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O que faz a clínica esquizoanalítica?

[Trecho transcrito da quarta aula do Curso de Introdução à Esquizoanálise, realizada em 10/07/2021]

O que a gente faz na clínica? Chega alguém na clínica, o que você vai fazer?

Primeira coisa: você precisa encontrar o desejo onde ele está. Onde está aquele desejo. Ele está separado das suas potências? Obviamente, se ele chegou até a clínica, geralmente ele está [separado das suas potências]. E, mesmo ele separado das suas potências, ele está ligado a alguma coisa. Inclusive, ele está tão ligado a alguma coisa que, por isso mesmo, está separado das suas potências. Geralmente ele está ligado a quê? Ele está ligado àquilo que lhe aconteceu. Ah, é um trauma? Pode ser. É um complexo? Pode ser. É uma circunstância tal que ele não aguentou e ele caiu. Sim, são muitas coisas que acontecem que levam alguém à clínica, levam alguém a pedir ajuda. Isso é por fraqueza, por impotência pessoal? Não! Às vezes, a vida, pessoalmente, ela não aguenta. Acontece.

Mas o que ocorre com esses desejos que chegam nas clínicas, geralmente nas clínicas mais… poderia usar aqui o termo “ortodoxas”, mas assim… Na verdade, tem de tudo nas clínicas. Tem muita picaretagem, na verdade. Sobretudo, muita picaretagem, mas mesmo as clínicas que se dizem mais sérias, o que você encontra lá? Você geralmente encontra esquemas de estruturação do desejo em um sujeito. De restabelecimento de uma existência para que ela de novo encontre o seu centro, a sua identidade, e possa voltar a pertencer a um campo social. Uma espécie de resgate, de conserto. Como levar o carro ao mecânico, você leva o desejo ao clínico, para ele consertar o seu desejo.

E aí o que o clínico vai fazer? Ele vai encontrar o desejo onde ele está? Geralmente, o clínico não vai se focar nisso. O que a esquizoanálise… vamos deixar de falar do que os clínicos geralmente não fazem, e vamos falar do que a esquizoanálise faz. A proposta prática, clara, diferenciada, que não dá chance para nenhuma conciliação, o que faz com que a esquizoanálise jamais seja herdeira de uma psicanálise ou de outra coisa qualquer.

A esquizoanálise tem fonte própria, ela não se filia. Não é necessário ela se filiar a algum fundador, a algum fundador de sistema, de religião, de nada. Ela vem desse modo nômade de pensar. E esquizoanálise… bom, Deleuze e Guattari, no Mil Platôs, vão investir… mais no Mil Platôs, eles vão investir nisso, em algo chamado “cartografia”, que é o método que Deleuze e Guattari lançam para encontrar o desejo ali onde ele está. Fazer uma cartografia do desejo não é fazer um mapa onde o desejo está encaixado, enquadrado. Não é interpretar esse desejo e dizer “Ah, isso tem a ver com o Complexo de Édipo”, “Isso tem a ver com a castração”, “Isso tem a ver com o incesto, com o parricídio, com o instinto de morte, com o instinto de prazer, com o princípio de realidade”. Não é ficar dando modelos para esse desejo se reestruturar.

Nenhum modelo vai encontrar o desejo. Ao contrário, o modelo cega, ele nos cega, ele nos impede de encontrar o desejo onde ele está. A cartografia do desejo, então, portanto, implica um encontro. E você só encontra quando você está com olhos desanuviados de mediações, com olhos desanuviados de preconceitos, com olhos desanuviados de estados de corpo, de mente e afetivos. Quando, de fato, o analista não precisa fazer ou se prevenir de uma espécie de contratransferência. Eu desafio sempre, aqui, os analistas a dizerem as razões que os protegem suficientemente da contratransferência, à medida em que eles não encontram o desejo onde ele está no seu estado mais imediato, que necessariamente eles acabam projetando os seus esquemas de interpretação. Eles já estão efetuando uma contratransferência e deformando aquele desejo, e não encontrando aquele desejo onde ele está.

Então, a condição clínica implica… a primeira coisa é isso: encontrar o desejo onde ele está. E onde ele está e no tempo em que ele está. É o seu aqui e o seu agora. É o seu imediatamente aqui e o seu imediatamente agora. Mas o seu imediatamente agora é feito de vários seres de tempo que coexistem, que estão em outros tempos coexistindo com aquele agora. Não é apenas aquele agora do corpo sensível, uma espécie de empirismo vulgar. “Ah, tudo é exatamente aqui.” Onde você está vendo, onde você está ouvindo, onde você está cheirando. O que você está fazendo ou o que você está falando. Esse agora e esse aqui necessariamente envolvem a coexistência dos seres de tempo em nós. E dos nossos estados vividos que seguem em nós.

Então, encontrar o desejo com tudo isso, mas você não encontra de cara. Você vai percebendo que ele está dobrado, que ele está empilhado, que têm muitas camadas para serem desenterradas, e aí você precisa ser, ao modo de Foucault, um arqueólogo dessas camadas subterrâneas que vão se empilhando em nós.

Encontrar o desejo onde ele está. Para quê, exatamente? Para perceber todas as zonas de passagem. O desejo está na primeira queda. E a primeira queda tem vários aspectos. Ela é múltipla, ela é plural. Mas existe um ritmo, um modus operandi ali que cai, que faz com que o ritmo se quebre. E ele está, então, por isso mesmo, investido em uma segunda captura que, por outro lado, está inviabilizando a vida dele, está obstruindo, está fechando o futuro dele e fazendo do passado dele algo mais pesado e difícil de carregar. Geralmente é isso que acontece. E ele acha que não. Aquilo que ele está fazendo, ele acha que é aquilo que está alimentando-o. Geralmente, aquilo que ele acredita que está alimentando-o é o que mais está envenenando e inviabilizando a vida dele.

E que dificuldade em largar o osso. Que dificuldade em largar isso que ele acredita que está dando pelo menos um poderzinho a ele, um sustento a ele. “Mas eu preciso antes sobreviver, eu preciso ter um emprego, eu preciso isso, eu preciso ser aquilo, exercer essa ou aquela atividade para depois ser esquizoanalista ou fazer esquizoanálise”. Não. Isso ajuda você ainda mais a ficar separado do que você pode.

Então, encontrar esse desejo. Eu estou aqui, focando agora a questão clínica, não sei se vocês perceberam, porque, ao mesmo tempo em que eu trago essa quarta passagem, que é exatamente a potência de diferenciar que nos liga ao ato de criar valor, porque isso vai ter já uma implicação clínica direta. E o modo como eu percebo a clínica, porque em vez de eu ter uma visão piedosa e complacente em relação ao analisando, eu vou provocá-lo e ao mesmo tempo eu vou me tornar aliado daquela vida, para que ela disponibilize novamente aquelas forças, para que ela aprenda a dizer não, para que ela aprenda a fazer igual Bartleby, sobretudo para que ela aprenda a cultivar a sua espreita, a faculdade de espreita animal que faz parte de todo animal.

Nós precisamos… devir-animal-humano é mais importante ainda do que a nossa racionalidade. Esse devir-animal, essa potência de espreitar, de esticar o movimento, de dilatar o tempo, de perceber, criar uma instância em nós que percebe a potência subindo, emergindo novamente e se apresentando no acontecimento. É assim que não só eu encontro o desejo do analisando onde ele estava, onde ele está agora, como eu vou provocá-lo, vou estimulá-lo, vou instigá-lo, vou intervir para que ele — e aqui entra uma questão muito importante: a psicanálise ortodoxa diz que você não pode intervir, você não pode se envolver, ter um modo de interesse no jeito de fazer a clínica. Mas tem um interesse que é um interesse interessante, que a psicanálise desconhece, ou as psicologias desconhecem, a psiquiatria, enfim. É uma intervenção, sim. É uma provocação. Você encontra no outro as forças subterrâneas que estão lá para serem disponibilizadas. Você ajuda a vê-lo, você se torna um vidente e ensina ele também a se tornar um vidente. Ele tem que se tornar um vidente.

E quando ele vê, isso se torna um acontecimento para ele. E quando se torna um acontecimento, ele vai investir na espreita e vai perceber que o tempo próprio da sua vida, do seu modo de diferenciar a potência é também o tempo que cria valor, que diferencia gerando o real, produzindo o real. E nessa medida, ele tem necessariamente o retorno desse real sobre ele, elevando a sua potência de acontecer.

Luiz Fuganti

[Trecho transcrito da quarta aula do Curso de Introdução à Esquizoanálise, realizada em 10/07/2021]

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