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Formação Pensamento Ocidental – Aula 06/32 – A fundação do modelo de pensamento transcendente (transcrição)

Luiz Fuganti

Vamos entrar finalmente em Platão. Platão é, digamos, o grande interlocutor do ocidente ou do pensamento ocidental. Ao mesmo tempo que é o grande interlocutor, Platão é nosso grande inimigo, nosso inimigo nobre. Por que eu digo isso? Porque Platão praticamente instaurou o modelo por excelência do que é transcendência. A transcendência já revela todas as suas particularidades, os seus aspectos, o seu caráter na obra platônica: Platão vai gerar o modelo por excelência de transcendência, assim como Espinosa, que é seu contraponto máximo, gera o modelo por excelência da imanência. Espinosa foi o filósofo que concebeu o plano mais puro de imanência; Platão, por outro lado, é o que instaura os critérios e o fundamento para o pensamento ocidental se desenvolver tal qual nós o estamos desmontando. Então a nossa questão crítica essencial é a desconstrução, a desmontagem do pensamento ocidental. E nada melhor do que começar pela reversão do platonismo – desmontar, desconstruir Platão, reverter o platonismo através da própria obra platônica. O que significa isso? Significa que nós não acreditamos no que o Platão descobriu – ou melhor, nós não acreditamos em descobertas, nós acreditamos em criação. Então Platão não descobriu nada, ele criou. Platão é um criador, é um inventor – ainda que de um plano negativo, mas ele é um criador.

Então nós não vamos seguir Platão como um descobridor, nós vamos segui-lo como um inventor de uma orientação inédita no ocidente do ponto de vista do pensamento, do ponto de vista da vida e do desejo não submetidos necessariamente a uma sociedade.

Platão cria uma maneira de viver fora das sociedades primitivas, fora das sociedades selvagens, no meio grego, a partir de uma ocasião de liberdade individual, que levaria a uma paideia, a uma educação e, mais do que a um convite, a um imperativo, segundo Platão, de realidade, que nos salvaria, nos resgataria de um mundo em degenerescência. Ou seja, esse imperativo começa por ser um imperativo moral e orienta-se em direção a uma transcendência religiosa. Platão põe então a moral a serviço do Bem. O Bem estaria fora da própria natureza e seria o grande guia do homem.

Essa posição não é nova, foi Sócrates quem inventou essa posição. Inclusive a morte de Sócrates é extremamente significativa. Sócrates é aquele que é condenado à morte por inventar ou por gerar novos deuses na cidade, em Atenas; por desacreditar deuses apregoados pelo Estado; e por corromper a juventude ateniense. Ele é acusado e condenado à morte por estes motivos. Mas Sócrates tinha mil maneiras de reverter essa situação. Um dos acusadores emite a pena de morte mas Sócrates poderia sugerir uma outra pena – que provavelmente seria aceita –, uma pena pecuniária, alguma coisa em forma de moeda ou mesmo de exílio, talvez. Mas Sócrates se mantém firme em sua consciência em relação ao que ele acredita. Sócrates acredita no Bem. E, por outro lado, depois que ele é condenado à morte existe uma excursão dos atenienses para uma cidade estrangeira, uma festa religiosa; enquanto eles não retornam a Atenas nenhum condenado pode ser executado. Então Sócrates ainda tem trinta dias para fugir, se quisesse: os amigos prepararam uma fuga para ele.

Participante: Mas ele queria morrer, não é?

A questão é essa. Nietzsche mesmo diz que há um suicídio depressivo em Sócrates e ao mesmo tempo Nietzsche tem também outras provocações do tipo: não mereceu Sócrates sua cicuta? Existem umas questões que podemos ir entendendo aos poucos. Por que eu digo isso tudo? Porque Sócrates, ao mesmo tempo que sabe que não traiu a sua consciência, ele também não quer trair a lei. Mas a lei foi feita pelos atenienses, a lei é invenção de uma constituição. Não importa, Sócrates acredita que a lei é delegada do Bem, seja ela justa ou injusta; e por ser delegada do Bem ele deve obedecer à lei. Então, olha o tipo de homem que está nascendo aí. Sócrates, na realidade, inventa uma postura e uma maneira de ser moral, extremamente moral, em função do Bem; ele acredita no Bem em si que está fora do mundo e o Bem é intimamente articulado com a ideia de alma que eu já descrevi aqui naquele mau encontro dos xamãs com as seitas religiosas que buscavam a salvação individual. Então Sócrates tem essa ideia de imortalidade da alma, ele tem a ideia de metempsicose, de transmigração das almas; e ao mesmo tempo ele acredita que pode sair do circuito, do círculo das reencarnações com a postura extremamente moral e ligada ao Bem. Então a questão dele é essa. E mais: ele acredita piamente que o corpo não só é a prisão da alma, como é o túmulo da alma. Aliás isso é dito literalmente no segundo discurso do Fedro.

A questão de dar uma consistência teórica a essa postura socrática é tomada como tarefa por Platão. Platão vai gerar uma série de movimentos para atingir ou formular o seu sistema filosófico. Como é que recebemos o platonismo? Geralmente o modo como o platonismo nos é passado é o seguinte: existiria uma divisão entre dois mundos – isso é que é o mais comum, o mais vulgar: uma divisão entre o mundo das essências e o mundo das aparências, o mundo dos modelos e o mundo das cópias, o mundo das Ideias e o mundo das imagens, o mundo do original e das cópias ou dos simulacros. Enfim, geralmente temos a ideia de que há o mundo do Ser enquanto Ser, e o mundo dos seres terrenos. Esses dois mundos são absolutamente separados. E o mundo das essências, das Ideias, dos modelos, do inteligível, do Ser em si, seria o mundo verdadeiramente real, a realidade inteira estaria neste mundo. Vamos ver depois porque Platão diz que a realidade está neste mundo, ele tem uma razão muito própria para dizer isso, que vai fundar a identidade no ocidente; é o modo como se funda a identidade e, em consequência, também a ideia de semelhança. São duas ideias fundamentais que vão dar sustentação aos pilares do sistema representativo no ocidente: toda a representação ocidental se funda, se apoia nas ideias de identidade e de semelhança. A ideia de identidade, que é algo que vai do Mesmo ao Mesmo, é aquilo que Platão entende por verdadeiramente real, por absolutamente real.

Esse mundo das ideias, das essências, do inteligível, dos modelos ou do Ser verdadeiramente real é um mundo que está numa esfera arara-celeste, está além dos céus, está fora da própria natureza. O mundo aqui de baixo, nas esferas celestes e infra-celestes, é um mundo de imagens, de aparências, de sensações, de movimentos sensíveis; de cópias, de simulacros, de imitações; não é o mundo do Ser, é o mundo do devir, um mundo onde as coisas não permanecem tal qual são e onde as coisas, uma vez de um jeito, com o tempo mudam sempre. Então você tem necessariamente um saber de opinião. Então aqui este mundo gera um saber de opinião e os que se atêm a esse mundo não passam de phylodoxoi, de amigos da opinião. Platão quer formar o filósofo, o amigo da sabedoria. E Platão acredita que a sabedoria estaria nesse mundo das Ideias, nesse mundo arara-celeste que é um mundo absolutamente pronto; a Ideia ou o modelo platônico são coisas acabadas, realidades que nunca mudaram, que sempre existiram, existem e existirão tal qual são. Então esta imutabilidade ou esta permanência absoluta geram o critério de eternidade, geram o critério de algo verdadeiramente real.

Platão acredita então que toda a vida e todo o pensamento dignos ou virtuosos devem se orientar para estas alturas porque é nas Ideias, neste mundo suprassensível, neste mundo arara-celeste, que o Bem se constitui em si mesmo. A Harmonia absoluta, a Justiça, a Beleza, a Sabedoria, se unificam na Ideia de Bem; então Bem é o Uno, Bem é o que unifica todas as Ideias ou todos os modelos; a unidade fundamental suprema em Platão é o Bem ou o Uno, que é a mesma coisa. E o Bem implica essencialmente a Sabedoria, a Justiça e a Beleza – são três ideias essenciais em Platão.

Participante: Isso para ele é uma ideia ou um deus?

Olha, deus ou ideia, é a mesma coisa. Não é ainda o nosso deus antropomórfico e antropológico, não é ainda o deus à imagem e semelhança do homem como é o deus cristão, o deus judaico, o deus islâmico, etc. Platão acredita atingir uma Ideia sem figura, sem imagem, sem cor, sem sabor – como ele diz -, ou seja, uma Ideia pura sem os elementos sensíveis porque os elementos sensíveis fazem parte da contaminação, da impureza. Platão quer atingir a pureza, ele quer atingir aquilo que é desencarnado, descorporificado.

Então, aparentemente, reverter o platonismo – que é a nossa questão e a nossa tarefa – seria abolirmos o mundo das essências e das aparências; não haveria nem essência e nem aparência e nós estaríamos já numa linha de reversão do platonismo. Mas isso Kant e Hegel também quiseram e fizeram ao seu modo. Reverter o platonismo, na realidade, é reverter o platonismo no sentido nietzscheano do termo: reverter o platonismo é reencontrar a imanência e desmontar Platão a partir do seu próprio movimento de subida, fazer Platão descer pelo mesmo caminho que ele subiu, forçá-lo a fazer o caminho de volta. E ele mesmo faz, no Sofista, esse caminho de volta, até um certo ponto. Aí ele se debruça sobre o abismo e diz: o não-ser do sofista, o não-ser do simulacro, não é nenhum não-ser; ele tem um tipo de ser que não subverte apenas o modelo mas ele nega tanto o modelo quanto a cópia. Ele já está numa outra posição, numa outra linha, numa outra orientação: o ser do simulacro já se dirige para outro tipo de realidade. A realidade platônica não existe como problema para um sofista, por exemplo, ou para aquele que se liga por superfície, ou mesmo para aquele que se liga com as profundidades, como seria o caso dos pré-socráticos. Isso seria um falso problema para eles. No entanto Platão, ali no Sofista, já nos indica a reversão do platonismo, a direção e o modo como deve ser feita a própria reversão do platonismo.

Reverter o platonismo, diria Deleuze, significa antes de tudo pôr à luz a motivação platônica, o que move Platão, o que Platão quer. E essa postura é nietzschiana o tempo inteiro. Nietzsche diz: eu, mais do que filósofo, sou um psicólogo dos filósofos, um psicólogo profundo dos filósofos, porque a minha questão não é saber se Platão estava certo ou não, se ele estava dizendo a verdade ou não, mas que valor tem a verdade de Platão e o que quer Platão ao querer esse tipo de verdade. É o valor do próprio valor e o sentido desse sentido das alturas, dessa orientação das alturas. Que sentido é esse, no fundo? O que ele revela nessa postura? O que é inconfessável em Platão? E é essa a questão que queremos fazer. Ou seja, reverter o platonismo encurralando Platão do mesmo modo que ele encurrala os sofistas, pondo a motivação dele à tona.

Platão, a princípio – em algumas obras dele isso fica muito claro – quer fazer a diferença, ele quer selecionar, ele quer filtrar. É isso que ele quer, esse é o motivo dele. Mas ainda é um motivo meio genérico, indeterminado: fazer a diferença do quê? Aparentemente seria entre inteligível e sensível, entre Ideia e imagem, entre modelo e cópia, entre o mundo suprassensível e o mundo sensível, entre o ser e o devir. Aí vamos analisar o instrumento que Platão usa para fazer a filtragem, para fazer a seleção, para fazer a diferença. Nesse instrumento, nesse meio, nessa ferramenta que Platão inventa para fazer a diferença, ele começa a revelar a motivação dele de modo muito mais claro. O seu método, o seu meio, a sua ferramenta, chama-se método de divisão – método de divisão porque ele quer separar o joio do trigo, o puro do impuro, o ser do devir, o inteligível do sensível, etc. Então ele começa, em várias obras, fazendo um exercício dialético. O exercício dialético que Platão faz é evidentemente já uma herança socrática e da própria cidade grega, mas com algumas nuances, com algumas diferenças; Platão já está inventando uma dialética própria.

Sócrates já tinha inventado uma dialética própria. O que Sócrates tinha inventado na sua dialética? Ele utilizava a dialética para encurralar o sofista do seguinte modo: discutia-se algum assunto, ia-se definir algum objeto, alguma coisa, e a definição do objeto do ponto de vista do sofista era sempre uma relação singular no mundo; do ponto de vista de Sócrates o objeto nunca está no mundo, o objeto sobe, o objeto é uma abstração, o objeto é um objeto geral, um objeto universal. No mundo você não encontra nenhum objeto geral, só encontra objeto singular ou particular ou objeto determinado. Para Sócrates não é essa a verdadeira orientação do pensamento e nem o seu verdadeiro objeto; o verdadeiro objeto do pensamento, para Sócrates, é uma Ideia geral. Então é desse modo que ele ironiza o sofista dizendo: o seu saber é uma doxa, é uma mera opinião sobre relações cotidianas, vulgares, profanas; o meu saber, diria Sócrates, é sagrado, o meu saber vai na pura ideia, o meu saber não é contaminado pelas particularidades do mundo, o meu saber é um universal. É isso que Sócrates está inventando.

Nessa dialética socrática, ainda que seja uma dialética negativa no sentido de que ele nunca define verdadeiramente o objeto mas ele simplesmente destitui o sofista do seu saber – é esse o objetivo de Sócrates ao desenvolver esse método das aporias -, ao mesmo tempo Sócrates, que é filho de uma parteira, acredita que a atividade espiritual é parir, ela tem a ver com o parto. E o parto, segundo Sócrates, não é de uma ideia nova, não é de um rebento novo, inédito no mundo, é um rebento antigo, é algo que já existe desde sempre. Então haveria um despertar, na maiêutica socrática, como que uma reminiscência que vai se clareando, há uma relação com a memória, há uma relação com uma vida passada, há uma relação com algo vivido mas esquecido. E, na medida em que o corpo é a prisão ou o túmulo da alma – resultado daquele mau encontro do xamanismo com as seitas religiosas -, já há em Sócrates a ideia de que o corpo é fonte de esquecimento, é fonte de desorganização, de desarmonia, de desregulação, porque a Forma é uma pura memória. A Forma, ou a Ideia, ou o modelo universal, é aquilo que não se esquece.

Alétheia em grego é exatamente isso, é um não-esquecimento. Os que leram o texto Os mestres da verdade na Grécia arcaica devem ter percebido que existe lá uma ambiguidade entre Alétheia e Lethé. Lethé é o esquecimento e Alétheia é o não-esquecimento. Mas o não-esquecimento no modo arcaico de se produzir a verdade é algo absolutamente distinto do modo socrático – Sócrates e Platão inventam uma nova maneira de se relacionar com isso. Porque o não-esquecimento do mundo arcaico é uma presença que se apodera de alguém, é uma posse, um deus se apodera de um homem e o deixa louco, em delírio, possesso, e na possessão de um discurso inspirado ele vai dizer a verdade – a verdade de um passado, do presente oculto ou do futuro, seja inspirado por Mnemosyne, Dionísio ou Apolo. São modos que se apoderam de um ser e emitem, a partir de uma presença absoluta e atual, a própria realidade.

No caso de Sócrates a realidade não é presente, a realidade é passada, ela está em um passado. Eu tenho que aceder novamente a este passado, eu tenho que regredir a este passado. Todo o modelo ocidental da representação é fundado nisso. Ou estamos na memória ou, no máximo, no projeto; oscilamos entre memória e projeto e perdemos o devir. O tempo inteiro estamos nisso. É o modelo da reminiscência ou da recognição. Então Platão acredita, junto com Sócrates, que as Ideias estão prontas, os modelos existem em si mesmos e que tudo que temos a fazer é lembrá-los, ter uma atitude de reminiscência em relação a eles. Mas isso vai ficar claro daqui a pouco. Vamos seguir ainda desmontando o platonismo e depois retornamos para esta questão: o saber, o pensamento como reminiscência ou como recognição.

Então o que Platão quer? Platão quer fazer a diferença. Fazer a diferença com um método que ele inventa, chamado método da divisão. E este método trabalha com duas potências. A primeira potência é o que eu estava descrevendo há pouco: a potência dialética que levaria a uma suposta definição. Platão já ultrapassa a posição crítica, aparentemente, e constrói uma definição segundo a dialética; ele não usa mais a dialética simplesmente para negar o saber do sofista, ele já começa a criar uma definição. Mas a definição platônica é ainda uma definição super-genérica e se essa definição fosse levada a sério pelo próprio Platão, Aristóteles teria plena razão ao criticar o método de divisão dialético de Platão ao dizer que falta, para Platão, um termo médio para dar a razão interna que faria dividir um gênero em espécies. Por exemplo, eu quero definir a pesca. A pesca é o objeto mais específico, digamos assim, que eu quero definir, então eu parto de uma ideia super-geral. O que seria a pesca na sua ideia mais geral? É uma arte, diria Platão. Aí tem arte por aquisição, arte por captura, arte por produção artesanal, tem vários tipos de arte. Ele vem dizendo: a pesca é uma arte de aquisição, e de aquisição por captura; e vem especificando até chegar à definição mais ínfima possível. Aristóteles diz que faltaria a Platão um termo médio que daria a razão interna. É o que Aristóteles vai chamar de “as cinco vozes”: gênero, diferença específica, espécie… enfim são cinco vozes que ele utiliza para fazer o silogismo ou a operação racional no seu sistema. Então faltaria, segundo a crítica aristotélica, esse termo médio.

Mas Platão não está preocupado com isso, Platão não quer dividir gêneros em espécies. Por que ele não quer dividir gêneros em espécies? Se você pegar os maiores textos em Platão sobre o método de divisão – que são o Sofista, o Fedro e o Político – você vai ver que Platão, sempre que chega a alguma definição, revela uma pluralidade de pretendentes que querem usurpar essa definição e se forma um impasse: que critério eu teria para definir o verdadeiro pretendente? A questão fundamental é sempre essa. No Político, por exemplo, Platão chega a uma definição: político é o pastor dos homens. Aí imediatamente o médico, o ferreiro, o açougueiro, o sofista, vão dizer: o pastor dos homens sou eu. Então a definição dialética é uma malha demasiado larga onde muitos peixes passam, muitos animais pequenos, miúdos, passam. Platão tem que fazer uma malha fina, tem que pegar os animais, por exemplo, que mataram Sócrates. A obra platônica é totalmente inspirada na morte de Sócrates que Platão acha totalmente injusta; a obra platônica é quase uma vingança da morte de Sócrates, quase podemos dizer isso. Não vamos reduzir a isso porque seria pouco, é muito mais do que isso, mas ela tem uma motivação forte nisso. Então Platão quer pegar esses sofistas, esses falsos políticos, esses tiranos, esses poetas, todos esses que acreditam ter relação com a sabedoria e com a verdade e cometem muitas injustiças na cidade, levam a cidade para a decadência e a natureza se desorganiza. No Fedro a mesma questão. No Fedro a questão é definir o verdadeiro delírio e o verdadeiro amante. Aí Platão, ao definir o verdadeiro delírio, vai gerar novamente uma aclamação para que o verdadeiro amante se passe, por exemplo, segundo o discurso de Lísias, por aquele que não é apaixonado. E outras formas de pretensão que geralmente levariam a uma injustiça.

Então temos aí uma pista: se a definição dialética não basta e imediatamente aparece um problema porque uma multidão quer se arvorar o direito a aquela qualidade, pretende aquela qualidade – a qualidade de verdadeiro político, de verdadeiro amante, de verdadeiro sábio -, Platão precisa inventar um critério para atribuir ou não aquela qualidade a aquele pretendente. Então ele precisa criar um critério, ele precisa fundar esse critério. É um critério de autenticidade, ele precisa ver o que é autêntico e o que é inautêntico, o que é verdadeiro e o que é uma falsificação. Tem que inventar esse critério. Ele percebe que a dialética é insuficiente para isso. Na insuficiência dialética Platão, aparentemente, abandona a divisão e começa a entrar num discurso não dialético, não racional, um discurso mítico. E desenvolve esse discurso mítico segundo uma narrativa circular. A circularidade é própria aos mitos de soberania e Platão, estranhamente, se serve de mitos circulares, de mitos que fazem um movimento que vai do Mesmo ao Mesmo. E esse movimento que vai do Mesmo ao Mesmo é uma ordem perfeita, uma ordem harmônica, uma ordem absolutamente bela, absolutamente justa, absolutamente sábia. Porque eterna, porque permanente, porque sempre causa de si mesma, move-se a si própria – e quem move-se a si próprio nunca deixará de mover-se; por isso eterno, incriado e incorruptível.

Na medida então em que ele gera essas narrativas míticas, percebemos que se destaca um critério para avaliar o verdadeiro e o falso, fazer a distinção entre o verdadeiro e o falso, o puro e o impuro, o autêntico e o inautêntico. No caso do Político, por exemplo, ele vai narrar o mito do deus arcaico, o mito de Chronos, onde havia uma circularidade do tempo, das estações, dos ciclos vitais, naturais e anímicos que geram uma ordem perfeita no mundo, geram o paraíso na Terra, por exemplo. Na época em que Chronos governava o mundo – e podemos fazer uma analogia direta com o Ánax micênico, porque essa mitologia é micênica – época que ele chama de Idade de Ouro, não havia pestes, fome, desordem, injustiças, misérias; ou seja, nenhum tipo de mal. Essa ordem era perfeita porque os movimentos não se deixavam mudar, não se deixavam corromper, não se deixavam desviar, porque era um círculo perfeito, tudo vinha e ia do Mesmo ao Mesmo.

Ora, esse deus arcaico, ou essa narrativa do mito de Chronos, não é uma mera ilusão ou ideia de se atingir a origem. É uma narrativa de fundação, tal qual eram as narrativas de fundação dos regimes despóticos. Essa é a sutileza. Se vocês leram o último capítulo das Origens do pensamento grego, de Jean Pierre Vernant, vocês lembram que há sempre uma distância entre a origem e o começo. O começo é quando você funda uma ordem cósmica através de uma narrativa mítica da luta de um deus contra os monstros. Platão está usando o mesmo artifício: ele está gerando uma narrativa mítica que funda uma ordem no mundo, desse deus arcaico por exemplo, no caso de Chronos; e no momento em que Chronos abandona o governo do mundo – nós estamos na época de Zeus, por exemplo, ainda que Zeus já esteja muito separado deste mundo -, existiria então uma A desorientação fundamental e os homens se desgarram do rebanho porque o pastor se retirou do governo social. Então no momento em que se narra o mito de Chronos, Platão está dizendo: o verdadeiro pastor dos homens, o verdadeiro político, é Chronos e ninguém mais; só Chronos merece a qualidade de pastor dos homens. Essa qualidade de pastor dos homens pertence primeiramente e sempre ao deus arcaico, a Chronos. Então daí se destaca o quê? Destaca-se o critério, evidentemente: segundo a aproximação ou o afastamento desse mito circular, do modelo imanente que ele gera, eu vou ter a qualidade de político em segundo, em terceiro, em quarto, em quinto lugar, até eu ter um puro simulacro dessa ideia de político ou de pastor dos homens. Daqui a pouco vamos falar como é essa relação de aproximação ou de afastamento, onde está a questão fundamental.

No Fedro, que é outro texto que tem o método de divisão ao seu modo completo, Platão vai fazer a narrativa dialética do verdadeiro delírio ou do discurso inspirado e vai relatar, no segundo discurso de Sócrates, os antigos discursos míticos ou os antigos discursos inspirados, que são exatamente o que eu já relatei para vocês – o do poeta, o do profeta e o do sacerdote ou rei de justiça. Mas Platão vai dizer que tem um outro discurso que é infinitamente superior a esses discursos da antiguidade arcaica. E, segundo Platão, esse discurso ou esse delírio é o delírio erótico. Então Eros, ou a posse de Eros, vai fazer com que o verdadeiro discurso inspirado gere um verdadeiro amante. Mas novamente o problema: uma série de amantes ou de inspirados vão pretender serem eles o verdadeiro inspirado: “eu sou o verdadeiro amante”, “eu sou o verdadeiro inspirado”. E novamente o problema: como fazer a seleção.

Surgindo esse problema, abandona-se a definição dialética do verdadeiro discurso inspirado e narra-se o mito da circulação das almas. O mito da circulação das almas diz mais ou menos o seguinte: toda a alma humana, que é necessariamente imortal – ele vai fazer lá uma dedução de que tudo o que se move por si mesmo tem uma alma imortal – necessariamente tem uma parte dela que tem origem divina. Porque seria impossível uma alma habitar o homem se não tivesse essa conexão com o divino. Porque o homem tem um modo de falar e de pensar, mesmo na opinião, que o aparenta ao divino, o assemelha ao divino. Seria impossível ele falar ou pensar do modo como o faz sem ter essa origem divina. Enfim, essa questão faz com que se salte imediatamente para a natureza da alma: se a alma é imortal e tem origem divina, eu quero saber agora qual é a natureza dessa alma. Aí Sócrates vai fazer uma comparação: a alma humana e as almas em geral são como uma parelha de cavalos, de corcéis, puxando um coche, um carro – aquele carro de duas rodas que se usava em combate – com um cocheiro. Então a alma seria um cocheiro com dois cavalos e um carro ou um coche. A parte do cocheiro representaria o governo, a direção, a razão da alma, a parte racional, a parte intelectual da alma, a parte divina da alma. Um dos cavalos seria negro e representaria a parte baixa da alma, a parte corpórea, a parte lasciva, a parte degenerada, o cavalo de má raça que puxa o coche. O outro cavalo seria um cavalo-branco que oscila entre o cavalo negro e o cocheiro; esse cavalo-branco é tido como a coragem, como a força, como a energia, que tanto pode apoiar o cocheiro como apoiar o cavalo negro. A questão toda aí, então, é o comando e a hierarquia no interior da própria alma, no interior do próprio ser.

E ao narrar esse mito da circulação das almas, Sócrates vai dizer que de quando em quando há um cortejo das almas atrás dos deuses que contemplam as realidades divinas, as realidades fora deste mundo, as puras Ideias. E este cortejo faz com que as almas mantenham vivas as Ideias no seu íntimo. No caso dos deuses, esse movimento é perfeito, sem desvios, sem dissidências, sem perturbações; o movimento dos deuses é perfeito, é um movimento circular e no movimento circular eu tenho uma harmonia, uma regularidade, uma constância, uma permanência, uma imutabilidade do que é. Então os deuses contemplam as suas realidades plenamente porque eles não têm os cavalos de má raça; os cavalos dos deuses são todos de boa índole. Mas existe um tipo de alma, existe um tipo de seres que seguem o cortejo dos onze deuses – porque Héstia, que é a Terra, fica em casa, eles acreditam na imobilidade da Terra – que já têm uma mistura, já têm cavalos mestiços, sendo um negro e um branco. O cavalo negro que não é submetido vai atrapalhar essa viagem no mundo arara-celeste; quando esses seres vão contemplar as realidades divinas, as puras Ideias, ao mesmo tempo que os cavalos precisam conduzir o coche e o cocheiro, um pode puxar para um lado, outro puxar para o outro, e o cocheiro vai ter que se distrair tentando dominar os cavalos. Quando ele faz um movimento de domínio dos cavalos, ele se distrai das realidades que ele deveria contemplar. O que acontece? Essas almas ou esses seres sofrem pequenas quedas, pequenas depressões – ou grandes depressões. E quanto mais perturbado for o seu cavalo negro, mais eles caem; e quanto mais caem, mais esquecidos eles são, mais eles ficam pesados, mais eles ganham corpo, menos leves eles ficam.

O que ocorre aqui? Aparentemente Platão simplesmente desistiu de fazer o raciocínio dialético dele, usando a razão dialética para definir o verdadeiro amante, o verdadeiro inspirado; faz uma narrativa mítica e não se vê nada. Mas na sequência vai haver um momento onde Sócrates vai dizer: existem almas que viram muito e almas que viram pouco. As almas que viram muito geralmente são as almas dos filósofos que têm muitas lembranças, que têm muitas recordações; e as almas que viram pouco geralmente são as dos sofistas, dos tiranos, dos camponeses, dos escravos, das mulheres, das crianças. (As crianças nem todas porque elas ainda têm como reverter; se elas forem homens livres com sabedoria, elas vão revelar que elas viram bastante também) Então daí se destaca um critério para distinguir o verdadeiro do falso amante. Eu já volto para dizer que discurso é esse, como funciona o discurso erótico. Aqui eu só fiz um aparte para dizer o seguinte: no método de divisão – para separar o trigo do joio, o puro do impuro, a Ideia da cópia, etc. – nós temos duas potências: uma potência dialética que se utiliza do modelo racional, demonstrativo, abstrativo, ascendente – ou seja, na discussão você vai ascendendo a uma abstração maior -; mas vocês lembram que eu falei que Sócrates tinha uma forma de fazer com que o próprio discípulo ou interlocutor descobrisse a verdade que ele já sabia, um método de reminiscência. Ele, como filho de parteira, se dizia parteiro da alma, ou seja, a Ideia é gerada em você a partir de você mesmo: você já sabe, só que você não sabe que sabe. Então através da sua maiêutica, do seu método dialético, ele vai fazer com que essas Ideias venham à tona, porque haveria uma reminiscência. Ora, Platão está casando isso, está se servindo do método dialético, com essa ascensão até a definição, e em seguida há uma relação intuitiva, há uma relação contemplativa, há uma relação de evidência que se revela segundo uma maneira de eu me relacionar no mundo ou com a natureza. A questão toda é essa. Que maneira é essa?

Platão diz que o verdadeiro amante, o inspirado, tem um movimento que surpreende os homens comuns na seguinte medida: quem ama geralmente ama corpos, geralmente ama objetos mundanos, geralmente ama as coisas da natureza, alguma coisa que nos atravessa. Mas o verdadeiro amante, diferentemente disso, apesar de amar intensamente esses objetos da natureza, em vez de se relacionar diretamente com o objeto, ele se lembra – através da inspiração causada pelo objeto – de alguma realidade que ele já viveu, que ele já vislumbrou. Nesse mito da circulação das almas Platão diz que a Ideia mais luminosa é a Ideia de Beleza. As Ideias, diz ele, têm brilhos diferentes: a Ideia de Justiça não tem o mesmo brilho que a de Sabedoria, e a de Sabedoria não tem o mesmo brilho que a de Beleza. A Beleza, de longe, é a que brilha mais. Por isso a Beleza aqui de baixo é capaz de dar novamente asas para a alma, porque as almas caídas, as almas que incorporam ou que encarnam os corpos, perdem as asas. Mas há um movimento de retomada disso, um movimento de ascensão através de uma maneira de se relacionar com a Beleza aqui de baixo.

Então Platão diz: o verdadeiro amante você reconhece quando, ao se relacionar com o objeto amado, ele, em vez de querer levar a relação a cabo – por exemplo, uma relação sexual –, ele vai se abster do ato, ele vai refrear o seu cavalo negro e o seu cavalo-branco; vai até o objeto, estremece, sente calor e sente uma energia atravessar todo o seu corpo e insuflar internamente o seu corpo – e a sua alma, principalmente –, fazendo com que a alma crie plumas, com que a alma crie asas e plumas. E, em vez de a alma e o corpo se relacionarem diretamente com o corpo nesse mundo, nesse movimento a alma vai se lembrar do que ela viu quando ela fez o passeio divino. Então ela vai se lembrar porque todas as almas que são humanas necessariamente fizeram esse passeio divino. Ela vai se lembrar – ou não – do que ela viu no mundo arara-celeste. E ao se lembrar, se ela tem o seu cavalo negro dominado, sob controle, ela vai ver no objeto amado algo de que o próprio objeto amado participa.

O objeto amado participa da Ideia de Beleza, mas a Ideia de Beleza não é o objeto amado. A Ideia estaria fora do objeto amado, ainda que ela esteja ali insuflando o objeto amado – e é por isso que o objeto amado deve ser reverenciado, deve ser admirado e deve ser amado loucamente, porque aqui Sócrates e Platão estão elogiando a loucura do discurso inspirado, eles estão elogiando a desmesura, a desmesura que faz com que essas almas, ao verem um objeto belo, se perturbem de tal maneira que elas se desapeguem dos objetos terrenos e comecem a ascender para o verdadeiro objeto, para a verdadeira Beleza. Então o objeto amado é apenas um signo, uma marca, um índice da Ideia de Beleza. Então aquilo é um indicador para o movimento ascensional. Eu tenho que me relacionar com a superfície de modo a ver no objeto belo uma semelhança espiritual à Ideia de Beleza. É esse o movimento, uma semelhança espiritual. Uma semelhança espiritual não é uma semelhança na imagem do corpo, não é uma semelhança no próprio corpo; é uma semelhança segundo a relação constitutiva interna da Ideia de Beleza. Há uma relação interna que constitui a Ideia e o modelo de Beleza. E essa relação interna da Ideia é o que o Platão chama Forma: a Forma é uma pura Ideia sem absolutamente nenhum elemento corpóreo, nenhuma matéria, é uma pura Ideia que tem movimento interno intrínseco circular. Isso que é essencial.

Participante: Como pode haver a desmesura por um objeto amado se essa desmesura é controlada e jogada num vetor ascendente? E como é possível se desapegar das coisas terrenas sendo desmesurado pelo objeto amado?

A desmesura aí é utilizada para tirar o homem dos seus interesses comuns. Segundo Sócrates e Platão o homem geralmente tende para a riqueza, tende para as disputas políticas, tende para os prazeres. E geralmente existe uma regra comportada do uso das riquezas, do uso dos prazeres ou da prática política. O homem se aplica muito às coisas terrenas, às coisas materiais. Então Platão aqui está jogando a desmesura e a loucura para arrancar o homem das coisas materiais porque o homem acredita que naturalmente ele é voltado para as coisas terrenas e corpóreas. Platão está invertendo a coisa e está dizendo que naturalmente nós temos uma origem divina e que naturalmente o pensamento deve se orientar para as alturas, naturalmente o pensamento deve voltar para a sua origem. E para isso ele conta com uma certa loucura, com uma certa desmesura. Então ele usa a loucura num sentido oposto ao que seria a loucura ou a desmesura daqueles homens perversos que só pensam em exercer os seus prazeres da forma mais enlouquecida possível. A loucura é apenas para deixar a alma totalmente inquieta e para que ela se lembre do que ela viu numa vida passada e comece a fazer o movimento ascensional. Os homens comuns e normais, esses homens que acedem à verdade, são de fato loucos porque eles abstraem a realidade terrena. O corpo e a terra são algo negativo, algo que aprisiona a alma, algo que impede a verdade, algo que é fonte de esquecimento, de Léthe. A Alétheia, que é o não esquecimento, é sempre uma memória anterior à vida atual.

Participante: Esse movimento contempla inclusive a paixão? A paixão desenfreada, por exemplo? A desmesura vai nesse sentido.

Sim, o homem apaixonado é um homem cheio de paixões; mas aí a paixão a serviço da parte nobre da alma, diria Platão, da parte intelectual da alma. A paixão é apenas um movimento de desterritorialização – para usar um termo deleuziano – da alma do corpo. É o movimento de ascensão. Para você arrancar a alma do corpo tem que ter uma paixão violenta. Então de fato é paixão porque você não foi a causa consciente disso, você foi tomado, você foi violentado pela Ideia de Beleza, num corpo belo. Então aquela Beleza se apoderou de você e você não consegue ficar impassível diante daquilo: aquilo evidentemente incomoda, te toma, se apodera de você. E se você for uma alma virtuosa, se você for um daqueles que viu muito, que tem o cavalo negro domesticado, que tem o cavalo-branco a serviço dessa alma intelectual virtuosa, você, em vez de consumir o objeto da Beleza aqui na Terra, você vai simplesmente manter uma relação de amizade com esse objeto – ainda que você esteja absolutamente encantado e apaixonado -, numa relação de conduta mútua: você vai fazer com que o objeto amado participe também dessa Ideia de Beleza. Então você vai fazer com que o movimento seja duplo.

No delírio erótico do Fedro existe uma prática grega instituída que é a prática do “homossexualismo” entre sábios ou velhos – sábios, sofistas, filósofos – com os efebos ou com os adolescentes que eram educados. Geralmente os gregos instauram aí uma problematização – o livro da História da sexualidade II do Foucault é inteiramente sobre isso – porque vão ter movimentos absolutamente negativos e desintegradores da sociedade, nesse sentido: a desonra do jovem, a passividade do jovem. O ideal grego é de formar um cidadão ativo, honrado, que seja causa dos seus atos. Então os próprios gregos vão problematizar isso e vão gerar uma mudança do movimento apaixonado e erótico por um movimento de phylia; eles vão estilizar essa relação através de uma relação de phylia, de amizade, e através da amizade é que eles vão educar o jovem para se tornar um cidadão. Então é uma prática que eles vão problematizar em função disso.

A erótica platônica se serve disso e em vez de entrar no discurso reservado dos moralistas gregos comuns, que querem levar isso para a amizade, para o movimento do não apaixonado, Platão vem e faz o discurso contrário e diz: o verdadeiro amor, o verdadeiro amante, ou a verdade, está no movimento apaixonado. E aí Platão vai dizer que a paixão vem através de um deus – um deus que é Eros, filho de Afrodite, e que toma conta do homem nessa ligação entre o humano e o divino. Ele faz novamente o homem ascender para o seu lado divino. Então o movimento erótico platônico não é um movimento erótico corporal ou natural, é um movimento erótico intelectual. Ele investe, ele inventa um desejo que se orienta para as alturas e não mais para os corpos; e a satisfação desse desejo é atingir a Forma pura da Ideia ou a contemplação pura da Ideia.

O efeito dessa contemplação é a conquista de uma semelhança: no momento mesmo em que eu faço esse movimento de ascensão, eu me amoldo internamente ao modelo. Ao me amoldar internamente ao modelo eu me torno uma cópia da relação interna e própria que o modelo traz em si mesmo; segundo o grau de semelhança que eu vou ter em relação a esse modelo, vai ser também a minha dignidade e o meu valor na Terra. A partir daí então Platão leva a cabo o método de divisão e fica muito claro que o que Platão queria não era dividir gênero em espécie a nível espacial, a nível horizontal, mas a nível muito mais profundo dividir linhagens, homens de boa índole dos homens de má índole, os puros dos impuros, os bons dos maus, os verdadeiros dos falsos. Platão quer selecionar os pretendentes e a peneira dele fica muito mais fina quando ele instaura o mito como um critério de seleção, porque só ao mito pertence a realidade em primeiro lugar, só o mito tem a qualidade em primeiro lugar daquilo que os pretendentes vão tentar se apossar.

Então o modelo platônico, esse método platônico, é um método seletivo que é solucionado por uma participação eletiva. Quem participa da qualidade que só pertence ao modelo, quem participa da qualidade que só pertence à Ideia, é aquele que é dotado de uma semelhança interna a esse próprio modelo. Há uma tríade platônica sempre: você tem o modelo que é primeiro, absolutamente primeiro; todos os seres da Terra, todos os seres humanos, por exemplo, são – no máximo, no melhor dos casos – segundos, nunca são primeiros. Primeiro é só o modelo. O modelo é imparticipável; ele tem algo em primeiro lugar, e só ele tem algo em primeiro lugar. Nós, necessariamente, já temos, no melhor dos casos, em segundo lugar. Ou seja, nós somos seres já em falta, há uma distância entre o ser original e o ser humano, por exemplo. O ser humano já tem um deficit, já tem uma dívida existencial, já tem uma culpa aí, já há uma irrealidade essencial no ser humano, ainda que ele tenha uma parte divina. Ele pode conquistar, talvez, a libertação absoluta depois de um ciclo de 10.000 anos; se ele for filósofo, em 3.000 anos ele sai. São dez reencarnações no mínimo ou, no caso do filósofo, três reencarnações; a cada mil anos você faz uma reencarnação. Você tem uma vida e você vive mil anos numa determinada região, depois você reencarna.

Participante: Mas essa ideia de culpa, de dívida, aí já existia, não é?

Já está sendo instaurada a distância objetiva, digamos assim. Ela não é subjetivada ainda, não há uma interioridade fechada como vai ser o caso do cristianismo, mas você já tem o critério objetivo para que isso seja gerado. É o que Nietzsche chama de ideal ascético, é o primeiro aspecto do niilismo. O ideal ascético é o que volta a vida, o pensamento e o desejo para uma realidade fora da natureza, dizendo que esse mundo arara-celeste é o mundo verdadeiramente real, e no mesmo movimento está implicado, está implícito, que a terra, que a natureza, que os corpos, que a vida, que o pensamento não são verdadeiramente reais, são inferiores. Então há uma desqualificação imediata disso. Se eu participo disso, eu tenho já uma dívida espiritual sim; mas Platão gera ainda a possibilidade de você se libertar – depois de 10.000 anos você pode quitar a sua dívida. Então ainda você tem aí uma ambiguidade, não é ainda aquela dívida infinita na sua forma superior como vai ser no próprio cristianismo e depois no sistema capitalista, ou com a própria psicanálise – a psicanálise se liga também à dívida infinita. Em Platão você ainda quita a sua dívida; depois de 10.000 anos, dependendo do seu comportamento, você se libera.

Participante: Eu estava pensando numa metáfora econômica: a dívida externa. É um Estado que cobra de outro Estado. Dívida externa.

Exatamente: externa. Você vê o FMI aí ditando – põe ministro, troca ministro, põe cavalo, põe burro, põe zebra. Vão inventando do jeito que eles querem. Por que? Porque eles têm o comando de fora.

Participante: Eu não estou querendo ter muita boa vontade com Platão nem conciliá-lo com Nietzsche, mas se pensarmos essa ascensão tendendo ao Uno – que seria o Belo, o Bom, o Justo – e pensarmos esse Uno dentro dessa nossa perspectiva como um modo afirmativo, um modo estético, esse Belo como um modo estético de viver, será que não daria aí para fazer um mínimo de conciliação?

Tendemos a isso. Separam a nossa força do que pode, mas ela tende a se efetuar nessa proposta afirmativa, num modo ativo.

O que tem de positivo em Platão é o seguinte: Platão descobre – ou inventa – um tipo de ontologia onde o pensamento tem realidade própria e absoluta. Então isso, digamos, é comum a nós, nós também pensamos assim – o pensamento tem realidade própria e absoluta. Ainda que o absoluto do pensamento seja completamente outra coisa do que o Platão disse que era. Platão estava numa ficção, Platão estava num mito.

Isso é uma coisa em comum. A diferença fundamental é que a ideia nunca é uma coisa universal – a não ser como efeito, mas aí esse efeito já perde o seu aspecto criativo e de potência imanente, ele já é usado como sistema representativo ou universal, digamos assim. Há uma singularidade sempre nas ideias e mais: as ideias não são causas dos corpos. Platão acredita que a causa do movimento está na Ideia; que a causa da organização dos corpos belos, da harmonia nos corpos belos, da harmonia no mundo, na cidade – no cosmos, enfim – está na Ideia. E a Ideia platônica, além de ser um universal, é uma Forma, é um elemento formal.

O que pensamos como ideia não é uma Forma; a Forma é um mero efeito da atividade do pensamento, mas o pensamento não é decalcado de uma Forma, ele não parte de uma Forma e não chega a uma Forma. Ele pode até gerar formas, mas o pensamento é muito mais uma linha tortuosa e labiríntica em devir do que uma Forma fechada que vai do Mesmo ao Mesmo, uma Forma circular. Eu acho que não tem conciliação possível porque necessariamente a maneira platônica de ser separa o ser e o devir, o pensamento e o corpo. É até interessante você fazer uma diferença entre pensamento e corpo porque há uma diferença – e é fundamental haver a diferença –, mas a diferença não é de eminência, o pensamento não tem eminência em relação ao corpo e também não tem comando no corpo. É o que fala Espinosa: nós nem sabemos sequer o que pode um corpo e tagarelamos a respeito da alma e da consciência como se a consciência pudesse orientar, guiar o corpo, sem saber no fundo o que comanda o próprio corpo e o que comanda a própria consciência.

Geralmente o que está na consciência é só corpo, às vezes não tem pensamento nenhum. Então querer pôr o pensamento como elemento superior ao corpo e ao mesmo tempo gerar uma Forma à qual o pensamento deve se referenciar, essa Forma é exatamente o modelo do juízo: é onde, através dessa Forma, eu vou poder julgar o pensamento e o corpo.

O julgamento começa no momento em que eu destaco um referencial fora da vida e da natureza. Platão está criando esse critério e esse referencia,. Platão está fundando o juízo transcendente propriamente dito. Porque nos tribunais gregos – que inclusive levaram Sócrates à morte – ainda tem uma imanência passando ali; mas no momento em que você destaca uma Forma que está fora da natureza, que está fora do mundo, que é absolutamente eterna, imóvel, idêntica a si mesma, como sendo a única que tem uma realidade primeira, estou dizendo que eu devo, de qualquer maneira, uma obediência a essa Ideia porque essa Ideia é que é a realidade absoluta. Então há uma submissão da vida, há uma captura da vida, do pensamento e do corpo segundo esse modo de se orientar, porque o critério agora é um universal, é uma Ideia absolutamente desencarnada, uma Ideia formal que tem, no seu movimento circular imutável, o modelo da minha conduta aqui na Terra.
Então na medida em que eu sou um verdadeiro amante, na medida em que eu sou um verdadeiro inspirado, na medida em que eu sou um iniciado, na medida em que eu tenho uma virtude de temperança onde eu submeto as minhas paixões, as partes inferiores da alma e comando através de uma alma intelectiva, nessa mesma medida eu gero um movimento interno em direção à Ideia, em direção ao modelo. Nesse movimento eu capto, como que numa espiral – eu vou subindo, é uma espiral ascensional – até o momento em que a espiral vira um círculo puro em si mesma. Quando virou um círculo eu tenho o decalque fundamental que é o meu modelo de vida aqui na Terra: esse modelo de vida é o que eu devo seguir. Quando eu devo seguir alguma coisa que está fora de mim, eu perdi a imanência. Então não tem conciliação, é pura transcendência.

Participante: Em que lugar fica o mito? Que operação Platão faz no pensamento, ou nessa ideia, em que ele coloca o mito? Porque antes o mito parece que era “terreno”, existia uma comunicação, não existia uma representação das estátuas, aquelas coisas todas. Existia uma relação visceral, viva. Eu quero entender a potência dessa ideia, se essa potência desse pensamento ou dessa operação não foi articulada junto com uma outra ideia sobre o que é o mito. Se se apoiou também numa transcendência ou numa violação daquele mito para esse. E que isso de alguma forma confunde e nos enreda.

Existe um texto chamado O mito do eterno retorno, do Mircea Eliade. Esse texto é fundamental. O próprio Platão, nas suas obras, fala que o mito é circular, que ele tem um movimento circular. Ele insiste nisso. O Mircea Eliade vai insistir no mito do eterno retorno e no eterno retorno do mito.

Participante: Isso é totalmente diferente do eterno retorno do Nietzsche, não é?

É totalmente diferente. É por isso que é inconcebível, para quem se diz nietzscheano, querer que o eterno retorno de Nietzsche seja o eterno retorno do Mesmo. O Nietzsche não seria tão tolo, idiota, medíocre, para repetir uma ideia tão ingênua, que os antigos já tinham incorporado há milênios.
A ideia de circularidade do mito não é simplesmente uma ideia que se faz do mito – o próprio mito funciona desse modo. Mas uma coisa é você fazer funcionar essa circularidade de modo imanente com os mitos da terra, por exemplo, como selvagens fazem, como primitivos fazem, ou como os guerreiros fazem. E outra coisa é você usar isso a partir de um mito de soberania, que é quando você funda uma ordem, quando um deus vence os demônios e os monstros e funda uma ordem a partir disso. A partir daí a circularidade mítica vai ter um caráter ou um critério de seleção: aqueles que estarão de acordo com esta ordem e aqueles que vão ser afastados dessa ordem.

Então não só o mito tem essa forma circular de ser na sua imanência – e não é uma falsa ideia de mito, essa: ele funciona assim – como, no momento em que ele se destaca numa função de soberania – que já é uma função transcendente -, que se destaca da própria sociedade para governar a sociedade, ele adquire esse aspecto de critério e de referencial exterior a ela mesma. Platão pega os dois aspectos e Platão sabe disso. Se você lê o Fedro você vai ver isso claramente dito. Não que ele fale claramente sobre mito de soberania, por exemplo, mas você pega o mito de Chronos, por exemplo – aquele deus arcaico -, e você vai ver perfeitamente o mito de soberania na hierarquia de Zeus: no mito da circulação das almas, Zeus é o deus do filósofo, por exemplo; aquele que está atrás de Zeus é o que vai poder ser filósofo. E quem vai também poder ser verdadeiro político é o rei filósofo. Então é um mito de soberania, o rei filósofo está inspirado em mito de soberania, é quando Zeus domina os outros deuses.

Participante: Mas, ainda assim, parece que Platão pegou só uma parte escaldada dos mitos de soberania – porque eles têm suas paixões, eles matam; são soberanos mas são apaixonados.

É por isso que Platão já está mais ligado à razão. Ele quer o aspecto puro do mito, ele não quer o aspecto passional do mito, ele não quer mais o aspecto mundano – do ciúme, da inveja, das brigas entre os deuses. Ele não quer mais isso, ele quer pegar o mito no seu modelo mais puro, no seu modo mais puro de funcionar. Platão acredita que a Ideia pura funciona desse modo absolutamente puro sem imagem e sem figura. Os mitos humanos, mesmo os mitos de soberania, são cheios de imagens. Platão leva a abstração ao máximo que ele pode, segundo o modelo do mito. Então já é um modelo totalmente abstrativo, mas é um modelo abstrativo preso no próprio molde do mito. É o mito internamente que faz saltar esse modelo.

Participante: Dá para seguir essa mesma lógica e optar por um outro valor do mito. Dá para usar essa mesma lógica do Platão e em vez de optar pelo Bem e escaldar as coisas ruins, optar pelas coisas que tornam os mitos de soberania mais apaixonados.

Sem dúvida. O modo como é feita a leitura do mito pode ser múltiplo. O que interessa é o modo como Platão lê o mito.

Participante: Ele purifica o mito. Há uma seleção dele do que é o mito que ele purificou para chegar a esse ideal.

Ele purifica o mito. O que ocorre? Ele cria uma Forma absolutamente independente da natureza, ele cria uma Forma de modo tal abstrata – e abstrativa – que você não encontra em nenhum objeto, em nenhuma relação no mundo; você encontra simplesmente modos de se relacionar, de viver e de pensar que podem ser inspirados naquele modelo. É como, por exemplo, nas práticas antigas de produção da verdade: os poetas, os aedos, serviam geralmente para trazer os feitos heroicos do passado, através da inspiração de Mnemosyne – eles eram possuídos pela deusa -; e traziam esses feitos heroicos como feitos exemplares. Eram modelos de vida para os viventes, para os homens atuais, contemporâneos, imitarem aquele modelo de vida. Então era como uma paideia. Assim como os sacerdotes que descobrem o presente oculto vão vislumbrar ali um elemento para curar a sociedade e tornar a sociedade novamente sadia, forte e expansiva – é um movimento de cura. Da mesma forma também os profetas que se ligam a Apolo. É sempre uma prática modelar, digamos assim.

Platão está inventando uma outra prática modelar, que ele diz que é a verdadeira prática modelar, que é o discurso erótico, o delírio erótico. E o delírio erótico é a verdadeira prática modelar porque o delírio erótico, ao contrário dos outros delírios – em que um iria em um passado, o outro em um presente oculto, o outro em um futuro -, ele vai diretamente numa Ideia universal que está fora de todos os tempos, que abarca o presente, o passado e o futuro mas que está fora do próprio tempo e do próprio espaço. E ele vai dizer que é erótico exatamente porque a Ideia de Beleza é o que mais afeta os corpos e a alma. O Belo é o que mais afeta. Ele pega pela estética. É muito sutil e é muito bonito – mas é uma Beleza que leva para a morte – que leva para o suicídio de Sócrates, por exemplo, porque aquilo é suicídio. Você esvazia o mundo de realidade.

Então, esse ser apaixonado, esse verdadeiro amor, é você – através da sensação ou da luminosidade da própria Beleza – se recordar daquilo que você viu numa vida passada e através disso trazer aqui na Terra essa lembrança, se encher de memória – ou seja, ser um ser cheio de lembranças, de memória, de reminiscências – para melhor conduzir a sua vida e para mais rápido sair do ciclo das reencarnações. Porque se você conduz a sua vida segundo esse modelo, você se purifica mais; em vez de se ligar aos corpos, você se liberta dos corpos, porque o corpo não só é prisão como túmulo da alma. Por isso Sócrates bebe a cicuta.

Acreditar que o corpo é o túmulo da alma e acreditar no Bem – e o Bem como sendo uma Ideia puramente universal que não existe na natureza – é completamente niilista, absolutamente niilista. Então há só a ideia de dívida a ser paga após sair das reencarnações, porque no fundo você já está na dívida infinita. Essa dívida que Platão está fundando já é impagável. Mas ele é um crente, ele acredita que você paga, que você sai do ciclo das reencarnações dependendo do modo como você se relaciona com a natureza e com o mundo. É por isso que você tem que saber o que é o verdadeiro amor para se tornar o verdadeiro amante e fazer com que o amado participe do verdadeiro amor: você salva não só a você mesmo como também ao amado. Essa prática platônica faz com que o corpo, o desejo, a vida e o pensamento se orientem então para as alturas.

Participante: Dessa forma dá a impressão de que a própria condenação de Sócrates foi melhor que podia ter acontecido para o seu projeto filosófico.

Nesses 30 dias em que ele fica preso as reflexões dele vão ser sobre a morte, o tempo inteiro.

Participante: No Fédon ele fala isso.

Exatamente, no Fédon ele fala isso. Ele vai dizer que se não existir nada nesse outro mundo, simplesmente a morte é como um sono sem dor, sem nenhuma perturbação, absolutamente nada. E isso não é nada mau – aliás, isso é muito melhor do que a vida que ele leva. Ou seja, a vida cheia de dor. Olha o sintoma! Nietzsche vai ver isso de uma forma super-profunda: o sintoma de que a dor é um signo de culpa e de acusação da vida. Sócrates sofre, já é um corpo cansado, velho, feio, cheio de elementos que vão levá-lo a depreciar a vida e a natureza. Então nesse momento ele faz um discurso dizendo: “na pior das hipóteses, se eu morrer, eu já vou estar melhor do que eu estou aqui, vivo; mas eu acredito que se a alma é imortal e eu vou me conduzir novamente para a origem; eu não poderia ter sorte melhor” – uma vez que ele tem uma prática ascética e moral que o conduziria necessariamente a isso. Então Sócrates, no fundo, está acelerando esse processo na crença de que ele vai atingir esse outro mundo que é infinitamente mais real e feliz do que o mundo aqui de baixo, que é um mundo de dor e sofrimento e um mundo de expiação. Ele está simplesmente acelerando o processo; não poderia receber melhor sorte do que a condenação.

Claro que isso é ambíguo. Nós falamos agora segundo o discurso que ele faz no Fédon, mas ele vacila. Há vários Sócrates. Esse é Sócrates de Platão; há o Sócrates de Xenofonte, o de Aristófanes e ainda outros. O Sócrates que ouve o seu demônio, que ouve o seu sonho musical e que desconfia dessa realidade ultraterrena.

O que vai instaurar um plano de transcendência puro vai ser exatamente esse plano dos modelos, das Ideias circulares que vão do Mesmo ao Mesmo – a Justiça é justa, a Beleza é bela, a Sabedoria é sábia e por aí vai. A origem divina da alma humana, esse modo de se relacionar com a Beleza, com o erotismo, que faz o movimento ascensional, já casa também com o modo dialético que era o parto socrático das Ideias. Ou seja, já casa com essa ideia de reminiscência porque é tudo recognição, é tudo reminiscência, é tudo uma questão de ativar a memória no espírito. Então você tem a dialética se casando com o mito.

O que está acontecendo aqui, de fato? O ocidente inteiro nos fez acreditar, sempre, que a razão se opõe ao mito, que a ciência se opõe ao mito. O que estamos dizendo aqui é que a razão e a ciência são inteiramente míticas, elas se fundam no mito. Então quando dizemos que somos irracionais, não queremos dizer que somos contra o pensamento; queremos dizer que os racionalistas reduzem o pensamento a uma ficção, reduzem o pensamento a uma imaginação. Porque isso no fundo é pura imaginação, é pura ficção.

Como se opera essa purificação racional que vai dar a ilusão de que nós estamos fora do mito e estamos numa pura razão, numa pura ciência, numa pura sabedoria que, inclusive, é isenta de poder? Esse mito é Platão que funda: o saber puro isento de poder, como se existisse a Ideia pura fora dos afetos; você pode estar até fora de uma relação de poder de Estado – não tem problema nenhum; agora, fora das potências, fora dos afetos, fora da natureza? Isso é pura ficção. Sempre, como diria Nietzsche, uma ideia é uma centelha entre duas espadas. Não existe uma centelha sozinha, universal e eterna, modelar; é sempre de um encontro que emerge uma ideia singular.

Ainda que agora – e eis uma outra comunidade entre Platão e nós – essas Ideias sejam eternas. Eu posso dizer que o acontecimento puro também tem a sua eternidade. Mas dizer que o acontecimento é eterno e dizer que a Ideia é eterna são coisas completamente distintas. Nós vamos entender isso quando falarmos dos estoicos – os estoicos vão trazer a ideia de acontecimento como objeto pleno do pensamento, objeto privilegiado do pensamento. O pensamento se dirige para uma superfície e não mais para uma altura.

Participante: Portanto, por exemplo, uma existência não pode estar sozinha num plano de imanência se ela não estiver interagindo com o outro.

Sim, você não é um átomo, você não é um ser isolado.

Participante: Eu estou pensando nessa ideia da espada.

Inclusive as espadas podem estar em mim mesmo. Aliás eu não sou só duas espadas, eu sou uma pluralidade de espadas, há um monte de espadas lutando em mim mesmo. É por isso que Heráclito diz: a natureza é guerra, a natureza é pura guerra, é pura disputa, é pura tensão.

Participante: Se eu estou dentro, se eu faço parte dessa pluralidade – porque essa pluralidade que está em mim está fora também de mim -, essa interação que há entre essa pluralidade que está em mim e fora ao mesmo tempo, não no plano das Ideias mas no plano do embate, é que gera o plano de imanência? Essa é a minha questão: como resgata o plano de imanência? É sacar que é nesse embate que ele recomeça novamente.

O plano de imanência está já no acontecer – o acontecimento já é todo plano de imanência. Então a nossa questão toda é reconquistar ou resgatar o acontecimento. A salvação, diriam os estoicos, está na superfície, está no acontecimento. Como entrar em acontecimento, como se tornar acontecimento? Como, em vez de eu ter uma identidade, um ego, um nome, uma cifra, um cargo, eu ser puro acontecimento? Posso até gerar cargos, egos, identidades, como simulacros, como máscaras, mas sabendo que estou, essencialmente, em acontecimento. Do mesmo modo como uma folha de árvore imita a ferrugem e a degenerescência nela mesma – para que um animal, um inseto, não coma essa folha -, do mesmo modo eu posso vestir uma identidade, vestir-me num ego, num cargo, numa cifra, mas sabendo que aquilo é pura simulação. Não um mero fingimento – eu estou produzindo, de fato, um modo da vida passar, imperceptível. Isso – e muito mais – é que é reconquistar o acontecimento. Nesse momento você tem uma pura imanência te atravessando, você está no puro plano de imanência.

É por isso que você pode dizer que a natureza pensa, que a árvore pensa, que a pedra pensa, que a pedra contempla o silício: porque há uma relação de imanência entre os elementos. A pedra é um modo próprio de individuação, ela tem uma capacidade, uma potência individuante, ela tem um filtro individuante. E esse filtro individuante se dá na relação ou no devir, no acontecimento – ainda que a nossa percepção seja extremamente deturpadora da percepção da pedra, porque a pedra tem um tempo completamente outro do que o tempo humano e nós acreditamos que a pedra é imóvel, que ela está ali estática, mas ela está em pleno movimento. Da mesma forma uma ameba também: a ameba pensa muito mais do que muitos homens. O homem talvez seja o único ser que possamos afirmar que não pense – isso de uma forma super-rigorosa, não é para chocar ou fazer charme, é super-rigoroso. Por que? Porque o homem investe exatamente um plano fora dele que impede a relação com o acontecimento. O pensamento puro é a relação com o acontecimento. Aí é que você está na imanência, você reconquista a imanência assim, a pluralidade começa a atravessar aí. Se eu destaco uma Forma fora da natureza e todo o movimento da vida agora, ao invés de se relacionar de uma forma direta, se volta para esse teto, para essa altura, para essa referência, para esse critério, para esse juízo, eu estou arrumando um intermediário. Eu não posso andar, dormir, falar, pensar, sem me relacionar ao pai, como fala Platão, senão eu sou um perverso, senão eu sou um sofista, senão eu sou um degenerado, senão eu sou um usurpador. E é disso que ele acusa os artistas, que ele acusa os sofistas: de não passar pelo modelo.

Não passar pelo modelo ainda não é o pecado mais grave para Platão. O pecado mais grave é você simular, é você produzir simulacros. Porque o simulacro tem um aspecto demoníaco, completamente demoníaco. Por que ele tem um aspecto demoníaco? Porque simulacro simula a identidade e a semelhança.

Participante: Então ele próprio está falando do próprio erro produzido por ele.

Sem dúvida. Só que ele quer partir de um simulacro como sendo o verdadeiro e quer erigir isso como modelo de verdade. Sócrates diz: os pontos de vista particulares são pontos apaixonados, são pontos parciais que levam à discórdia, à desordem, à guerra, à injustiça, a males, à miséria, etc. Por isso a lei é delegada do Bem: porque a lei é uma Forma universal, comum a todos. Se ela é comum ela é justa, ela distribui as justas proporções. É comum. Neste sentido é que ela é delegada do Bem.

Participante: A pergunta básica é a questão de como você entra novamente no plano de imanência. Essa é a pergunta básica. Só que a sua fala me estimulou uma coisa: se você tenta atingir o plano de imanência, isso também pode se tornar um erro, isso pode se tornar um plano de transcendência também.

O plano de imanência não é geométrico, não pode confundir plano de imanência com plano geométrico; daí você já cai imediatamente na transcendência. O que eu estava dizendo aqui, que o universal na realidade é representante do Bem, ou a lei é delegada do Bem, é porque a lei elimina os pontos de vista, ela diz que o universal está acima dos pontos de vista particulares, essa é a questão. Ela tem uma verdade universal que vale para todos os pontos de vista. Ou seja, ela é absoluta, ela está acima dos pontos de vista. E o que nós estamos dizendo é que Platão erigiu um ponto de vista em verdade. O ponto de vista de uma marca, de uma ideia de semelhança, de uma ideia de identidade. Ou seja, qual é o ponto de vista platônico erigido como verdade? A ideia de Mesmo, a ideia de mesmidade, a ideia de identidade. O que é idêntico a si mesmo, o que é o Mesmo sempre – em todos os tempos, em todos os espaços – é o que é absoluto, é o que está fora da natureza e é o que é absolutamente real. Platão investe isso de realidade.

Participante: O não-movimento.

O não-movimento sucessivo. É o movimento circular. Porque senão Platão não teria como explicar o movimento.

Participante: Circular recorrente, porque sempre retorna ao mesmo lugar.

Para o mesmo lugar. Mas na medida em que vai encarnando, em que vai ganhando corpo, esse circular vira espiral. Aí você pega os hexagramas do I Ching, você pega as mandalas indianas, você pega o imagético dos persas, você tem sempre um modo que – ainda que pensemos que é imanente porque ele atinge todos os graus – vai do macro ao microcosmos sempre com o mesmo modelo; ainda que ele redistribua as figuras-, é sempre um movimento espiral. Você vem de um círculo e vem ao mais particular. Mas o mais particular que esse pensamento consegue chegar – é por isso que chamamos isso de representação finita – é num limite universal. Por exemplo, o homem é um animal racional: isso é o mais específico que Aristóteles encontrou na ideia de homem, o homem como animal racional. E ele vai dar o modelo do que é ser racional – a razão através de silogismo. Mas esse mais específico ainda é uma ideia universal, ainda é um limite universal. É isso que chamamos de representação finita. Quando chegarem Leibniz e Hegel, a representação vai conquistar o infinito, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande. O indivíduo vai ser uma invenção do sistema capitalista, o indivíduo não era objeto de conhecimento na sociedade antiga e nem na Idade Média. O mais específico dos saberes ou dos conhecimentos que você tem é sempre a definição de uma espécie – e a espécie ainda é genérica, ainda é universal.

Participante: Você tinha dito que Platão falou tudo isso mas nada disso fez eco na época dele, veio fazer eco para cá. Eu queria saber: a partir de que momento a história do pensamento abriu essa brecha para que isso escoasse e se transformasse no que é hoje? Essa receptividade rolou há quanto tempo?

Existe essa obra aqui pela editora Estampa, as Cartas de Platão. Nas Cartas você tem uma divulgação da vida dele absolutamente autobiográfica. Ele diz que na juventude ele até tentou fazer parte dos movimentos políticos, institucionais da cidade. Mas viu que não tinha como alterar a situação, devido ao grau de degenerescência de Atenas da sua época – se não me engano ele nasceu em 428 e morreu em 348, viveu uns 80 anos. Era final do século V para o início e a metade do século IV; nessa época Atenas já está absolutamente degradada, segundo a visão dele, e até os 40 anos ele não faz nenhum movimento em direção a salvar a cidade ou interferir politicamente, porque as ideias dele não teriam o mínimo efeito – isso ele mesmo diz – porque os homens estão absolutamente tomados pelas ideias de riqueza, de disputa política, pelas ideias da matéria e do corpo. Mas ele recebe um convite de Dinis (ou Dionísio de Siracusa), tirano de Siracusa, na Sicília; e ele empreende uma viagem para orientar o tirano, para fazer com que o tirano tivesse acesso à sabedoria, à Ideia de justiça – ao ideal platônico, ao imaginário platônico. Ele se decepciona, depois ele faz uma segunda viagem e se decepciona muito mais, depois tem uma série de injustiças porque um amigo que ele fez, que era tio do jovem Dinis, que é Dião (ou Dion), é expulso da Sicília por várias desculpas absolutamente injustas e Platão percebe isso. Decepcionado, ele abandona novamente essa tarefa e diz que as ideias dele não são da sua época, não têm a mínima eficácia. Então ele é extremamente consciente dessa questão. Ou seja, não há um corpo social aderente a essas ideias, não existe atmosfera própria para que essas ideias se efetuem ou se atualizem. Mas Platão acredita no futuro – ele diz isso nas Cartas -, acredita na posteridade e no modo de agir virtuoso, moral, que levará essas ideias a vingarem no futuro. Ele tem essa sensação.

Participante: Nietzsche também tem isso, não tem?

Nietzsche tem. Aliás, Nietzsche enxerga em Platão um nobre. Ele diz: será que Sócrates não terá merecido a sua cicuta? Porque um jovem, um espírito nobre como Platão, foi contaminado por
Sócrates. Platão é uma vontade extraordinária, ele cria uma forma de viver e de pensar absolutamente além da sua própria época e não se submete a nenhum valor estabelecido. Ele é um criador. Ainda que seja um paranóico que tenha medo de fluxos, que queira atingir essas Ideias fixas e submeter a vida e o corpo e o pensamento a essas Ideias, ele de fato não se curva à sua época, ele tem uma vontade criadora imensa. No fundo tem um movimento muito nobre nele. Ele cai quando se contamina por essas ideias de negação.

Participante: E a partir de que momento finalmente essas ideias ganham atmosfera?

Eu acho que a própria morte de Sócrates teve um impacto muito forte nisso. Mas antes disso Platão já frequentava Sócrates. Eu acho que tinha uma diferença de idade de mais ou menos 40 anos entre eles. Quando Sócrates morre, acho que Platão tem trinta e poucos anos.

Participante: Mas o que eu estou perguntando é a partir de quando finalmente essa atmosfera, que não havia na época para as ideias de Platão, começou a existir? Ele não foi receptível no seu tempo, nós somos herdeiros disso.

O cristianismo, a partir do século V. Santo Agostinho já vai fazer um movimento em relação ao platonismo – e depois Plotino – , mas isso tudo vai girar na esfera do pensamento. Eu não sei em que sentido você quer saber, em que plano, em que nível as ideias platônicas tomaram corpo; mas elas tomaram corpo em várias épocas, em vários espaços, de várias maneiras. Mas de modo fundamental, por exemplo, na questão da alma humana ou do desejo humano, com a erótica platônica passamos a questionar o ser do desejo e não mais o uso do desejo. A verdade do desejo, a verdade do amor, a verdade do objeto. Começamos a inventar uma hermenêutica da alma que se casou com o cristianismo.

Participante: Aí já não emerge o indivíduo? Então porque é uma invenção do capitalismo?

O capitalismo leva a mais alta potência, traz a forma superior disso. Porque aí você interioriza absolutamente. No caso platônico você ainda tem uma referência exterior, objetiva; há um ideal, você ainda vai em direção a algo. No caso cristão já tem a interiorização, já tem a má consciência, mas isso só vai atingir a sua forma superior com o próprio capitalismo, porque o capitalismo vai fundar todos os movimentos do corpo e da alma nessa falta existencial infinita, ele já vai tornar isso plenamente imanente ou interiorizado. É o capitalismo que vai fazer isso. Enquanto tiver o cristianismo nessa forma originária ainda vai ser possível o ressentimento desculpando a má consciência; mas no momento em que o capitalismo levar isso ao extremo, o ressentimento vai estar absolutamente a serviço da má consciência. Ou seja, a culpa interna, a dívida infinita, ganha toda a sua dimensão – não só no plano espiritual como no plano material. Ela toma o mais alto e o mais baixo, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, ela atinge todo o universo e a natureza, com o sistema capitalista. No caso cristão, você tem um movimento individual de alma, você não tem a sociedade que gera isso, necessariamente; no caso capitalista você já tem a sociedade inteira que envolve o indivíduo, que traga o indivíduo como um buraco negro – você cai num buraco negro, plenamente, mesmo que você não queira, na hora em que você tiver uma relação de troca, uma relação axiomática, uma relação comercial; na hora em que você tem uma moeda que compra e outra que vende, você já está necessariamente nesse movimento. Então envolve tudo. É por isso que é diferente.

Mas você tem as condições surgindo aí. O platonismo vai servir de inspiração para se desenvolver essa alma que faz uma hermenêutica de si mesma. Porque até então não se questionava o que significava a “minha carne”, o que significava os desejos recônditos da alma; são sacerdotes cristãos que vão fazer você confessar os desejos mais recônditos e vão articular essa ideia platônica à intenção, à intencionalidade. Quando tiver a intencionalidade, você peca não por agir, mas já só pelo fato de ter a intenção, só no pensamento você já peca. Você já é completamente impuro, completamente ímpio em pensamento. Então é o cristianismo, no encontro com o platonismo, que vai compor essa ideia de hermenêutica do desejo da alma ocidental. Depois a psicanálise vai dar a forma atual do sistema capitalista porque o Édipo nada mais é do que isso: essa alma absolutamente culpada, infinitamente culpada, que jamais pagará sua dívida e que vai ter o seu mal-estar até a sua morte. O mal-estar da civilização não tem solução do ponto de vista edipiano.

Participante: O platonismo foi eclodindo em vários momentos, recuperado em vários momentos, mas a organização formal desse pensamento, e até institucional, é o cristianismo que dá.

Mas aí tem o judaísmo, tem outros sistemas. O que eu quero dizer é o seguinte: Platão está descrevendo um plano de transcendência, ele está inventando um plano de transcendência. E ele está atingindo as formas mais puras desse plano de transcendência, assim como Espinosa atingiu a forma mais pura de um plano de imanência. Ele está fazendo o contrário, ele está gerando o modelo do plano de transcendência que qualquer poder vai achar bom: o capitalismo, o cristianismo, o judaísmo, o sistema despótico. Nesse sentido Platão é vencedor, ele atingiu como que a verdade da transcendência – olha que negócio paradoxal. Não é a verdade absoluta que ele queria atingir, mas é a verdade, por excelência, do modo como você separa a vida do que ela pode. Ele atingiu isso. Por isso Platão é tão importante. E hoje eu não dei os detalhes abstrativos desse plano porque é objeto da nossa próxima aula: o modo como o desejo e o pensamento investem o modelo, ou investem uma ficção de modelo, um vislumbramento de modelo, e como eles vão ter a recompensa e o castigo – qualquer sociedade funciona assim. Vai gerar medo e vai gerar esperança, que são as duas paixões tristes que Espinosa denuncia em qualquer Estado; vai gerar o escravo, vai gerar o tirano e vai gerar o consolador dos dois, que é o sacerdote. Essa tríade vai ser eternamente a tríade gerada por um plano de transcendência. Epicuro e Lucrécio vão denunciar essa tríade – do escravo, do tirano e do sacerdote – , Espinosa vai denunciar essa tríade e Nietzsche vai denunciar essa tríade. Cada um ao seu modo, evidentemente, mas eles falarão a mesma coisa sobre esse plano transcendente que separa a potência e a vida do que ela pode.

Então a nossa questão é entender o modelo platônico e na aula que vem vamos trabalhar bem a questão da identidade e da semelhança, que vai gerar o solo para Aristóteles construir a representação ocidental.

Participante: Você começou a aula dizendo que Platão funda esse modelo de pensamento transcendente, ao contrário de Espinosa. Só que antes de Espinosa tem Epicuro, Lucrécio, os estoicos…

Eu tenho uma forma nietzschiana de pensar: as coisas têm as suas formas em vários graus e elas atingem a sua forma superior. Nietzsche diz: o super-homem é a forma superior de tudo que é – não é uma coisa do homem, até uma ameba atinge o seu super-homem, todo ser atinge o seu super-homem, ou seja, atinge a sua forma superior do que é. E Espinosa atinge a forma superior do plano de imanência, ele foi no osso mesmo. Os estoicos vão fundo também, Epicuro e Lucrécio vão fundo, mas Espinosa diz: eis tudo, eis o absoluto. Espinosa é o máximo, ele consegue o mais puro plano de imanência. Depois, Nietzsche só tem a lapidar isso aí. É nesse sentido. É sempre um movimento. E é sempre plural, temos que interpretar as coisas sempre de modo plural. E não é que seja relativo – o relativo é uma desculpa tacanha para não assumirmos posição de modo de vida. Você assume posição de modo de vida porque o modo de vida é sempre absoluto do ponto de vista daquele modo de vida. Então é o absoluto no ponto de vista. Isso é fundamental porque você elimina os meios quereres, as escolhas, as probabilidades. O teu modo de vida passa a ser fatal e na fatalidade é que você tem necessariamente o eterno retorno e o aumento de potência e a expansão da vida. É o amor fati em oposição ao livre arbítrio.

Participante: O que é o eterno retorno?

Isso é Nietzsche. Eterno retorno da diferença em nós. Tornar-se cada vez mais diferente do que se é, ao contrário do ideal platônico que quer ser cada vez mais idêntico. É distanciar, distender o arco, fazer com que o arco fique cada vez mais tenso, que faça com que a flecha gerada nesse arco atinja o máximo. Atingir o máximo da sua potência no seu modo existencial. Aí você é absoluto ou eterno. Ou: como se tornar o que se é, diria Nietzsche. Ecce homo, eis o homem. De modo que você atinge o implacável em você mesmo. Elimina a falta, elimina a insuficiência do ser; ou seja, você é sempre primeiro no modelo, modelo no movimento do seu próprio modo de vida.

Participante: Interessante essa proposta. Embora você seja absoluto, você reconhece no outro também que ele é absoluto.

Sem dúvida. Há uma ética profunda nisso. Só os guerreiros podem ter relação entre iguais. Nietzsche diria: só pode ser amigo ou inimigo um igual, mas um igual na capacidade geral, não num modelo de lei. Igual na dimensão da diferença.

Participante: Reconhecer no outro que ele é um absoluto. Você reconhecer esse absoluto…

Não é nem reconhecer, é já afirmar de cara, porque entre iguais guerreiros não há reconhecimento.

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