre. Os mundos são já diversos, ainda que haja mundos semelhantes – por exemplo, existem vários sóis, existem várias estrelas -; mas não há uma estrela igual à outra estrela, não há um sol igual a outro sol, não há um planeta igual a outro planeta. Então esses aspectos da especificidade, da individualidade e da heterogeneidade também se atribuem aos mundos: os próprios mundos são infinitos e diversos.

Participante: inclusive o próprio Ser.

O próprio Ser já é diverso, exatamente. O Ser, dizem eles, não é nada mais do que o efeito ilusório de uma unidade de um composto. Eles vão atingir micro-seres, que já vamos ver do que se trata.

Então, no pensamento antigo – onde Sócrates, Platão e Aristóteles dominam e de alguma forma até a interpretação do sistema estoico, que acaba dominando – Epicuro vai ser o primeiro a dizer que tudo é infinito e aberto. Se a Antiguidade vê o mundo como um mundo eterno, fechado – o ciclo dos astros, a circularidade dos astros, aquele eterno retorno do Mesmo dos movimentos, a eternidade dos astros, da Terra, etc. -, Epicuro e Lucrécio vão dizer o contrário. Eles vão dizer: primeiro, eles são compostos, todos os mundos já são compostos – portanto não são eternos; segundo, os seus movimentos já são diversos e eles são feitos de somas infinitas de elementos.

A natureza, para Epicuro, é feita de elementos que são invisíveis, que são indivisíveis e que são apenas, portanto, objeto do pensamento – só o pensamento apreende esses elementos, esses micro-seres. Que são os átomos. Átomo em grego significa indivisível; então não há que se fazer analogia com o que a física moderna chama de átomo – ainda que tenha muitos elementos que levem a essa analogia. Então Epicuro vai dizer que tudo é composto por seres simples; esses seres simples são os indivisíveis, são simples porque são indivisíveis. Esses seres indivisíveis são objeto do pensamento porque além de indivisíveis eles são imperceptíveis, eles são insensíveis; não são objetos da nossa sensibilidade, não são objetos da sensação, eles não chegam a se constituir em imagem. Então os objetos que constituem ou que compõem ou que causam os produtos da natureza são átomos.

Esses átomos, que são objetos do pensamento, não são uma prova de que a nossa sensibilidade é deficitária, ou que a sensibilidade seria inferior ao pensamento porque só o pensamento atinge o átomo; é porque é da natureza do átomo ser apreendido apenas pelo pensamento. O átomo é uma questão de velocidade e de tempo. Só o pensamento tem a velocidade do átomo. Epicuro diz claramente: o átomo viaja tão rápido quanto o pensamento, a velocidade do átomo é a mesma que a do pensamento. Pensamento e átomo se identificam.

Assim como o objeto da sensibilidade é um objeto sensível ou é uma imagem no mundo. Então vai haver um método de passagem da sensibilidade para o pensamento e do pensamento para a sensibilidade; o tempo inteiro vai haver essa relação de proporção e de passagem de um plano para outro. E tudo vai ser dar por velocidades e lentidões, por tempos, por movimentos. É esse modo como você habita ora um plano ora outro, ou vários planos de um campo ou vários campos de outro campo.

Participante: toda vez que você fala em velocidade, eu vou associar o termo tempo.

O tempo é um efeito, é um correlativo do movimento – onde há movimento há tempo. Digamos que o tempo seja o acontecimento do movimento, o acontecimento do acontecimento em Epicuro e Lucrécio.

Participante: o que vem para mim, de velocidade, é frequência – frequência no sentido de vibração.

Vai ter isso também. Vamos só montar o sistema físico que daí, em função disso, atingimos as questões mais interessantes da filosofia deles.

Participante: é desse sistema que surge essa questão básica do inteligível e do sensível?

Não. Inteligível e sensível já é uma problematização que existe desde os pré-socráticos, desde que a filosofia emerge. Há um objeto sensível e há um objeto inteligível; o objeto sensível é o objeto das sensações ou da sensibilidade e o objeto inteligível é o objeto do pensamento. Mas no caso de Epicuro e Lucrécio não vai faltar nada para a sensibilidade, a sensibilidade e o sensível vão ser plenos e perfeitos. Assim como o pensamento vai ser pleno e perfeito também; é um pensamento da natureza, é um pensamento natural; é um pensamento da imanência, ele não está ligado à transcendência. Então, nesse sentido a natureza é perfeita. Vai na mesma via que seguimos do pensamento nômade, do pensamento da imanência.

Então voltando à questão do princípio do Diverso, o átomo seria um indivisível e ele seria apenas objeto do pensamento. Além disso, o átomo indivisível tem partes mínimas pensáveis, partes mínimas ou irredutíveis na forma ou figura que fazem dele um germe diferencial, partes mínimas na grandeza que impedem que ele se torne visível ou sensível. Não são partes sensíveis de um ser composto e divisível, mas partes pensáveis de um ser simples, que é indivisível porque tem um mínimo de consistência, impedindo-o assim de cair no nada.

Essas partes mínimas espaciais do átomo ou partes corpóreas desse indivisível são análogas às partes do objeto sensível, mínimos sensíveis. É só você fazer um exercício com o olho: qual o mínimo de luz que um objeto emite? Você fecha o olho ao mínimo e você tem uma relação mínima que te liga a aquela luz emitida pelo objeto e aquilo vai formar uma mínima parte visível do objeto. Assim como o objeto vai ter uma mínima parte audível, uma mínima parte táctil, uma mínima parte olfativa. Então vão ter os mínimos sensíveis. Do mesmo modo, Epicuro vai dizer: tem os mínimos do átomo, os mínimos pensáveis. É uma analogia, é uma comparação entre o sensível e o pensável.

A natureza formaria uma soma infinita e aberta. O que seria o fundo da natureza, ou tudo que é real? É uma soma infinita de átomos – isso é o primeiro infinito. Aqui é importante marcarmos o infinito porque Epicuro e Lucrécio vão fazer uma distinção clara entre verdadeiros e falsos infinitos. A superstição começa por uma interpretação dos falsos infinitos. Então Epicuro e Lucrécio estão preocupados em determinar o que realmente é infinito na natureza. Então, primeira coisa: existem infinitos átomos, os átomos são infinitos, há uma soma infinita de átomos. O que mais é infinito? O vazio. O vazio é infinito e é real; do mesmo modo que os estoicos diziam que o vazio era real, Epicuro e Lucrécio vão afirmar a mesma coisa, o vazio é real e é infinito. E dizem eles mais: é por não admitir o vazio que as filosofias idealistas ou filosofias anteriores – pré-socráticas, socráticas, socrático-platônico-aristotélicas – vão deixar ou permitir que o vazio tome conta de tudo e tudo vire um nada. Ou seja, é por desqualificar o vazio que o vazio acaba invadindo tudo.

Participante: por indiferenciar.

Por indiferenciação, exatamente. Acaba-se desprezando uma coisa que aparentemente não tem realidade – porque é invisível, porque é imperceptível – e esse invisível, esse imperceptível, acaba ocupando o lugar de todo o real, no fundo.

Então Epicuro e Lucrécio vão dizer: o vazio é infinito também. Seria o segundo infinito. O terceiro infinito seria a soma dos seres no vazio e do vazio nos seres; existem seres simples no vazio e vazio nos seres compostos. Essa soma geraria um terceiro infinito.

Esses infinitos nos mostram que o universo não pode se fechar num Todo. Ele não pode se fechar num Todo porque ele é uma soma aberta. Então não haveria uma unidade e nem um Todo que se compusesse numa forma última ou primeira, porque a soma permanece aberta. É sempre uma relação distributiva que a natureza tem com ela mesma. É como o objeto fractal: não há nunca um ponto a partir do qual você dê a unidade a esse objeto; você nunca consegue dar a unidade ao objeto, ele sempre inventa uma abertura, uma fuga. Assim é a natureza para Epicuro e para Lucrécio: não há elemento, não há número, não há forma, não há unidade, não há Todo que a encerre numa unidade última ou primeira.

Os átomos, na mesma medida em que têm mínimas partes, eles também vão ter movimentos mínimos contínuos que são exatamente o seguinte: é o movimento que o átomo faz no vazio antes de receber o choque ou o encontro de outro átomo. Antes desse átomo ser desviado, ele tem um movimento que é contínuo; esse movimento contínuo no vazio é a velocidade do átomo. É o tempo do pensamento porque o átomo vai na mesma velocidade do pensamento – ou vice-versa, o pensamento vai na mesma velocidade do átomo. Então haveria um tempo mínimo contínuo pensável; esse tempo mínimo contínuo pensável é o tempo que o átomo percorre o vazio antes de ser desviado por outro átomo. Isso é fundamental marcar, isso já começa a dar um aspecto da teoria do tempo da filosofia de Epicuro e de Lucrécio.

Esse tempo mínimo remete a uma outra questão: ele é mínimo porque, na sequência, ele é interrompido por alguma coisa; se ele é interrompido por alguma coisa, por um encontro de um outro átomo, é porque os átomos se encontram. E haveria uma razão dos encontros dos átomos, haveria uma razão da relação, haveria uma razão pela qual um átomo se desvia do seu caminho reto e encontra outro átomo, outro indivisível. A razão, diz Epicuro, é uma declinação, é um clinâmen, é um desvio. Esse desvio não é uma contingência, não é uma indeterminação que atingiria o fundo da natureza; não é porque a natureza é caótica no seu fundo, que não tem razão nenhuma, que você introjeta no átomo um elemento de loucura onde o átomo não vai ter nenhuma direção ou a sua direção vai ser indeterminada. É o contrário: ele não é indeterminado, ele é indesignável.

O que significa ser indesignável? É que eu não consigo atingir aquela determinação. Por que? Porque ela se dá num tempo menor que o mínimo de tempo contínuo pensável.

Participante: então eu não posso falar nada. É o lugar que a partir daí eu não posso falar nada. É indesignável.

É indesignável.

Participante: eu não posso dizer onde vai ser o encontro. Não tem.

Não, ele é imprevisível, nesse sentido. Mas há uma determinação, há uma autodeterminação. O clinâmen é como se fosse o conatus do átomo, é como se fosse uma tendência, uma tensão, uma fluxão do átomo e uma autodeterminação do seu próprio movimento; então o átomo se autodetermina, há uma direção original do átomo, uma direção de movimento que ele mesmo se imprime. E essa direção é o seu próprio clinâmen. O clinâmen é exatamente a determinação, a razão da sua autodeterminação e, consequentemente, a razão do encontro com outros átomos. Então não é porque um átomo é mais pesado que o outro – como muitos, ingenuamente, interpretaram na filosofia de Epicuro e Lucrécio – que eles acabam se encontrando e se chocando no vazio.

Aliás, entram outros critérios e razões de encontro de um átomo com outro átomo: o átomo, além de ter esse tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável, assim como ele tem os seus mínimos espaciais ou corpóreos, ele tem grandezas e figuras – ou grandezas e contornos. Essas figuras e essas grandezas impedem que o átomo entre em relação com qualquer outro átomo; haveria, no próprio átomo – na forma do átomo, na figura que ele toma e segundo a sua grandeza – já uma razão seletiva que faz com que ele encontre certos átomos – com que ele se atraia ou com que ele atraia outros átomos – e repulse outros. Então haveria aí já uma outra razão seletiva – não mais no tempo, mas no espaço. Então há razão seletiva no tempo e no espaço; a figura e a grandeza do átomo são razões seletivas espaciais e o clinâmen é uma razão seletiva no tempo.

Então não é qualquer átomo que se encontra com outro átomo qualquer: haveria sempre um critério seletivo e esse critério seletivo faz com que não haja um composto infinito. O composto é sempre finito. Aliás, essa é a razão do nascimento e da morte do composto – porque a figura do átomo e a grandeza do átomo, assim como o clinâmen, fazem com que um átomo se componha com outro átomo até um certo limite. Então o composto é finito. Isso é um meio de eu derrubar a superstição depois; estou marcando bem isso para que usemos isso como instrumento de guerra, digamos assim.

• Participante: você pode falar um pouquinho sobre essa figura e essa grandeza? É um conteúdo, é uma singularidade, é uma marca?

É a forma do átomo. Podemos falar assim: é uma quantidade e uma qualidade. Aí já é interpretação minha, eles não dizem isso – é uma quantidade de energia que, digamos assim, dá uma certa grandeza, dá um certo grau; e uma qualidade expressiva que é uma qualidade figurativa, ele se encontra com certas bordas. Por exemplo, eles vão dizer que o doce são átomos com bordas arredondadas e que o acre são átomos com bordas pontiagudas – o picante, por exemplo. Então são as formas do átomo que qualificam também as sensações. Só para você ter uma ideia de como seriam essas formas.

Participante: seria, por exemplo, como quando o perfumista fala “tem uma nota no cheiro”? Eles falam: “tem uma nota tal nesse cheiro”.

Isso. É uma nuance. É um aspecto da figura do indivisível, no caso.

Participante: o composto, como finito, seria o elemento de identidade?

Olha, seria a heterogênese. Porque um composto não é feito com o mesmo átomo; você pode até ter átomos semelhantes, mas você não faz um composto apenas com átomos semelhantes, você precisa ter uma heterogênese, átomos distintos. Átomos são como germes, mas um composto é sempre feito por vários germes.

• Participante: mas aquilo que serve para poder analisar o indivisível serve para analisar o composto. Com relação ao grau, com relação à figura. O que pode ser lido para o átomo também pode ser lido para o composto?

Pode. Haveria uma analogia, nesse sentido; usamos essa palavra ligada ao Ser como uma questão de combate, então não se prenda ao termo, à palavra: aqui, analogia significa uma comparação, uma correspondência, uma proporcionalidade em relação a essa passagem do sensível para o pensado e vice-versa, segundo movimentos e velocidades. Então haveria, no objeto do sensível, mínimos – como tem mínimos do objeto do pensado. E haveria também, além desses mínimos espaciais, mínimos de tempo – tanto no objeto do pensamento como no objeto sensível. Vamos ver os mínimos de tempo do objeto sensível mais adiante um pouquinho. Então vamos só seguindo e isso vai ficando um pouco mais claro.

As figuras e as grandezas – ou as quantidades e as qualidades do indivisível, digamos assim – são as condições da finitude do composto; não há composto infinito, não há um indivíduo infinito. O indivíduo é sempre finito, o composto é sempre finito. Então o composto nasce e morre, tanto para o corpo quanto para a alma: a alma nasce e morre, o corpo nasce e morre. Os corpos compostos e a alma composta. Tudo que é composto nasce e morre. A razão disso está nas quantidades, nas qualidades e no clinâmen.

Haveria um outro infinito ainda. Esse outro infinito seriam átomos semelhantes, de mesma figura e mesma grandeza – por exemplo, átomos da água, átomos da terra, átomos do ar. São átomos semelhantes. Semelhantes não quer dizer idênticos. O que tem na natureza de Epicuro e Lucrécio são semelhanças e diferenças; e a semelhança está a serviço da diferença, a semelhança está submetida à diferença. Há um princípio de produção e de criação que é pura diferença; e há um princípio de reprodução ou de repetição que é a semelhança. A semelhança estaria a serviço da diversidade. Então vejam que não tem como levar a natureza para uma identificação, para uma unificação ou para uma totalização.

• Participante: não tem nem um princípio porque, se você for ver, já são dois princípios: semelhança e diferença.

O próprio princípio já é plural, necessariamente, porque não tem um átomo sequer que tenha o mesmo clinâmen que outro átomo; é por isso que um átomo não pode ser idêntico a outro, ele é no máximo semelhante. Há uma ressonância de movimento, há uma tendência, mas não há uma identificação.

• Participante: a ideia do clinâmen, acho que não captei. O que é o clinâmen?

Voltando: o objeto do pensamento é o átomo, é um indivisível; e por que é objeto do pensamento? Porque acontece num tempo menor do que o mínimo de tempo sensível; a sensibilidade não capta o átomo porque o átomo é mais veloz do que a velocidade da sensibilidade. Então existe uma outra potência que capta o átomo; essa potência é o pensamento. O átomo e o pensamento acabam sendo uma única coisa, objeto e sujeito acabam sendo uma única coisa.

O pensamento funciona, do mesmo modo que o movimento do átomo, num mínimo de tempo; o mínimo de tempo do pensamento é o movimento do seu objeto, que é o átomo, no vazio. O movimento do átomo no vazio antes de se encontrar com outro átomo, antes de sofrer um desvio qualquer; então o mínimo intervalo no qual esse indivisível viaja no vazio sem ser desviado é idêntico à velocidade do pensamento. O pensamento tem essa velocidade.

Participante: ou seja, quanto menor o tempo entre uma colisão e outra, maior a velocidade. O pensamento está numa velocidade muito acelerada.

Sem dúvida. Mas a maior velocidade dele é quando não há a interferência de um outro átomo.

Participante: quando ele não se choca.

Quando ele está na sua plena direção, no seu pleno movimento.

Participante: no seu pleno contínuo.

No seu pleno contínuo. É o mínimo contínuo.

Participante: é a flecha.

Isso. É a flecha.

Participante: quanto menos atrito, maior a velocidade.

Isso. Agora, haveria então um tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável. Quando o pensamento não capta isso – e o pensamento já está nisso – é porque a direção do pensamento é determinada por esse clinâmen, esse desvio, essa determinação, que se dá de modo mais rápido do que o próprio pensamento. Então essa determinação é que é, digamos assim, a ordem primária mais imanente à natureza, a ordem mais primária.

Participante: isso é a força.

É a própria força. Ou seja, o que interessa é que eles vão liberando conceitos, a filosofia vai liberando conceitos; você pode brincar com isso depois, depois você usa o que Epicuro chama de átomo, você usa o que o estoico chama de pneuma, você usa o que o Heráclito chama de fogo, e por aí vai. Você dispõe disso da melhor forma e faz o seu pensamento, a sua vida. O que importa é que o seu pensamento e a sua vida estejam em movimento – esse critério é fundamental. O que importa é que você se torne cada vez mais forte, mais potente, no sentido de não se deixar paralisar e capturar; essa é a ética fundamental e a estética fundamental. Então o que estamos gerando aqui são elementos para compor a sua máquina de guerra; o modo como você vai montar essa máquina é todo seu, é o seu modo singular – porque não há referencial exterior, não há o lugar da verdade.

Participante: então nós fazemos colchas de retalhos.

Fazemos melhor, isso seria um ecletismo. O ecletismo é uma coisa pobre, é uma coisa externa; fazemos uma composição real, não fazemos um ajuntamento, não fazemos uma coleção. Nós compomos. E quando você compõe, você gera uma outra realidade.

Participante: consistência.

Gera consistência, é isso aí: você não gera um acúmulo, você gera uma consistência.

Então voltando: a natureza, além de ter esse princípio, essa causa de diversidade, além da causa de produção do Diverso, ela tem também a condição da sua reprodução. A condição da sua reprodução é exatamente a infinidade de indivisíveis semelhantes, de átomos semelhantes; essa infinidade faz com que os compostos possam vir à existência e possam se manter na existência. Porque seria impossível – na medida em que o vazio é infinito e os átomos infinitos na sua diversidade – que esses átomos se encontrassem em algum lugar e em algum momento, se os próprios elementos que compõem esse composto não estivessem em número infinito na natureza à mão ou ao alcance do corpo composto. Não haveria como, nesse vazio infinito, um corpo se compor se esses próprios elementos semelhantes já não fossem infinitos. E mais do que isso, não haveria como eles se manterem. Assim, por exemplo, um peixe na água: a água, para o peixe, repõe infinitamente – ou indefinidamente – os seus elementos; assim nós com o ar: o ar repõe indefinidamente os nossos elementos; e por aí vai. Todo corpo, todo composto, está inserido num meio; então, assim como a natureza é feita de germes geradores ou compositores, ela também precisa de um meio como uma mãe, como uma terra. É por isso que Lucrécio abre o poema dele fazendo uma homenagem à deusa Vênus, a natureza-mãe, a mãe-terra, como o meio nutridor dos seres. Esse meio nutridor dos seres é a condição da repetição e da reprodução do diverso. Então, olha só aonde a semelhança é levada: a semelhança é posta a serviço da diferença; é exatamente o oposto da filosofia platônica que faz com que a semelhança submeta a diferença a partir de uma identidade fictícia primeira – a partir de uma superstição, diria Epicuro.

Então temos basicamente o que é verdadeiramente finito e o que é verdadeiramente infinito. O que é infinito? A soma dos átomos ou dos indivisíveis é infinita; o vazio em si mesmo é infinito; e a soma dos seres simples e do vazio é infinita. Também é infinito o número de átomos semelhantes na forma e na grandeza. Além disso, temos uma infinidade de compostos, ou seja, é o número de compostos que é infinito (não o próprio composto, mas o seu número). Se o número de compostos é infinito, pode-se dizer que também os mundos são, em número, infinitos. Olha que coisa revolucionária para a sua época. As estrelas, os planetas, as galáxias – tudo é infinito em número, são infinitos compostos, infinitos mundos semelhantes ou diferentes do nosso. Então, estes cinco infinitos são os verdadeiros infinitos. O que é finito? Finitas são as partes dos átomos, as partes mínimas dos átomos, suas grandezas e suas figuras. Finitos também são todos os compostos, seres dos mundos ou os próprios mundos. Basicamente isso.

Então essa questão dos verdadeiros infinitos e finitos que a física levanta ou apreende vai servir como um meio, como um instrumento posto a serviço da ética ou do pensamento prático para que o pensamento prático atinja a sua finalidade. Temos então um problema fundamental: se Epicuro diz, junto com os estoicos, viva conforme a natureza; e se para Epicuro viver conforme a natureza é ter prazer, é viver feliz; e ter prazer ou viver feliz é atingir o que ele chama de ataraxia – que é um estado de imperturbabilidade da alma… É um estado de quietude, digamos assim; mas não é uma quietude, é um contentamento, porque é puro movimento. É uma quietude no seguinte sentido: é um lugar que você atinge onde você não se perturba por falsos movimentos ou por superstições. Esse ponto é que eles querem atingir, é isso que eles chamam de felicidade ou de prazer; no fundo tem mais a ver com o que Espinosa chama de um contentamento íntimo; o contentamento íntimo é uma expressão da mais pura alegria que vem do momento ou da condição em que você se torna causa de si, que você se torna causa de seus afetos. Espinosa chama isso de uma alegria íntima, um contentamento íntimo. O que Epicuro e Lucrécio estão dizendo, no fundo é a mesma coisa. Então esse é o hedonismo de Epicuro e Lucrécio, que os inimigos tanto depreciaram achando que eram prazeres mundanos, simplesmente.

Essa serenidade só é atingida se você elimina o obstáculo maior que não é a dor mas que é a perturbação que vem de outro lugar que a dor, que vem de duas ilusões. As duas ilusões têm origem em falsos infinitos. Que falsos infinitos são esses? O corpo teria uma capacidade infinita de obter prazeres; ou seja, o corpo e a alma, o ânimus e a ânima, se apercebem – ilusoriamente – de que podem desejar infinitamente. Há um desejo infinito. Isso chama cupidez ou avidez ou ambição – uma ambição ilimitada, uma cupidez ilimitada, infinita; um desejo infinito de obter prazeres. E junto com esse falso infinito – porque ele denuncia isso como um falso infinito – haveria a contraparte. E a contraparte qual é? O medo, o temor, o terror da punição infinita. Então haveria o medo dos castigos infinitos, na mesma medida em que eu desejo infinitamente os prazeres. Há como que um espelhamento das duas coisas, uma é a contrapartida da outra; é por isso que Epicuro e Lucrécio, tal qual Espinosa, denunciam no homem religioso esses dois aspectos: o homem religioso é aquele que tem esse sentimento de cupidez, de avidez, e de culpabilidade. É um complexo do homem religioso.

Participante: e esse é o terror da alma.

O terror da alma qual é, no fundo? Diz Deleuze numa fórmula interessante e paradoxal: é o medo de morrer quando não estamos ainda mortos, e o medo de não estarmos mortos quando já estivermos. Ou seja, o medo de morrer quando ainda não estamos é porque nós temos uma capacidade infinita de obter prazeres – essa é a ilusão – e você quer cumprir esse ideal, ficar vivo para ter esse infinito; e o medo de não estarmos ainda mortos quando já estivermos porque, na medida mesma em que eu desejo infinitamente, eu tenho o temor dos castigos infinitos – que é esse sentimento de culpabilidade infinita. E esse sentimento é bem fundado, nós vamos ver como é que ele se funda. Porque ele vem exatamente da frustração do desejo infinito; o desejo infinito é sempre frustrado, não tem como ele se cumprir. E é exatamente isso que dá o aspecto de culpa, que dá o aspecto de castigo – a frustração já é o castigo. Ora, se eu projeto isso para uma outra vida, se a minha alma não morrer, imagina o que eu vou ter numa outra vida! É o inferno. Então esse é o terror. E isso parece que é um movimento muito forte de época – aliás, o cristianismo nasceu aí também. Um movimento muito presente. E os povos se aterrorizam muito mais por essas inquietações, essas perturbações, do que pela dor que a peste, que a doença, que a morte, causam.

Participante: essa história de estar morto, esse segundo paradoxo, me deu a ideia da doença, da incapacidade como um pavor. Não depois da morte.

A doença, a incapacidade, geram uma dor, evidentemente – você sofre.

Participante: mas sofrer por antecipação. Eu digo o medo de. O medo disso, de você ficar nessa situação. É um pavor.

Sim, é um medo. E por que é um medo? Porque é onde você fica incapaz de desejar as infinitas coisas. Isso é normal no plano da vida. No plano da outra vida, é a contrapartida dos castigos infinitos.

Participante: isso que você está falando é uma interpretação daquele movimento do átomo, quando ele supostamente não vai ter interrupção?

Não, nada a ver com isso. Vamos começar a entrar um pouquinho nisso. Eu meio que descrevi aqui o nosso problema existencial, o problema ético, o problema de um pensamento prático, de uma filosofia prática. E antes eu meio que descrevi o quadro da filosofia especulativa, as condições que fazem com que saibamos distinguir os verdadeiros dos falsos infinitos. Epicuro e Lucrécio vão dizer o seguinte: no plano sensível – que é onde tudo se dá, a questão se dá no mundo sensível – os compostos (nós somos compostos, não há um indivíduo no mundo que não seja um composto tanto no plano do corpo quanto no plano da alma ou do pensamento, tudo é composto) emitem elementos sutis, eles emitem qualidades sensíveis. E ao emitir qualidades sensíveis, eles imprimem em outros corpos, em outras almas, os movimentos que essas qualidades ou que essas emanações produzem nos corpos.

Então o que ocorre? Ao observar a natureza, você observa uma flor que emite perfume ou que emite cores ou que emite figuras; você observa um corpo que emite ruídos e que pode até se transformar em voz, ou que emite um canto; você observa odores, você observa ou apreende sabores. Então: sabores, odores, calores, visões, sons, são emanações dos compostos – os compostos emitem essas realidades sutis.

Haveria dois regimes para essas realidades sensíveis ou para essas qualidades sensíveis. Esse é o objeto da sensibilidade. Haveria um regime de profundidade e um regime de superfície. Os sons, os odores, os sabores, os calores ou o elemento táctil, digamos assim, se referem ou remetem à profundidade dos corpos; a visão remeteria para uma superfície. Dependendo do elemento, ele nos atinge mais rapidamente ou mais lentamente; haveria um grau, haveria uma ordem de velocidade da ação ou do movimento dessas emanações. Mas, no fundo, a coisa é um pouquinho mais complexa porque um som de profundidade, que é um ruído, pode virar voz na superfície através de uma superfície recortada, aberta, chamada boca, por exemplo. Então há uma interação entre profundidade e superfície. Mas o que é fundamental marcar é o seguinte: é que essas qualidades sensíveis nos atingem tal qual elas são; elas nos atingem tal qual elas são apesar de elas serem modificadas ou alteradas no percurso que elas atravessam. Assim o som – que sai da profundidade dos corpos, vira voz e atravessa uma distância aérea, no elemento ar, essa distância toda, até atingir o ouvido – chega tal qual ele deveria chegar; ele chega nessas condições, desse jeito.

O que esses objetos têm em comum, o que esses objetos sensíveis, essas qualidades sensíveis têm em comum, é a remissão ao seu produtor; a imagem sensível, o objeto sensível, sempre se remete ao corpo, ao composto. O composto, que está emitindo, faz com que aquela emissão se remeta a aquele composto. Eu posso até destacar, mas eu sei que aquilo veio dali. Isso é uma coisa fundamental. E essa questão está ligada também à velocidade de percepção sensível; então o tato, digamos assim, seria mais lento do que o som ou do que o odor ou do que o sabor talvez. Quer dizer, existiriam graus de velocidades e de lentidão. Mas o sentido mais rápido seria a visão. Por que? Porque a visão já são envelopes e cascas, figuras e cores que se destacam da superfície dos corpos; então esses elementos, essas emanações, atravessam menos obstáculos; e quanto menos obstáculos, mais velocidade.

Epicuro vai chamar isso de eidolon e Lucrécio vai chamar isso de simulacro. As emanações de superfície seriam os simulacros – simulacros de superfície ou eidolons. E as emanações de profundidade acontecem num tempo que é menor que o mínimo de tempo sensível. Então essas emanações de profundidade e de superfície acontecem num tempo menor que o mínimo de tempo sensível. O que isso significa? Significa que a minha sensibilidade não capta, só o pensamento é capaz de captar isso porque acontece num tempo menor do que o mínimo de tempo sensível.

Então o que eu vou perceber, enquanto sensibilidade? O que a minha sensibilidade vai atingir? A minha sensibilidade vai atingir o objeto sensível. O que é o objeto sensível? Já é a imagem. A imagem se constitui por uma pluralidade, por uma diversidade de emanações de profundidade ou de superfície. Então você vai ter uma imagem olfativa, uma imagem de sabor, uma imagem visual, uma imagem sonora, uma imagem táctil. São imagens sensíveis. Os objetos sensíveis se dão já a partir de um mínimo de tempo sensível; e o mínimo de tempo que a sensibilidade percebe é o tempo da imagem.

Participante: a imagem é um composto, também?

É um composto, a imagem é um composto. E nisso ela se liga a aquilo que problematizamos na última aula.

Participante: o que a sensibilidade não consegue pegar é a gênese desse composto.

Isso. A gênese da imagem, como a imagem se forma, se constitui. Exatamente.

Participante: só é objeto capturado pelo pensamento.

Pelo pensamento.

Participante: e a imagem mental, a imagem psíquica?

A imagem mental já é uma imagem sensível, já é imagem de consciência, já é imagem psíquica, já é uma imagem figurativa. A figuração já é imaginação. Não que a imaginação seja ilusão ou não seja real; eles dizem isso muito bem: o sensível tem realidade própria e a imagem tem realidade própria. Só que temos que saber que aquilo é uma imagem, é só isso. Não tomar a imagem pelo átomo, por exemplo, ou pela causa, ou pelo elemento que a compõe. A imagem já é um efeito de um composto.

Participante: isso tem a ver com o que você sempre traz – fantasmagorias, fantasmáticas, alguma coisa assim?

Vai ter a ver com o que eu vou dizer agora.

Então seriam compostos de segundo grau, digamos assim; haveriam os compostos de primeiro grau que seriam os próprios corpos; e os compostos de segundo grau seriam essas qualidades que atravessam os corpos. Que é a própria alma, digamos assim – a alma ou a ânima. São esses eflúvios sensíveis que sentem, no ser – como senciente, digamos assim, aquele que se sente a si mesmo; e sentem os objetos sensíveis emitidos pelos outros compostos. Então você tem compostos de segundo grau.

Você teria uma terceira espécie de composto que é o que Epicuro e Lucrécio chamam de fantasmas. Os fantasmas, de terceira espécie, são realidades extremamente sutis – muito mais sutis do que os simulacros de superfície ou as emissões de profundidade. Os fantasmas de terceira espécie têm alguns traços que os definem: uma velocidade fantástica de movimento, ao mesmo tempo que uma efemeridade – eles são absolutamente efêmeros, eles se formam e se desfazem em segundos, em milésimos de segundo.

Ao mesmo tempo que eles têm essa velocidade e esse atributo de se formar e de se desfazerem muito rapidamente, eles também têm a qualidade de se descolarem dos objetos. Eles estão longe dos objetos emissores, então o objeto que emitiu uma certa emanação ou um certo simulacro não está mais emitindo aquilo, e aquela emissão está viajando sem o objeto. É como a luz de uma estrela já morta, por exemplo. O que ocorre? Então ele forma uma imagem descolada do objeto. Eu me relaciono com ele como se ele fosse uma realidade autônoma: eu vou atribuir realidade a ele porque eu não vejo de onde ele veio. É como um duende, um fantasma. É uma realidade. Eu olho para uma nuvem no céu e vejo a cara de um deus carrancudo e bravo, irado – seria um fantasma teológico, eles diriam.

Participante: um simulacro desconectado dos átomos que o formaram.

Isso. Ele está desconectado do composto que emite aquelas emanações. Então é uma imagem separada.

Participante: mas por que ele é tão rápido? Ele parece um congelamento.

Ele é tão rápido porque, no fundo, ele não vem de um único objeto; ele já é efeito de uma pluralidade de compostos que estão emitindo emanações que se descolam e se compõem com outras e formam uma realidade própria. Aquilo vira uma entidade. É por isso que eles vão distinguir em fantasmas teológicos, fantasmas oníricos e fantasmas eróticos. São três espécies ou três tipos de fantasma de terceira espécie, desses compostos de terceiro grau. Haveria três tipos, portanto: o onírico, o erótico e o teológico.

O fantasma teológico é o fantasma que me faz investir ou acreditar numa realidade etérea, extremamente móvel, com uma capacidade infinita de movimento. E é por isso que Epicuro e Lucrécio vão dizer que na origem dos deuses não está a permanência mas está a mobilidade infinita; e que a permanência é apenas, digamos, o fundo de uma realidade aparentemente a mesma – que seria o ciclo dos astros, por exemplo. Então eles dão origem aos deuses e esses deuses são tanto mais autônomos, móveis, velozes e poderosos quanto mais eu não distingo nenhuma causa, nenhum ser atrás deles; eu vejo apenas uma realidade altamente poderosa que gesticula, que emite voz, que emite som, de uma forma extremamente efêmera e veloz. Então essa seria a característica dos fantasmas teológicos. Geralmente são vistos no céu: sons, trovões, nuvens, etc.

Fantasmas oníricos são exatamente aqueles que se constituem em sonhos – mas não só em sonhos, eles se constituem como alucinações também. São delírios que provêm de objetos ou de entidades que se formam a partir de emanações cujos compostos não estão mais ali para alimentar aqueles elementos.

Participante: isso que dá origem aos mitos, depois?

Isso que dá origem aos mitos, exatamente.

Participante: cujos compostos não estão mais ali para alimentar…?

Alimentar aquelas emanações. As emanações se tornam independentes e elas se casam com outras emanações de outros objetos. Então um centauro, por exemplo: um centauro é criado por isso. É um fantasma onírico – um homem com a cabeça de cavalo.

Um fantasma erótico é exatamente o mesmo processo, a mesma coisa que ocorre; só que daí com um objeto amado, um corpo desejado. Assim, dizem eles, uma mulher bela que um homem imagina, uma bela tez, um belo corpo, facilmente se transforma num corpo de homem, por exemplo. São objetos extremamente etéreos que se formam e se fazem com uma velocidade muito superior à da sensibilidade.

Participante: mas esse fantasma passa no objeto ou ele passa em mim?

Ele passa no encontro da minha sensibilidade, da minha alma, com as emanações do mundo. Nós estamos, o tempo inteiro, banhados por esses fantasmas; o tempo inteiro você ouve vozes, você tem visões, você tem sensações. E é por isso que aqueles mais sensíveis, aqueles que se ligam mais a isso, geralmente vão para os caminhos místicos, interpretam isso, formam uma cadeia de signos fantástica.

Participante: porque fixa numa voz, num fantasma desse, como se fosse um retrato. Você tira um retrato, para no tempo, fixa e isso que é o mito, é esse fantasma que ficou fixado numa ideia.

Isso mesmo. Há uma fixação, há um congelamento.

Participante: as vontades surgem desses fantasmas? As vontades de potência? É isso?

No fundo, sou eu que estou emprestando a minha vontade. Aquilo é completamente fictício, é um fantasma realmente, porque aquilo não tem realidade própria já mais. Já é uma emanação que está viajando longe do seu objeto, que junto com outras emanações formam aquela coisa absolutamente quimérica. É uma quimera.

Participante: uma marquinha do que passou. É o último brilho desse fantasma que passou.

Isso. É isso mesmo.

Participante: e eu posso estar emprestando energia para o centauro continuar a existir.

Com certeza: ele só continua existindo porque eu invisto.

Participante: agora, e no caso do paranoico? No caso, o centauro não está lá fora, o centauro está dentro da cabeça dele.

É o mesmo processo.

Participante: só que aí não sou eu que estou emprestando energia para a coisa, fora; não está me banhando. Vem como um ressentimento próprio? Como um recorte próprio?

Não. É no encontro que a coisa se dá. Espinosa tem um enunciado belíssimo: toda morte – e aí você pode dizer, toda negação – vem de fora. Tudo vem de fora. Não há, na imanência da vida ou da diferença, a morte ou a negação escrita nela. No momento em que o cara se torna paranoico, é um mau encontro que diminui a sua potência, que fixa o seu devir, que sobrecodifica todos os fluxos do seu encontro; essa negação que fixa o paranoico é um mau encontro que vem de fora. Encontro sempre é no fora, não há encontro dentro. O encontro é sempre no meio.

Participante: mas daí a repetição do mesmo encontro, da mesma cena do encontro – mesmo que você não esteja mais encontrando – é parte da patologia do indivíduo.

Aí você incorpora, você introjeta.

Participante: mas continua tendo novos encontros..

Isso. É que você já tem uma postura que alimenta isso e o tempo inteiro você está vendo novos fantasmas.

Participante: mas é no encontro com o que vem de fora que sempre cria um novo fantasma.

Isso. Ele é realimentado constantemente. Da mesma forma como eu respiro para trazer oxigênio para o meu corpo, o paranoico respira fantasmas; ele tem que se alimentar disso o tempo inteiro. O vidente, o mediúnico, o astrólogo, todos os místicos, enfim, se alimentam disso o tempo inteiro.

Participante: os filósofos… (risos).

O filósofo, por definição, diz que a natureza se basta a si própria; senão seria um filósofo idealista que é o que combatemos. Espero não estar nessa mesma estirpe.

Participante: dá para discutir.

Dá para discutir: “até onde vai a sua loucura” (risos).

Mas no caso, o filósofo faz uma outra coisa muito mais deliciosa com isso; ele começa a brincar com os fantasmas. Porque você não pode eliminar os fantasmas, os fantasmas estão aí. Você começa a brincar com eles. Daí os deuses, na filosofia de Epicuro e Lucrécio: eles não eliminam os deuses. Eles eliminam a realidade mítica do deus; mas enquanto fantasma, você começa a brincar com isso, isso vira elemento de prazer, felicidade.

Participante: na realidade, brincar com imagem; porque você não sabe o que é fantasma, aí.

Isso. Você brinca com imagens, você brinca com virtualidades, você estimula a sua imaginação, a sua criação.

Participante: vou fazer uma brincadeira. Você diz “existe, mas não é real”, “o fantasma existe, mas não é real”; e nas outras situações você trouxe o que é real mas não existe.

Já volto a isso aí.

Participante: no budismo eles falam do Maya, da ilusão, das miragens. No espiritismo eles falam do corpo astral, são dimensões justamente onde você lida com imagens que não têm uma relação com o momento desse presente. Quando você diz isso, e se afeta e se está fora, qual é a distinção disso para uma outra dimensão que não seja uma miragem. Ela é real. Se o efeito e se a relação com a vida, com a natureza… um besouro também deve imaginar, quando ele olha a luz e pensa que é o sol. E ele vai lá atrás da luz. Ele faz o movimento da vida atrás da luz. Quer dizer, ele não pensa “isso é uma luz” ou “isso é uma leve distinção na minha memória de que isso é um sol”. Essa distinção que você traz, me parece que tem algo como um negativo que, às vezes, subtrai a infinitude dessas composições na simultaneidade das dimensões. A criança desliza nisso e ela apreende a vida imaginando, ela não fica criando…

Tudo é lúdico.

Participante: aliás, lúdico e lúcido, em alemão, é a mesma coisa. Nesse sentido, parece que tem algo que temos que nos descolar. Tem uma simultaneidade.

Participante: você está falando de uma dualidade.

Participante: não é dualidade, agora; é um mapeamento. Como se ficasse acima. Sabe o que o Platão fez, Fuganti? Você colocou o imaginário lá em cima. Então não sei se você colocou ou se é isso mesmo. Será que tem em cima e em baixo? Isso é tão simultâneo! É Epicuro, não é você, entendeu?

Obrigado pela distinção.

Participante: acho que ela quis dizer que é você e não Epicuro.

Participante: não, você está imaginando.

Se eu entendi, eu sinto o seguinte: o nosso problema é onde, em que lugar, em que momento, com que elemento, você se separa do que você pode. É a linguagem espinosista; em Epicuro e Lucrécio seria o momento em que a tua alma se torna inquieta. E você se torna inquieto porque você acredita ter uma capacidade infinita de obter prazeres; e ao mesmo tempo que essa capacidade é necessariamente frustrada, você se enche de frustração na mesma medida que se fossem castigos – você recebe a frustração como se fosse um castigo. Então há um complexo que se monta aí. Esse complexo que se monta nasce exatamente da relação da alma com os fantasmas de terceira espécie.

Eu não estou falando que o fantasma é bom ou mau; eu estou falando que há um mau encontro com esse fantasma no momento em que ele alimenta em mim a ilusão de que eu posso ter infinitos prazeres, que o meu desejo é capaz de conquistar infinitos objetos. Porque esses fantasmas se formam e se desfazem infinitamente na existência dos meus encontros e são eles que dão a ilusão do falso infinito. E é na ilusão do falso infinito que o meu desejo cria a ilusão da capacidade de obter infinitos prazeres. Então é aí que nasce o negativo; não está no fantasma o negativo. É por isso que eu disse antes: se você entende a natureza – e é por isso que o pensamento especulativo, ou o objeto especulativo do pensamento enquanto naturalismo, que entende como funciona a natureza -, na medida em que você atinge esse entendimento, você brinca com os fantasmas. Aí sim você faz o que a criança faz, você entra nesse movimento lúdico.

Participante: mas o imaginário se transforma numa coisa pejorativa. Porque de repente ficaram mapeadas todas essas questões psíquicas do imaginário como coisas pejorativas. Nesse aspecto, o imaginário não é pejorativo; talvez ele até se liberte para uma função muito mais ampla.

Totalmente. Isso mesmo. Em Epicuro e Lucrécio toda a imagem é completamente positiva. Nos estoicos era também já. Contra Platão, Aristóteles e Sócrates, já era positiva nos estoicos. Em Epicuro e Lucrécio com muito maior razão, ela é completamente positiva. Então o objeto sensível é a realidade plena enquanto objeto sensível; e a imagem, enquanto imagem; o simulacro, enquanto simulacro; a emanação, enquanto emanação; e até o fantasma, enquanto fantasma.

Participante: então tem a alma com infinitos fantasmas que podem gerar a ilusão de que infinitos desejos são possíveis, de que eu posso ter infinitos prazeres. Isso acontece porque eu passo a ver nesses infinitos fantasmas os prazeres nos fantasmas?

Objeto de consumo.

Participante: é, o fantasma se torna o prazer.

O objeto a consumir que vai te dar prazer. Você pira. No fantasma erótico, nada mais triste do que um ser totalmente apaixonado por fantasmas eróticos, é deprimente.

Participante: que é você se apaixonar pela ideia que você tem daquela pessoa.

Porque nunca preenche o seu desejo. Isso é a castração.

Participante: essa é a saúde do capitalismo.

Essa é a saúde do capitalismo. O que o capitalismo faz? Alimenta exatamente isso. Ele rouba os territórios, ele tira os territórios, as imagens, as sensibilidades, e ele constrói – a partir de tempos menores do que os tempos sensíveis – velocidades tais que te alimentam exatamente no fantasma. E não é simplesmente uma coisa imaginária, uma coisa psíquica que ocorre. Na própria natureza da moeda: porque a moeda é esquizofrênica; a moeda tem o lado para o crédito e o lado para o débito, o lado da compra e o lado da venda; não é a mesma moeda. É completamente real esse efeito de fantasmagoria que o capitalismo produz, roubando os territórios e alimentando os fantasmas.

Participante: é interessante você ver as pessoas abastadas, onde existe um ímpeto em consumir. Ela sabe que ela tem demais, só que existe o ímpeto para consumir cada vez mais, ela vive no fantasma.

É a cupidez, é a avidez.

Participante: esse ímpeto é totalmente maluco nas pessoas abastadas; eles já têm demais, mas esse ímpeto existe cada vez mais. Você vê uma negociação por 1 centavo, você vê briga por 1 centavo, por um cara que é bilionário.

Mas aí entra num outro plano: é a própria moeda que se apodera do cara. A lógica da moeda é essa. A moeda pode, a moeda impõe, a moeda compra, a moeda submete. É a moeda que faz isso. E não é a moeda em si mesma, é a axiomática, é mais do que a moeda. A axiomática é o que constitui a moeda. Porque a moeda, no fundo, não é nada; é um conjunto de crenças que investem num papel e que a mantém. Você vê o dólar como se mantém, é uma loucura como o dólar ainda é a moeda mais valorizada e mais respeitada no mundo; e, no entanto, a economia americana em decadência. Ainda é a moeda que é a âncora mundial.

Participante: é um falso infinito.

Com certeza. É isso aí. Então, o que é fantástico na filosofia de Epicuro e Lucrécio, o que eles fazem e nos convidam a fazer com a nossa vida é, exatamente, entender como a natureza funciona e, em função disso, destituir a superstição. Porque é na superstição gerada por essas ilusões de infinitos desejos com infinitos castigos, nessa máquina realimentada da recompensa e do castigo, que você se submete, você fica separado do gozo, da felicidade; e a dor que você já sentia, agora é multiplicada. Isso que é o terror: o terror é a dor multiplicada. Não é a dor. A dor em si mesma é completamente suportável. Agora, o terror é a multiplicação da dor, a incapacidade de ultrapassar isso. E isso é alimentado por uma superstição – essa superstição dos falsos infinitos, que tem essas duas faces do homem religioso, a cupidez e a culpabilidade.

O homem religioso, que tem esses dois aspectos, também vive a seu modo esses aspectos, mas ele reinveste dois outros tipos na sociedade: o tipo do escravo e o tipo do tirano. O tirano vai precisar do homem alimentado de superstições para melhor imperar ou dominar; ele precisa de homens submissos, de homens supersticiosos – quanto mais superstição, mais confusão e quanto mais confusão, menos potência e quanto menos potência, mais fraco e mais fácil de se dominar, mais se manipula. O tirano tem essa aliança com o escravo. E, por outro lado, o escravo precisa do tirano para o tirano mantê-lo, manter uma ordem que proteja as vidas fracas, que conserve as vidas fracas. Evidentemente, o tirano tem a sua cupidez estimulada à máxima potência: ela é multiplicada por todos os escravos que compõem a sociedade; a avidez do tirano é a avidez multiplicada por todos os escravos que compõem a sociedade que ele domina. E, evidentemente também, o seu terror vai se multiplicar. Daí o fim de muitos tiranos. No livro As Vidas dos Doze Césares, Suetônio traça um quadro, através de uma série de biografias de tiranos e dos seus processos de formação, de ascendência e de decadência, que retratam bem essa questão.

E o sacerdote, por sua vez, seria aquele que vai apaziguar as duas almas, a do tirano e a do escravo. E vai viver espiritualmente dessas misérias. No fundo é a trindade, é a triste aliança entre o sacerdote, o tirano e o escravo, que compõe toda sociedade de poder; não há sociedade de poder, não há sociedade onde tenha Estado, que não tenha essa trilogia. E esses três personagens, esses três tipos vão ser extremamente denunciados e desconstruídos por Espinosa, num segundo momento, e depois por Nietzsche. São as três grandes filosofias que vão traçar a psicologia do tirano, do escravo e do sacerdote: a filosofia de Epicuro e Lucrécio, a de Espinosa e a de Nietzsche.

Participante: quando você se dá conta de que você está num mundo assim… o que fez Espinosa não enlouquecer? Diferente de Nietzsche?

Espinosa atinge a ordem imanente, ele atinge o clinâmen. Podemos até fazer uma brincadeira aqui: ele pensou o clinâmen. Espinosa é o que vai mais longe na ordem imanente da natureza, é o que atinge a ordem mais pura. Espinosa vai atingir um elemento tal que vai levá-lo a dizer que a ordem e a conexão das ideias, a ordem e a conexão dos corpos e a ordem e a conexão de qualquer outra realidade ou qualquer outro plano que existir, é a mesma. Há uma única ordem – seja no além, no aquém, no inferno, no céu, não interessa: a ordem é a mesma.

Essa ordem é a que te faz pensar, a que te faz agir, a que te faz reagir, a que te faz existir, a que te faz aumentar a potência, a que te faz diminuir a potência, etc. É a mesma ordem. Então, se você atinge essa ordem, como é que você vai enlouquecer? Não há loucura maior que essa e nem lucidez maior que essa. Você atingiu o implacável, você atingiu a imanência. A loucura é uma ficção.

Participante: não é algo assim como o lado bufão e colérico do Nietzsche? Ele se dá conta de que ele está nesse engodo…

Nietzsche faz teatro o tempo inteiro; ele só sucumbe já por uma questão de misturas de corpos, como diriam os estoicos, uma mistura sifilítica. E ele entra numa paralisia cerebral progressiva. É uma mistura de corpos que faz a superfície sucumbir; é uma fenda que se abre e não tem mistura que reestabeleça a superfície. Não tem mais como, ele atingiu a fissura ali. Em janeiro de 1889 é o colapso, ali a obra cessa. Cessa a obra quando ele perde a superfície, quando ele perde a capacidade de mover as máscaras, quando ele perde o teatro. Porque o lado bufão dele é um lado teatral – teatro não de representação, não tem nada a ver com representação. O tempo inteiro ele diz: “eu atingi a grande saúde porque eu sou capaz de, da mais terrível doença que me acomete, ver a saúde; e da mais alta saúde, quando eu a atinjo, focar a doença; e eu me movo nesse elemento entre a saúde e a doença”. Enquanto ele está na mobilidade – ou indo para a doença ou indo para a saúde -, enquanto ele está no movimento, ele diz: “eu estou na mais alta saúde”. A saúde é estar no movimento; o critério de saúde, de vida, de afirmação, de atividade, é estar no movimento. E não num falso movimento, como Hegel acreditou estar; é no movimento do devir. É o Diverso enquanto Diverso, atingir o diferencial na própria diferença – isso é estar em movimento. É uma capacidade permanente de automodificação.

Participante: ele estava doente mesmo, até a hora em que não havia mais…

Aí houve o momento em que a doença, ou que essa mistura, se apoderou de modo tal que inviabilizou o elemento paradoxal, que o habitava, de se deslocar. O elemento se fixou; e quando fixou acabou a obra e a vida entra numa vida vegetativa, ele começa a vegetar. Aí cessou a obra. Então a história de dizer “ele era louco e fez uma obra louca” é, como diz Deleuze, psicanálise de araque. É uma estupidez você dizer que a obra dele é a obra de um louco, é a obra de um alucinado que tem esse lado bufão, que tem o lado megalomaníaco. No momento em que ele diz “eu sou todos os nomes da história”, ou quando assina como César ou como O Crucificado, ele ainda está na obra, tais manifestações ainda fazem parte da obra. Aquela carta que ele escreve para o Burckhardt, aquele historiador, ainda faz parte da obra. Ele ainda está se movendo. Porque, no fundo, nós somos todos os nomes da história; ele está na mais alta lucidez, apesar de já ser o último ponto onde ele toca o seu fundamento.

Participante: o suicídio de Deleuze também.

O suicídio de Deleuze é a coisa mais rigorosa do ponto de vista da filosofia dele mesmo, da obra dele, ele fala o tempo inteiro da morte. Ele fala de Lucrécio, que os cristãos inventaram uma doença e um suicídio para Lucrécio – São Jerônimo -, para melhor apontar o triste fim de um epicurista. Ele fala da obra ou de uma vida em Espinosa; Espinosa diz o tempo inteiro: às vezes o modo sofre uma modificação tal que não se pode mais dizer que é o mesmo ser que está ali, que é a vida que está ali. Ele entra num estado vegetativo tal que muda a sua natureza. Espinosa é completamente a favor da eutanásia. Quando muda a natureza desse ser, é melhor acelerar a decomposição; se ele é ético até o fim, ele leva a ética a isso porque aquela doença é a paralisação. Ora, se a minha vida é movimento e eu dou a vida pelo movimento, eu me suicido se eu não entro em movimento, se eu perco o movimento.

Participante: mas e se eu descubro um outro tipo de movimento?

A questão é: quando você chega num ponto onde não tem mais como reverter o processo. Deleuze já tinha uma traqueostomia, ele não comia, não engolia mais, não falava mais, não podia escrever, não podia sentar, não podia deitar. Acabou, ele estava numa vida pior do que a vegetativa. E aí a sociedade em volta, com os valores piedosos – mesmo que a família dele tenha a maior clareza disso – jamais vai… Um filósofo com essa potência, o que ele fez a vida inteira? É movimento, é movimento puro. É o modo de acelerar. E nada melhor do que um voo num apartamento de quinto andar. Por que não? Poderia ser de uma outra forma, eu não sei. Mas esse ato é extremamente rigoroso, é um ato de afirmação da vida. É todo o contrário do que os inimigos falam. Ele fala direto sobre isso; na obra inteira de Deleuze tem a questão do suicídio, tem a questão da morte, a questão da afirmação. Deleuze foi o filósofo que mais afirmou, que mais soube afirmar, na filosofia, a vida e a natureza. Claro, todo mundo afirma ao seu modo; eu acho que o Deleuze foi mais longe nessa tarefa, foi o que levou isso mais longe. A obra dele está aí, ela fala o tempo inteiro. É a velha questão moral, é o valor em si; se você toma o suicídio como valor em si, pronto: moralizou.

Participante: você vê o fato e não o acontecimento.

Você vê o fato e não o acontecimento.

Participante: e ainda por cima catalogado, categorizado.

Moraliza.

Epicuro e Lucrécio, já deu para ter uma ideia interessante, não é?

Participante: tem o mesmo lance dos estoicos, a mesma escolha de você não olhar para a altura mas olhar para a superfície e para a profundidade. Num momento você falou a mesma coisa: no átomo, é olhar para a superfície e para a profundidade.

Tem essas relações. O que é a profundidade, no caso de Epicuro e Lucrécio? Ela tem a ver com o átomo e com os compostos. Um composto é de profundidade e o átomo é profundidade; mas ao mesmo tempo o próprio átomo tem uma superfície expressiva: no momento em que ele se determina, enquanto clinâmen, já é a superfície expressiva dele. Então a superfície e a profundidade estão na superfície e na profundidade também, está de um lado e de outro ao mesmo tempo.

No caso dos estoicos, os estoicos vão fazer uma cisão entre causa e efeito: o efeito vai ser o incorporal que vai remeter a outro efeito, e a causa vai remeter a outra causa. No caso de Epicuro e

Lucrécio, a causa e o efeito têm a mesma natureza; mas o clinâmen vai fazer com que uma série de desconecte de outra. Então vão ter independências de séries. Isso, nos estoicos, era a subdivisão do acontecimento, era a pluralidade, a multiplicidade que salva na subdivisão do acontecimento; no caso de Epicuro e Lucrécio é no clinâmen.

E eles vão entrar em choque, epicuristas e estoicos vão entrar em choque.

Participante: mas eles estão dizendo a mesma coisa.

No fundo, claro.

Participante: mas eles estão falando de formas diferentes, eles não chegam a se entender com isso?

É que discípulo sempre já é assim. Se você pega um pensador mesmo, aí a coisa ainda vai; mas quando é discípulo de discípulo, um funda uma escola, outro funda outra.

Participante: sempre tem a disputa de poder.

Isso, você falou tudo. Aí é disputa de poder.

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