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Educação para Potência

Educação para Potência é um curso que surgiu em função de uma urgência que a gente sente que atravessa a sociedade. Mas as pessoas que se afetam com esse tema que virou uma unanimidade, uma coqueluche de modo equivocado. Um equívoco que tem raízes profundas, pois já pressupõe  um modo de vida reativo. As sociedades já estão muito tomadas por um devir reativo. O devir reativo constitui um campo de forças onde o corpo situa o desejo de maneira tal que você não consegue pensar de outra maneira.

Tem um preconceito de base que não tem a ver com o conhecimento, mas com as condições do conhecimento, com as condições do modo de pensar. É essa urgência que eu sinto enquanto oferta dessa proposta de pensar uma educação para potência e não para obediência. O que eu chamo de unanimidade é que essa visão de educação é uma educação para obediência e não para potência. Imagine que a educação seja um instrumento de liberação de geração de autonomia, mas essa autonomia que é gerada é uma autonomia moral, de autoridade, formal, mas não é real.

Mesmo os que se dizem autônomos já estão prisioneiros de uma condição que nem sequer apreendem, que os faz dizer no limite ou não dizer, que os faz ver e não ver, são formas de sensibilidade, de dizibilidade que impedem você de pensar, sentir e agir de outra maneira. A unanimidade em relação à educação tem a ver com uma ideia que a natureza, no seu âmago, não tivesse uma ordem própria, que sofreria de uma falta de ordem, de hierarquia, que seria substituída por um plano civilizatório, ou plano de cultura.

O homem, na medida em que se abre a esse plano, como Freud diz, que é impossível a vida em sociedade sem uma mediação de um plano que legitimaria, que justificaria, que verificaria,  e que utilizaria nossas práticas, nosso pensamentos, enfim a nossa vida em sociedade. Esse plano intermediário que seria necessário para que a vida em sociedade se desse de forma supostamente afirmativa, em progresso, em evolução, na verdade é o que nos separa da capacidade de acontecer.

Na verdade, essa visão que é unânime é ainda uma visão moral. Acredita que falta algo à existência,  que a realidade não tem um plano de auto sustentabilidade. Implica em aderir a uma referência extrínseca à existência que se constitui em um plano mais importante, transcendente, que organizaria a vida sobre a terra, sobre a sociedade. Essa referência transcendente passa a ser um plano mais importante que a própria experimentação direta da vida e da natureza. Nessa medida ela se torna a instância que justificaria ou que legitimaria as nossas práticas e idéias. É a dimensão que instaura a condição do julgamento. Não haveria humanidade sem o julgamento. E a educação faria parte de um adestramento do animal humano para que ele se tornasse capaz de julgar, de discernir entre o verdadeiro e o falso, entre o bem  e o mal, entre o justo e injusto, entre o útil e o nocivo. A educação faria parte de um grande adestramento coletivo sem o qual não haveria paz em sociedade, nem progresso, nem desenvolvimento.

De vez em quando existe um bode expiatório em que a sociedade vê seus monstros e tem que abafá-los rapidamente. A gente vê as pessoas mais influentes, formadores de opinião, artistas, âncoras de jornal dizendo que precisamos tomar uma atitude, imaginem como um pai e uma mãe fazem isso! A gente até entende que precisa tomar uma atitude, isso  desde sempre. Tem uns mais abertos que vão querer atuar nas causas, e quando vão atuar nas causas, já estão nos efeitos. É isso que queremos atingir, o plano das causas. Mas se você acredita em uma natureza humana decaída, em uma espécie de mal que  atravessa o corpo, o pensamento, a natureza e você precisa investir nessa ordem que resgataria a vida – seja uma ordem religiosa, laica,  moral – dessa sujeira, dessa lama, desse mal, desses monstros que existe dentro de nós. O clamor pela educação entre deus e o diabo. Os políticos mais cretinos que existem na política brasileira e mundial, assim como os políticos mais interessantes, os que querem de fato fazer algo.

Entre os deuses e diabos da política existe essa unanimidade, a educação. Mas que educação? O que é esse adestramento, esse refinamento, essa produção de si que se dá desde a mais tenra infância? Como o homem produz a si mesmo para que ele tenha uma consistência tal que ele possa fazer a diferença que é apenas tolerada ou aquela que julga – pois isso não é diferença- de fazer a escolha que não seja moral. Como produzir a si mesmo e ao mesmo tempo fazer a escolha, a diferença? Como ser capaz de interagir de modo criativo e livre, sem se submeter  a um plano transcendente dessa civilização, dessa humanidade ou de uma certa formação social? Sem ter que pedir licença para uma mediação, uma vez que a mediação se tornou necessária para organizar as vidas fracas e impotentes?

Aquelas pessoas que não conseguem viver sem a lei. Cito sempre aqui o Ferreira Gullar que é essa pessoa tida como um grande poeta, de esquerda, em um debate sobre a peça Écuba, diz que sem lei é a barbárie. Como que poetas, filósofos, artistas, cientistas, pessoas aparentemente livres, de esquerda, avançados, até anarquistas – estes um pouco menos, o problema do anarquismo é o ressentimento e não a lei – se conformam que haveria uma instância decaída de  nós mesmos que precisaria investir nesse plano transcendente que justificaria e legitimaria  a nossa relação em sociedade? Como uma educação é capaz de chegar e produzir modos de viver que não precisam ser legitimados por planos transcendentes e sejam capazes de fazer a seleção no imediato? Esse é o desafio da educação para a potência.

O que seria educar? A educação implica em uma ideia de aprendizado e ensino. Qual a natureza desse aprendizado e ensino uma vez que eles se dão no campo daquilo que potencializa a vida e não no campo de instrução ou da competência? Educar não é instruir, nem tornar competente, nem formatar ou formar. Educar, do ponto de vista da potência, seria educar no sentido de  que seu próprio modo de viver já é uma conquista permanente de criação de novas condições de experimentação.

Ele já é um investimento nisso, um aprendizado no crescimento da própria potência, que por sua vez aumenta a capacidade de criar em ato. Um ensino e aprendizado que foque isso e não a aquisição de conhecimento, não a erudição, a instrução, a competência, a autoridade. Esse é o desafio maior, que faz a urgência de um pensamento como esse, na medida em que esse clamor social, histórico, político e econômico, que se torna cada vez mais desesperado. A sociedade cada vez mais decadente e os monstros aparecem de forma cada vez mais caricata. Como gerar um contraste a essa demanda que, no fundo, é de fundo reativa? Em vez de dizer mais educação diria: não, chega de educação!  É ao contrário, acabam com a educação. Pois  a educação sempre foi, no seu modo dominante de ser, uma máquina de adestramento reativo e não uma máquina de adestramento que poria a vida em condições de criar as próprias condições de experimentação ou existência.

A idéia que começa por isso em cheque, a porta de entrada que nos gera um divisor de água entre o que seria essa educação para obediência e essa outra que seria para potência, evoca ou torna necessário o desdobramento ou até uma invenção de  noção de experimentação. O que é experimentar? O ensino se dá na experimentação, o ensino se dá na experimentação. Tudo se dá na experimentação. Não existe vida que não seja em relação, que não seja vida  em acontecimento. O próprio acontecimento define o que é vida. Viver é acontecer. Não existe zona da vida, região protegida da vida, onde a vida se encapsula, se isola, fica ensimesmada. Não existe uma região solipicista da vida. A vida é necessariamente em relação. Mesmo que não seja com o humano, pode ser com verme, com átomo, com sol. Essa dimensão da relação com o vivo é onde se dá a experimentação. Qual a natureza da relação, da experimentação? A experimentação se diversifica.

Existem experimentações que são necessariamente distintas, e que atravessam o campo de humano, que atravessam a nossa vida. Tem uma experimentação que é singular ao pensar. A experiência do pensamento enquanto pensamento é radicalmente diferente da experiência do corpo, ainda que não haja dicotomia de alma e corpo. Acontecer no pensamento é radicalmente distinto do acontecer no corpo. Acontecer no tempo do corpo – que é o tempo presente – ou no movimento do corpo é radicalmente diferente do que acontecer no tempo do pensamento – que é o tempo virtual, passado e futuro ao mesmo tempo,  um movimento de outra natureza. Eu tenho aqui sinalizado sempre de modo mais simplista: A experiência do corpo é  a experiência do movimento e a experiência do pensamento é a experiência  do tempo. Tempo de movimento, corpo e pensamento. Dois tipos de experiências radicalmente distintas. O que implica dizer que são singularidades?

Que a experiência do pensamento é uma singularidade, é de fato uma diferença nela mesma. Implica em dizer que só é uma diferença nela mesma, pois está ligada ao infinito do pensar senão se fosse apenas de finitude essa finitude teria que se ancorar em outra substância que não seria o próprio pensamento que sustentaria o próprio pensamento. A mesma coisa em relação ao corpo. Se a experimentação do movimento não tivesse essa relação direta com o infinito o corpo seria dependente de uma outra instância. E o ocidente fez sempre o corpo dependente do espírito ou da consciência. Aqui a gente está liberando a diferença enquanto diferença e não a diferença apoiada em outra instância que a englobaria e que atribuiria realidade ou não a instância em questão.

O pensamento, se ele de fato é uma diferença, uma experimentação única, se é uma região única de acontecimento em nós, ele tem que ter essa relação com o infinito. É o infinito que dá autonomia para o pensamento, assim como é o infinito do movimento que dá autonomia para o corpo. Existem zonas de experimentação, zonas que nos atravessam, então a experimentação do pensamento em nós é necessária do ponto de vista da liberdade, encontrar a dimensão do imediato do tempo que nos põe novamente em relação com o infinito. Da mesma forma,  a experiência na dimensão do movimento  é necessária, não existe corpo sem movimento, a gente nem teria nascido, a gente não aconteceria se o movimento não tivesse sustentando o corpo.

Encontrar o necessário do movimento no corpo é também encontrar o imediato do movimento no corpo, que é encontrar o infinito do movimento, é o que dá sustentabilidade ao movimento. E  o que dá sustentabilidade a esse movimento  que nos atravessa é a condição da autonomia e da diferença enquanto diferença. O movimento e o corpo tem uma diferença enquanto movimento assim como o tempo do pensamento, o próprio pensamento tem uma diferença do pensar nela mesma, essa diferença não se compara com outra coisa, não é diferente em relação a algo. É diferente já na própria maneira de acontecer, é uma singularidade.

Transcrição extraída do curso Educação para Potência, realizado por Luiz Fuganti, em 2008.

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