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Curso de Introdução à Esquizoanálise em 2022 (Transcrição – aula 5)

17/07/2022

Corpo de potência e pensamento criador doenças da alma

Aula completa no Youtube

Boa noite! Muito boa noite a todos, a todas. Que bom estarmos aqui de novo para finalizar, para dar um acabamento a este nosso curso de Introdução à Esquizoanálise, versão 2022.

É sempre uma alegria, sempre um prazer, uma felicidade. Ficamos contentes porque conseguimos efetuar o acabamento de um ciclo ao qual nos propusemos, como um movimento de introdução que faz parte do nosso desejo de instigar, de provocar, de afetar zonas do campo social, da sociedade, de nós mesmos que muitas vezes estão precisando de uma excitação, de uma incitação, de uma convocação, de um chamamento para que despertem um pouco mais, talvez só um pouco mais, para começar a se colocar em processo. Um processo tão extraordinário, um processo tão raro, que funciona como uma espécie de mordida de vampiro, uma vez que somos tocados, somos contagiados, somos contaminados por isso. Que contaminação interessante, essa. Nós não queremos mais largar esse gosto por entrar em devir.

E nós, hoje, vamos dar continuidade, com nossa quinta e última aula deste curso de Introdução à Esquizoanálise, e vamos expor o tema-problema a que nos propomos, qual seja, “Corpo de potência e pensamento criador”, que é, de alguma maneira, uma resposta plenamente afirmativa ao nosso modo de colocar e recolocar os problemas da vida em sociedade. Inclusive, isso responde ao modo não de diagnosticar, mas de cartografar as patologias do nosso tempo. E, dessa maneira, reinventar a maneira de colocar o problema sob o ponto de vista de uma evolução criadora de si mesma. O problema, com certeza, muda completamente de natureza, e daí a nossa distância em relação aos pensamentos, teorias e práticas da clínica dominante. Porque geralmente a clínica dominante diagnostica, ela constata, ela se contenta em constatar. Ela já se coloca em uma posição conformista e ela constata os problemas do ponto de vista do bom funcionamento de uma máquina social e de um desejo bem arranjado, para que tenhamos um bom pertencimento à máquina social e possamos receber as recompensas que ela nos promete.

A Esquizoanálise se coloca de um ponto de vista completamente outro. Nós não queremos, de modo algum, readequar os desejos, corpos e pensamento desarranjados, reestruturá-los para reinseri-los em um sistema social de escravidão e de assujeitamento. Muito ao contrário, nós queremos investir em uma libertação real do desejo. E a aula de hoje tem tudo a ver com esta questão. Nós queremos mostrar que existe uma saída real, plena, perfeita, e que, desse ponto de vista, para a Esquizoanálise, não há problema insolúvel, do ponto de vista das chamadas patologias psíquicas ou doenças mentais, ou doenças do desejo e do campo afetivo.

A Esquizoanálise sempre encontra um ponto de vista tal que é capaz de recolocar o problema sob o ponto de vista de uma evolução criadora da vida. E, nessa medida, há sempre um absoluto de cada ponto de vista que, ao ser encontrado, coloca o desejo no processo libertador da sua singularização. Há um processo de dessubjetivação e, em contrapartida, há a instalação de um circuito virtuoso de singularização do desejo, que ao mesmo tempo é capaz de produzir uma zona de ressonância como um ser comum, um limiar que é o comunal de todas as diferenças em processo de diferenciação, de singularização no qual elas ressoam. Então haveria uma comunal, uma superfície, uma zona de passagem da qual todos nós comungamos e ao mesmo tempo fabricamos, extraímos dessa fonte uma maneira afirmativa de viver. E à medida que nos singularizamos, colaboramos para a produção desse comum, desse comunal. Essa saída existe.

E essa saída, claro, existe à medida que ela é inventada, então nós precisamos conquistar a nossa dimensão criativa, nossa dimensão criadora do real. E o clínico, sobretudo, precisa chegar a tocar essa região, a habitar essa região. Não que ele tenha que ter necessariamente um domínio pleno disso, mas ele tem que ao mesmo furar a bolha para entender que esse processo instaura um circuito virtuoso de um devir ativo, autossustentável, pelo qual ele pode também encontrar o desejo do outro em algum atolamento qualquer, em alguma captura qualquer, em algum rebaixamento qualquer, e provocar a sua transmutação, a transmutação no modo de desejar. Realizar uma cartografia.

Nós inventamos um método, inspirados, claro na Esquizoanálise, e principalmente na filosofia da diferença, nos pensadores nômades como Spinoza, Nietzsche, Bergson, Foucault, que dá uma aplicação concreta à Esquizoanálise, e que nós denominamos de as quatro passagens. As quatro passagens pelas quais o desejo passa e se transmuta. Inicialmente ele se transforma, ele cai pela primeira vez, depois ele cai pela segunda vez, depois ele pode… Depois não, isso coexiste, pode ser uma relação de sucessão e uma relação de coexistência ao mesmo tempo. Ele pode reencontrar o seu plano de composição ou de acontecimento, que é a terceira zona de passagem, e por fim se pôr em um processo de diferenciação que é a quarta zona de passagem, da qual falaremos hoje.

Além disso, além dessa exposição, que será um pouco mais breve hoje, dessa quarta zona de passagem, do corpo pleno e do pensamento criador, do corpo de potência e do pensamento criador, nós vamos também responder a algumas questões que estão aqui diante de mim impressas, formuladas através do chat em todas as aulas anteriores, sendo que muitas delas já estão respondidas pelo próprio desdobramento do conteúdo nessas quatro aulas anteriores. Então eu vou abreviar um pouco. E as que ficarem por responder, nós vamos responder ao longo dos próximos dias e semanas, através de posts, de pílulas no Instagram e no Facebook. Então, as questões que realmente ficaram e que têm uma relevância, nós vamos contemplá-las com esse tipo de resposta. Então vocês podem acompanhar pelo Instagram e pelo Facebook, nas páginas do Luiz Fuganti e da Escola Nômade, e essas respostas estarão lá.

E por último, hoje, nós vamos apresentar o curso, agora não mais de introdução, mas de formação em Esquizoanálise. Um curso profundo, com dois anos de duração e com quase duzentas horas de conteúdo. Esse curso terá início agora em agosto, e as inscrições vão se abrir logo no final desse nosso encontro de hoje aqui. Então eu vou explanar em detalhes, expor em detalhes o programa desse curso que acontecerá ao longo desses dois anos. Então isso faremos por último aqui, hoje. Eu vou reservar uns quarenta ou cinquenta minutos para a exposição da aula, talvez até um pouco mais. E um outro tanto para responder às questões e, ao final, pelo menos uns vinte minutos para expor o programa desse curso. Então é isso.

Eu queria dizer, eu vejo aqui de novo, no chat, eu sempre leio, fico muito contente com as manifestações que têm aqui. É que agora realmente eu não posso, mas agradeço muito, muito o carinho de vocês. Fico sempre muito instigado a levar isso cada vez mais longe. Ficamos muito alegres, muito contentes, porque é exatamente isso o que nós mais queremos fazer neste momento, aqui e agora. Nós buscamos viver de uma maneira tal, que o melhor lugar do mundo, como diz a música do Gil, é aqui, e o melhor tempo é o agora. Então eu fico realmente muito contente com o alcance, com a afetação que isso produz, com a mobilização que isso produz em nós. E é sempre uma alegria poder expor essa visão, essa nova maneira de ver a vida e a existência que rompe completamente com o niilismo estabelecido já há milênios pelas formas de humanidade decadentes, que nós fomos nos embrenhando nessas bizarras aventuras onde o negativo e o reativo reinaram na condição humana.

Nós sentimos, apreendemos, pensamos, praticamos, vivenciamos essa outra maneira de viver e afirmar plenamente tudo aquilo que nos acontece, fazendo um uso mais interessante, e extraindo força sempre, seja dos maus ou dos bons encontros, sendo que os maus encontros muitas vezes se tornam inevitáveis, e nós podemos, sim, extrair força, apesar de muitas vezes o mal ser inevitável.

Então é isso. Eu queria começar por expor esse primeiro conteúdo, que é o da aula de hoje. Nós falamos, dessa vez, nessa versão de 2022, de um modo diferente de algumas versões anteriores, das quatro zonas de passagem, de maneira um tanto aleatória. Mas a primeira aula, e a que eu pediria para quem eventualmente… é possível que tenha gente aqui que não assistiu às aulas anteriores, então eu faço questão de afirmar que é importante acessar, ver, rever essas aulas. Elas vão estar disponíveis no meu canal do Youtube, no canal Luiz Fuganti do Youtube, e também no site da Escola Nômade. E essas transcrições das primeiras aulas já se encontram no site da Esquizoanálise — esquizoanalise.com.br. Lá vocês encontram já a transcrição ao menos da primeira aula, e vão ter as transcrições das demais aulas. Então vocês têm as transcrições para acessar, e mais as aulas gravadas, que vão ficar no Youtube e também no site da Escola Nômade. Então é muito importante vocês reverem.

Quais aulas demos até agora? A primeira foi “O Eu como zona de passagem”, que é um outro uso que fazemos, já que não paramos de falar “Eu”, o Eu atravessa o tempo inteiro a linguagem, é, na verdade, um código necessário de referência, que gera um duplo em nós, um desdobramento da linguagem em uma produção de subjetividade ou mesmo de modificação do nosso desejo, mas é possível usá-lo de uma maneira tal que ele sempre permaneça em uma zona de passagem. E aí começa já uma transmutação do uso que frequentemente fazemos do Eu, quando, na verdade, estamos montados em um buraco de nós mesmos, em um buraco do nosso desejo, buscando um empoderamento. O buraco como a primeira zona de passagem, a primeira queda, nós vimos isso, que acontece pelo mau uso que fazemos, seja do bem ou do mal que nos acontecem, e ficamos presos e reduzidos ao acontecido, e perdemos o contato com nossa potência de acontecer. Submetemos a nossa potência de acontecer a esse acontecido ou a esses acontecidos, e vamos nos formando com empilhamentos de acontecidos, vamos nos cristalizando, vamos nos substancializando, chamando isso de “alma” ou de “eu”. E esse Eu profundo, na verdade, é um Eu feito de empilhamentos de estados, de atolamentos em nós.

Daí a necessidade da estruturação de um sujeito a partir desse Eu que vem de um esburacamento. E nós dizemos “ao contrário, é preciso demolir o sujeito e reestabelecer o Eu como zona de passagem”. Então esse foi nosso primeiro encontro.

No segundo encontro, falamos do modo como a realidade se produz de fato. Foi sobre o inconsciente maquínico, um inconsciente que realmente produz e não é  apenas um lugar de uma representação e de um recalque, mas ele realmente produz realidade, ligado a um desejo intensivo que fabrica o real. E isso devolve a condição, uma vez que percebemos esse aspecto, de reencontro com aquilo que chamamos de terceira zona de passagem, que é a superfície ou a condição de composição das potências que se encontram nas existências. E, nessa medida mesma, fizemos a diferença entre o inconsciente dominante que, na psicanálise, psicologias e psiquiatrias que geralmente operam dessa maneira — se diferencia radicalmente, portanto, esse inconsciente maquínico desse outro inconsciente que funciona mais como uma visão do caos e de uma representação necessária para, de alguma maneira, extrair dele aquilo que é necessário a um processo civilizatório.

E em nosso terceiro encontro falamos sobre circuitos intensivos do desejo e uma micropolítica dos afetos. E aí nós fizemos a distinção clara entre desejo intencional e desejo intensivo. O desejo intencional é o desejo constituído pela falta, que começa justamente por uma vida separada do que pode, por um desejo separado da sua potência, e que busca sempre um modo de preenchimento através de um objeto e carece de uma estruturação de si como sujeito. O desejo que carece se tornar sujeito e ao mesmo tempo só se preencheria com um objeto. Nós vimos claramente que esse objeto nunca cumpre, nunca preenche suficientemente o buraco que se criou em nós, mesmo com um desejo estruturado — e apesar de um desejo estruturado —, e esse objeto tende a se tornar um ideal, uma instância inalcançável que torna a vida um ser de insuficiência.

E já o reestabelecimento de um circuito intensivo do desejo, que faz com que reconquistemos a dimensão política do desejo e possamos conduzir a própria vida a partir da criação da própria condição da existência, que se dá, claro, com o reencontro com essa terceira zona de passagem, que é onde a vida acontece: no plano comum dos encontros, nessa zona imediata onde as potências e forças se compõem diretamente, sem a terceirização ou a triangulação com uma entidade superior e transcendente. Então esse plano da superfície que é devolvido e é percebido quando nós apreendemos os nossos circuitos intensivos de desejo.

E nós desembocamos, na quarta aula, na ideia de um corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos, de alguma maneira, funciona como um ovo coexistente desde o nascimento até a morte. Ele não é algo que aconteceu na origem e que se perdeu de nós. Ele coexiste com toda a nossa existência e, mais do que isso, ele vai sendo produzido segundo o modo como vivemos. Ele vai sendo preenchido. E o problema crítico: com o que preenchemos esse corpo sem órgãos? Ou seja, cada circuito de desejo faz com que, uma vez a potência em vias de efetuação nessa linha desejante, ela se preenche de algo. E se ela se preenche só de paixões, necessariamente ela se reduz a estados afetivos. E esses estados afetivos, uma vez que as paixões tendem a se tornar dominantes como paixões tristes e não como paixões alegres, e aí o nosso desejo busca as compensações desse entristecimento como uma vontade de empoderamento, uma vontade de autoridade, uma vontade de recompensa e compensação, de espelhamento, nessa mesma medida nós esburacamos o nosso desejo de uma maneira tal que nosso corpo sem órgãos, em vez de se tornar pleno, preenchido por intensidades, ele vai se esburacando, preenchido por estados que são acontecidos que se põem no lugar da potência de acontecer. E cada redução dessas rebaixa o desejo, frustra o desejo de uma maneira tal que o corpo sem órgãos vai se esburacando e se esvaziando até cair na grande depressão, no grande cansaço.

Esse corpo sem órgãos é produzido de uma maneira tal que ele se preenche de reduções, de rebaixamentos, de extensões que se põem no lugar da intensidade, de organizações que se põem no lugar de um movimento intensivo, de negações que se põem no lugar de um pensamento afirmador, de reações que se põem no lugar de um campo ativo do desejo. O corpo sem órgãos se esburaca e se esvazia. E aqui está toda a nossa maneira de rever — não é reclassificar, é mapear o que se chama de patologia mental.

Obviamente que nós não seguimos, exceto para fazer a crítica, os manuais americanos e da Organização Mundial de Saúde. Essas unidades de medida adotadas por essas instâncias que estão a serviço dos estados nacionais e do império atualmente dominante no planeta. Afinal, obviamente que aí fica claro que o diagnóstico remete sempre à necessidade de reestruturar as subjetividades desarranjadas, fazer um resgate dos desejos desarranjados para que eles novamente se conectem à ordem estabelecida para o corpo, para o desejo e para o pensamento, e se tornem novamente peças e sujeitos assujeitados do campo social. Então, obviamente não seguimos.

Nós operamos uma cartografia, para usar aqui um termo de Deleuze e Guattari, mas nós fazemos essa cartografia também ao nosso modo. Inspirados na obra de Deleuze de Guattari, nós destacamos essas quatro grandes zonas de passagem.

A primeira captura é a primeira grande zona de passagem, que acontece pelo mau uso do bem ou do mal que nos acontece. A segunda captura é aquela que encontra uma falsa saída para essa primeira queda do desejo, que torna o desejo impotente e vai buscar o empoderamento, e nos acirra ainda mais, nos encadeia ainda mais, nos prende ainda mais a uma cadeia semiótica do plano do ideal e do plano do possível. Até que caímos nesses elementos patológicos, que começam a se decepcionar — os mais honestos vão se deprimir, evidentemente, vão cair em um processo de desinvestimento do desejo, de desistência, e esse processo pode levar a uma desistência real, ou até, se levar isso a cabo, a uma experimentação interessante.

Então nosso propósito aqui hoje é retomar o que seria essa terceira zona de passagem e a quarta zona de passagem. Porque, à medida em que desconstruímos as prisões do desejo, do pensamento e do corpo, tanto relacionadas a essa primeira queda do desejo, a essa primeira transmutação do desejo, quanto as relacionadas à segunda transmutação do desejo, que investe o empoderamento, quando nós desconstruímos de modo triplo essa dupla captura, nós reencontramos a superfície que, na verdade, nada mais é do que o topos, o lugar e o tempo do agora. É o aqui e agora onde se passam as relações. Essa superfície é feita de tempos e de lugares. De lugares para movimentos intensos e tempos para horizontes afirmativos. Essa superfície é um horizonte de passagem, feito de espaço-tempo. Então essa passagem acontece no aqui e no agora, de modo imediato. O aqui e o agora apreendidos do ponto de vista de um desejo intensivo, de um pensamento afirmativo e de um corpo ativo.

As potencialidades do desejo, do corpo e do pensamento se apresentando em um aqui e agora lisos, sem forma prévia, sem a mediação dos acontecidos do corpo em nós, que são imagens sensibilidades, percepções, afecções e ações de movimento; sem os acontecidos do desejo, que são as paixões dominando seu movimento intensivo; e sem os acontecidos do pensamento, que são camadas semióticas de linguagem que vão se empilhando, submetendo o pensamento a esses regimes semióticos da significação. Sem as mediações da significação, sem as mediações da subjetivação, e sem as mediações da organização dos corpos, o nosso corpo sem órgãos e as suas potencialidades se apresentam diretamente nessa zona de passagem.

O nosso desejo deriva diretamente dessas potencialidades, traçando circuitos cujo acabamento produz um retorno sobre si e faz com que ele se preencha de intensidades. Da mesma forma, o pensamento, na duração, afirma o acontecimento de uma tal maneira que não importa o que nos aconteça, nós sempre conseguimos extrair um sentido que coloca a nossa potência em uma variação tal que a potencializa ainda mais. É o pensamento afirmativo.

Reconquistar a terceira zona de passagem, que na verdade é a primeira ­— e aqui de novo eu quero ressaltar que não há uma ordem sucessiva dessas zonas, mas, na verdade, a terceira sempre esteve aí. Não há existente que não esteja acoplado a essa terceira zona de passagem. Trata-se do plano existencial sem o qual não se nasce e nem se morre. É por ela que tudo passa. Essa zona de passagem se destaca novamente, ela se coloca como primeira, de primeira ordem. Ela se torna um meio, mas não um meio mediano de uma forma, mas o meio extremo de uma zona de passagem. Ela de novo se torna o horizonte do nosso corpo, do nosso pensamento e do nosso desejo.

E o que acontece então nessa superfície? E para que aconteça, nós já sinalizamos alguma coisa aqui. É preciso, de alguma maneira, que fabriquemos essa superfície. Não só retomamos, em um certo sentido, uma superfície que já estava aí, mas precisamos colaborar para que, pelo nosso próprio modo de viver, ela se constitua como pura zona de passagem sem forma prévia. E aí nós destacamos o exercício e a prática — que têm tudo a ver com o exercício e a prática clínica da Esquizoanálise — daquela fórmula de Bartleby, o “prefiro não” quando o desejo percebe que está sendo sabotado, que onde ele investe, em vez de ter retorno sobre si, com preenchimento de intensidade, preenchendo seu corpo sem órgãos de intensidade, ele é esburacado, ele é sabotado.

Quando mapeamos o desejo na clínica, e percebemos onde ele está, o lugar, o tempo e o modo como ele está acoplado, vamos investir no desacoplamento. Ele está investido de uma forma tal que ele permanece atolado, então vamos investir no desatolamento, na desconexão, criando interruptores. E isso vai trazer mais dores, mais sofrimentos em um certo sentido, mas ao mesmo tempo vai dispor a energia vital para fazer novas conexões. Um contrainvestimento, reinvestimentos em outras zonas, que agora não têm mais a mediação das formas do corpo, das formas do pensamento e das formas do desejo. Relacionar-se diretamente com linhas do corpo, linhas do desejo e linhas do pensamento, e não mais com formas. Relacionar-se com ritmos, com processos que põem a nossa potência em ato, tanto do corpo quanto do desejo como do pensamento, em devir. Nós apreendemos os nossos devires.

Para isso, é preciso dizer “não”. O “não do leão”, como falamos nos nossos últimos encontros. Esse “não do leão” que estanca todo o processo niilista de rebaixamento da vida, seja por carregar formas divinas, seja por carregar formas humanas, seja por se conformar com formas naturistas. Esse processo niilista é interrompido por esse “não”. O clínico tem que ter esse olhar, através do qual ele detecta onde estão acontecendo as cumplicidades do desejo. As cumplicidades do desejo são contrainvestidas nesse processo. E aí o que acontece? Abre-se um horizonte, abre-se uma oportunidade. Você indetermina essas zonas determinadas que adoeciam o desejo, o corpo e o pensamento. Você disponibiliza novamente os tempos próprios e os movimentos intensivos.

Para quê? Para se experimentar. E você investe na espreita, em um devir-animal, em um devir-vegetal, em uma suspensão das demandas. E começa a perceber que o tempo é criado na duração de si mesmo. Você começa a aprender a valorizar o tempo próprio, os movimentos próprios que atravessam e constituem o seu corpo. E isso devolve o gosto pela vida, o gosto pelo acontecimento. Isso nos devolve a vontade de querer de novo. De novo e de novo. A cada vez e a cada volta do desejo, ele nos dá um plus de alegria, um preenchimento real, por mínimo que seja. É uma realidade, ainda que imperceptível, de uma intensidade tal que confronta todas as ordens dos falsos preenchimentos. E aqui a vida é retomada por um moto-contínuo.

Eu vi que houve manifestações aqui no encontro passado, se não me engano, dizendo que eu não havia falado sobre a criança, quando eu citei as três metamorfoses do espírito, que aparecem na primeira parte do Zaratustra do Nietzsche. Eu falei sobre quando o espírito se torna camelo, quando ele se torna leão e quando ele se torna criança. A criança, em Nietzsche, no Zaratustra, é um novo começo. Uma inocência, portanto, não tem culpa, não tem falta, não tem a visão de que o real é impossível. Ela é um novo começo. E também uma inocência. E, sobretudo, uma roda que gira por si mesma, um moto-contínuo, porque ela sabe dizer “sim”. Ela diz “sim” ao quê? Ela não diz “sim” à aposta, como os desejos intencionais, que ficam apostando que vai dar certo ou tendo esperança de que vai dar certo e temendo que vai dar errado, esperando as recompensas e temendo os castigos. Ela não aposta. A criança, em seu devir-criança, sabe jogar. E quem joga bem não é o apostador. Quem joga bem é o afirmador do resultado do jogo, porque, antes de tudo, sabe lançar os elementos que compõem o jogo, lançar os dados e afirmar o resultado. E, nesse processo de afirmação, ao mesmo tempo conquista o direito à retomada de si já de um ponto de vista deslocado e diferencial. Nunca é o mesmo em mim que retorna, é sempre uma potência já potencializada, já diferenciada, já tornada diferente ou distante de si mesma. E ela se lança novamente em um moto-contínuo, em um devir ativo autossustentável. Essa é a visão da criança. É essa visão que hoje domina a nossa exposição sobre o corpo de potência e o pensamento criador. Uma roda que gira por si mesma, ou novo começo, uma inocência, um saber dizer sim, um sagrado dizer sim. Um jogo alegre dos devires.

Isto é, de alguma maneira, o que nós sinalizamos quando falamos do comum ou do comunal, da zona comum de passagem que é essa zona que, na verdade, podemos designar como comunal, para fazer a diferença entre o suposto comum, que seria o ordinário, e fizemos a diferença em relação ao público, ao coletivo, ao universal e ao ideal. O comunal não é o ideal porque o ideal tem uma fórmula. O comunal não é o universal porque o universal, igualmente, tem uma fórmula. O ideal é uma suposta realidade que não é existente, que está fora e sobre a existência, de modo eminente, e que submeteria todos os existentes. Assim como no modelo platônico, no máximo seríamos apenas cópias, ou seja, não teríamos a mesma forma do ser, e então não haveria a comunidade do ser.

Esse comunal não é o ideal. E esse comunal não é o universal porque o universal é sempre uma forma de submeter as partes a uma generalidade, e não se trata disso. O comunal de fato é uma zona de passagem comum, da qual todos participamos. Não há um ser existente sequer que não esteja necessariamente nessa zona de passagem, apesar de muitas vezes não apreendê-la.

E, além disso, o comunal não é o coletivo, porque ele não é feito de uma coletividade de pessoas ou de uma coletividade de indivíduos. O comunal não tem a forma de um conjunto de pessoas, nem a forma de um conjunto de indivíduos. Ele não é uma coleção. O comunal é uma zona de passagem na qual os desejos, as nossas potências em ato principiam o seu ato justamente na passagem. A passagem do tempo necessário. A passagem do movimento necessário. Não há vida que não esteja em movimento, não há vida que não esteja no tempo, e esse tempo e esse movimento são o princípio do comunal. Ele necessariamente acopla, como uma espécie de placenta cósmica à qual todo existente está ligado e da qual se alimente.

O comunal não tem forma, mas é um ser. E esse ser comum é o horizonte das nossas potências libertas das formas sociais, das formas históricas, das formas culturais, das formas legais, das formas até de espiritualidade, e principalmente das formas morais. Esse horizonte é libertário. É preciso, então, acessar, investir e produzir essa zona de passagem. Nós, no curso de longa duração, de formação à Esquizoanálise, vamos investir largamente naquilo que Bergson chamava de zona de indeterminação do movimento, uma zona de indiscernibilidade do pensamento e uma zona de ambiguidade do desejo. Isso tudo para quê? Para que as determinações e as demandas cessem, e os desejos, movimentos e tempos, libertos das demandas, de formas, de função, do poder estabelecido, se coloquem em processo de diferenciação tanto do movimento que produz corpo intensivo, quanto do desejo que produz afetos ativos, quanto do pensamento que cria novas maneiras de existir.

Essa zona de indeterminação dá ocasião e oportunidade para nossa potência se pôr em processo de diferenciação. É a diferenciação que entra em contraste com as determinações exteriores. E essa diferenciação acontece e emerge a partir do momento em que esse horizonte se coloca diante de nós. Mas ele não se coloca diante de nós espontaneamente. Ele deve ser provocado — e aqui também a tarefa do clínico diante do seu analisando. Mas podemos fazer isso em nossas vidas. É necessário que todo clínico antes faça a lição de casa, faça isso em sua própria vida, senão ele não se torna um bom clínico.

E é isso o que faz com que o desejo, o corpo e o pensamento entrem em um devir ativo e autossustentável, e criemos uma zona de ressonância que é feita de afirmação de cada potência em ato que, ao ser afirmada, se põe em processo de diferenciação, produção de si e invenção de novas maneiras de existir. O pensamento criador fica acoplado aí, a partir do momento que ele apreende a zona comum, o acontecimento dos acontecimentos que se torna instigador do processo de diferenciação da potência e da produção de um corpo sem órgãos, agora pleno de intensidades, preenchidos de intensidades, um corpo de potência. Essa é a saída essencial, mas, para que isso aconteça, é preciso encontrar essa zona comum, sem a mediação do ideal, do universal, do legal, do coletivo e do público.

Esqueci de falar do público. Muitas vezes dizemos que o público é melhor do que o privado, mas não devemos esquecer que quem inventou o privado foi o público. E o público nunca foi o comunal, o público sempre foi o sequestro do comunal. Então nem ideal, nem universal, nem coletivo, nem público.

E, de outro lado, se o comunal é uma zona, é um ser sem forma — não tem a forma do ideal, do universal, do público, do coletivo —, a potência, no outro polo, que é feita de durações e acúmulos de tempos, uma memória que amplia o ser e o corpo sem órgãos, essa potência só é ampliada em um processo ascendente de diferenciação à medida em que é afirmada a partir desse horizonte comum e encontra o seu ponto absoluto. O ponto de vista que tem o aspecto absoluto é a coincidência do comum ou do comunal com a linha de singularização. À medida em que o desejo encontra essa linha de singularização — e aqui a tarefa do clínico é fundamental, nesse sentido —, vai produzir, na clínica, não mais um sujeito reestruturado que se colocou no lugar de um desejo decaído, não mais um ser normatizado que vai ter autoridade, que vai ter poder, que vai ter direito ao gozo, que vai ser um ilustre cidadão de bem ou um ser padrão que vai atender à máquina social, mas agora um ser liberto, um ser que cria as próprias condições de existência, que cria valor. Isso porque, nesse processo de afirmação do comum que envolve a potência e se diferencia em uma linha de singularização, se produz também valor.

O que é um valor? É uma potência de acontecer. Emergem novas potências de acontecer a partir das nossas maneiras de viver plenamente afirmativas. E, desse ponto de vista, não há qualquer falta. Chamamos de “falta” para brincar, porque ela se torna um fantasma sem nenhum poder sobre nós. Os fantasmas vão virar instrumentos de brincadeiras, vão se tornar matérias lúdicas, assim como as alucinações. Alucinações e delírios de um modo de desejar que se preenche de intensidade. Todo delírio e toda alucinação, no fundo — mesmo quando a vida está separada do que pode —, derivam de presenças intensivas reais que são impedidas, bloqueadas nos processos de relação social e, portanto, criam essas saídas delirantes e alucinatórias. Mas há sempre uma presença de intensidade, só que aqui a intensidade ganha a sua inocência, a sua ordem própria, a sua lucidez própria.

Eu acho que isso já dá, em grande medida, o horizonte ou viés por onde vai nossa resposta, nossa solução para uma maneira ativa, criativa e afirmativa de viver, para que nos tornemos de fato, na existência, o que somos de direito em essência: uma potência de criar valor e de criar realidade. Não há desejo que se satisfaça, não há felicidade fora da atividade criadora. Então nós nunca vamos encontrar uma verdade que nos preencha se não criarmos uma maneira de diferenciar a nossa potência. É aqui que mora a saída e uma liberdade real, que não tem nada a ver com a liberdade do livre-arbítrio.

Eu agora vou passar a responder a algumas questões. É o que eu disse a vocês, a maioria delas já foram contempladas nas nossas aulas. Algumas eu ainda vou atender aqui, e as que ficarem eu vou responder através de pequenos vídeos ou vídeos-pílulas que vão ser publicados no Instagram e no Facebook. Aí, assim que eu acabar, eu vou usar uns quinze, vinte minutinhos para responder a essas questões, aí eu vou expor o nosso curso que inicia agora em agosto. Se não me engano é na terceira semana de agosto, na terceira terça-feira de agosto que deve ter início. E aí eu vou anunciar também os prazos para as inscrições. Então é isso.

Eu vou me permitir aqui ler. De novo, essas manifestações eu vou deixar para olhar depois, e aí o que me couber responder, eu respondo através dessas vídeo-pílulas.

Bom, na aula 1. Eu imprimi aqui as questões, elas estão aqui diante de mim. Tem várias páginas, mas eu selecionei uma ou outra, só.

Uma delas, lá da primeira aula, diz assim: “Como você propõe essa retomada de percepção de si e do entorno?”.

A retomada da percepção de si e do entorno é uma espécie de despertar. Eu vou responder de modo esquemático, através de cinco questões. A primeira vale para mim, para você, para o analisando, para o analista, para quem quer que seja: com o que o meu desejo está conectado agora? Ou com o que ele se conecta?

Segundo: de que maneira ele se conecta? Ou seja, como ele se conecta? Depende de um jeito, de uma maneira. Essa maneira depende de mim? Depende do outro? Então, “como” é a segunda pergunta.

Em terceiro lugar: o que me acontece à medida em que eu me conecto com isso dessa maneira?

Quarto: o que eu faço com isso que me acontece? De bom ou de mau, segundo o que eu me conectei, a maneira como eu me conectei e o que me aconteceu. O que eu faço com isso? Mas isso não basta. Aí ficaríamos no existencialismo de Sartre, por exemplo, “o que importa não é o que fizeram com você, mas o que você fez com o que fizeram com você”.

Eu diria que o fundamental é encontrar uma espécie de terceiro olho, que é o olho de potência. Esta é a nossa quinta questão. É quem em nós faz um uso do que nos aconteceu, segundo esta ou aquela conexão que o desejo fez, e maneira como ele o faz, e o que lhe aconteceu. Quem em nós faria esse uso? E é preciso chegar a esse “quem” com um olho de potência. O ser de potência em nós é quem deve ter essa visão, e esse “ele” em nós, esse terceiro entre mim e eu, entre a mente e o corpo, que cola novamente o desejo à sua potência de acontecer, e o desejo se tornar novamente o desejo que deriva da própria potência. É esse “ele” que é capaz de tomar distância sobre as nossas bolhas e furá-las.

Então eu diria que, fundamentalmente, é essa a maneira, é isso o que eu proponho para a retomada da percepção de si e do entorno. Nós focamos, nós criamos um instrumento de perceber os próprios devires em nós enquanto nos compomos com isso ou com aquilo ou nos conectamos com isso ou com aquilo, segundo esta ou aquela maneira e o uso que se faz disso.

Eu vou saltando aqui. “Onde posso ler sobre o comunal?”. Eu diria que a maior obra sobre o ser comum começa com a Ética de Spinoza. Só vou dizer isso agora, mas eu nunca vi nada escrito sobre o comunal da maneira como eu falo — eu preciso, inclusive, escrever mais sobre isso. O comunal é um ser sem forma, mas muitas vezes ele é confundido com a própria forma. Então eu diria para ir até a Ética do Spinoza.

“Comunal é igual acontecimento?”. Sim, o comunal é o acontecimento dos acontecimentos.

“Como se vive e se relaciona com os outros sem fazer concessões?”. É uma boa questão, esta. Como nós vivemos e nos relacionamos com os outros, afirmando o comunal, sem fazer concessões? Justamente porque o comunal é um plano de afirmação. Ele não afirma só a minha potência que se diferencia ou a diferença da minha potência que se torna existente. Ele não afirma só isso. Ao afirmar o meu processo de diferenciação, ele também, necessariamente, afirma os outros processos de diferenciação. Ele ama a diferenciação das potências, em vez de querer se sobrepor às outras potências. Quanto mais as potências são afirmadas, mais a minha também é. Isso é um círculo virtuoso. É por isso que o comunal é uma zona de ressonância das nossas zonas de autonomia. Então, não é necessário, ao contrário, não se faz nenhuma concessão. Por quê? Porque a afirmação não constrange ninguém, ela potencializa os outros processos de diferenciação, isso sim. E não impede que eles emerjam. O que constrange são sempre as parcializações das formas, quando o comunal é sequestrado por algum tipo de forma, principalmente pelo público ou pelo privado, ou pela moral.

Existe uma outra aqui: “Como é na prática, no dia a dia, que tipo de ações, enfim, como atuar cotidianamente em termos de Esquizoanálise?”.

Eu respondi a esta questão também, que é a questão sobre a primeira coisa que é necessário fazer na clínica ou na vida, que é encontrar o desejo onde ele está, do jeito que ele está, sem querer idealizar ou negar o que está acontecendo ali. Ele está de uma maneira tal que você tem que apreender por que ele está ali. Inclusive, geralmente ele se queixa da situação da qual ele está sendo cúmplice porque ele precisa daquele processo. Se você tirar aquele processo dele, ele acha que vai morrer, ele acha que vai se enfraquecer. É aquele famosa frase: “ruim com isso, pior sem isso”. É como os casamentos ruins, as relações ruins, a profissão ruim, é tudo assim. Então, tirar isso. Desinvestir isso, mas é preciso antes aceitar, perceber onde isso está, para daí, reconhecendo as cumplicidades, dizer assim “olha, você está sendo cúmplice”. Então você começa a reconhecer as próprias forças, que estão ali aprisionadas por um investimento seu mesmo. “Ah, porque eu preciso”. Hum, até que ponto você precisa? Então esse é o primeiro elemento prático, e depois você começa a criar a condição da retomada dos tempos e dos movimentos próprios.

Esta é a questão prática fundamental. Claro, e aí tem todo… nesse curso de formação em Esquizoanálise eu faço longas exposições a respeito disso, todo o procedimento para você fazer a desconstrução das subjetividades e das organizações que aprisionam os corpos, o desejo e o pensamento. E assim dispõe novamente da potência de criar o tempo, de criar o movimento, de criar o próprio corpo sem órgãos, de criar uma maneira libertária de existir.

Aqui há uma outra questão interessante. “Há um limite para o bom uso daquilo que nos acontece ou não? Por exemplo, diante do horror ficamos paralisados. Você falou da tragédia. Fale mais sobre isso.”

É uma questão incrível, porque, diante de um acontecimento estarrecedor, o pior dos acontecimentos, como encontrar o sentido alegre dessa tragédia? É bem difícil, mas tem. Em todo trágico tem, porque tem também o elemento fatal, o elemento necessário. E, mesmo na morte, mesmo na destruição mais terrível, ali existe uma zona de passagem. A zona de passagem que também faz viver, que faz nascer, que faz contraefetuar e se alimentar daquilo, mesmo que tenha sido o pior. Você pode extrair sempre alimento. Aqueles que viram Estamira aqui, a Estamira dizia que vivia daquela criança que morreu com dois anos de idade, filho dela, que dava muita força para ela. Ela sabia extrair muita força dali. Extraímos força até dos piores acontecimentos. É difícil? É difícil, não é nada fácil, mas esse caminho existe. Nós realizamos esse caminho. Nós vivemos dessa maneira.

E aqui tem uma série de outras questões. Deixa eu ver aqui. Aqui diz, “Luiz, você pensa em abrir um grupo para ex-alunos praticarem a sua clínica?”.

Eu vou responder rapidamente. Sim, nós estamos criando grupos que nós chamamos de “intervisão”. Intervisão em Esquizoanálise, que é diferente da supervisão em psicanálise. A intervisão em Esquizoanálise é um processo de acompanhamento daqueles que fizeram o curso de formação e querem praticar a clínica, e seguir tendo um suporte para adquirirem uma confiança ainda maior em sua prática clínica. Mas vamos anunciando nos nossos canais, nas nossas redes, tanto esses grupos de intervisão quanto também a prática de Esquizoanálise em grupo.

Aqui, outra coisa. Não, isso já está respondido.

Existe uma questão aqui, difícil. “Gostaria que fosse comentado sobre a interface entre as libertações do desejo e as imposições sociais de ordem material. Como fugir da falta em um país onde mesmo comida e moradia faltam?”

Esta questão é essencial. Eu digo o seguinte: primeiro, não é necessariamente o prato de comida. Claro que o prato de comida é essencial. Se você não se alimenta, se você não dorme, se você não repõe as suas energias você definha, você não consegue nem parar em pé. Ok, mas é preciso encontrar um foco e polir essa lente para que esse foco se torne cada vez mais nítido, criar uma visão de que o valor é produzido pelo modo de viver, e o modo de viver não tem nada a ver com uma postura individual ou pequeno-burguesa. O modo de viver necessariamente é uma maneira de estar em relação imediata com o coletivo e com as redes diagramáticas de forças que compõem uma sociedade. Então, criar valor é a saída, e criamos valor a partir da afirmação do tempo próprio. E afirmamos e criamos tempo próprio à medida em que investimos nos vácuos, nos entretempos, nas distâncias, enfim, é todo um processo que eu situei em alguns encontros anteriores, de modo bem esquemático, que no curso de formação nós desenvolvemos muito em detalhes.

Então esse aspecto é muito importante. Nós, na verdade, somos seres criadores de valor. Todos nós podemos criar valor. “Ah, mas e se não há as condições?”. As condições podem ser criadas mesmo sem patrocínio. Com alianças, nós precisamos criar alianças transversais, comunidades, zonas de ressonância onde há uma distribuição direta de forças aliadas que nos auxiliam na condição de retomar as nossas próprias forças e nos pôr a produzir novos horizontes, novas zonas de passagem, abrir novos poros, novas portas, novas janelas, criar novas pontes e assim por diante.

Eu vou me deter aqui, são muitas questões. Eu me lembrei de uma questão que recebi por áudio também, que foi da Geruza Zelms , ela me fez a seguinte questão em relação ao nosso último encontro. Eu acho que é uma questão muito importante, por isso vou destacá-la aqui rapidamente.

Ela sente que o bipolar, por exemplo… O que é o bipolar? É o maníaco-depressivo. Ele gera uma resposta aos modos contemporâneos de existir de uma sociedade que se torna líquida, de uma sociedade que vai esfumaçando e dissolvendo as binaridades, que mostra a ilusão do modo binário de existir, da ideologia binária. Homem e mulher, solteiro e casado, enfim, as binaridades às quais geralmente estamos acostumados e que estão em um grande processo de mudança. Então, seria uma resposta à atitude bipolar ou ao que é classificado como doença bipolar.

O bipolar ora está em um processo depressivo, de desistência, que nós falamos bastante no nosso quarto encontro, no nosso encontro passado; e ora ele está em um processo de mania e de euforia. Então o que seria isso, na verdade? Nós precisamos entender que a resposta bipolar não é apenas — claro, essa questão é importantíssima, eu acho que isso multiplica os casos diagnosticados como sendo bipolaridade, mas a bipolaridade tem um elemento além das formas binárias, da destituição da ilusão da ideologia binária, ela se mantém ainda como resposta a uma desilusão do processo de idealização. Por exemplo, mesmo as formas binárias desaparecendo, o que não desaparece no bipolar é a vontade de ideal. Ele cria verdades, ele investe em verdades. Por exemplo, ele pode investir no poliamor, ele pode investir nos N sexos, ele pode investir nas N raças, ele pode investir nas várias minorias. E o que acontece? Nesse processo, inclusive de euforia, que supostamente devolveria um horizonte interessante que substituiria as formas binárias, ele acaba por se decepcionar e lhe falta chão. Ele fica sem chão. E se deprime novamente até que a depressão se torne dominante, e aí o processo dele entra em uma unipolaridade e não mais em uma bipolaridade. A unipolaridade de uma depressão que desiste cada vez mais e vai naquela direção do grande cansaço que é o nada de desejo.

Mas, claro, essa é uma questão que merece uma resposta mais complexa, mais detalhada, mais cheia de nuances, e que provavelmente nós faremos também um vídeo específico para essa questão, com uma resposta mais enriquecida.

Era isso que nós tínhamos nos proposto para esses dois primeiros movimentos, e eu vou entrar agora em um terceiro movimento, que é a exposição do nosso curso de formação em Esquizoanálise, que vai iniciar agora em agosto e vai até julho de 2024. Tem, portanto, dois anos de duração, tem quase duzentas horas de conteúdo, e ele acontece segundo o método da intuição filosófica. Ele se compõe do seguinte: são 31 aulas gravadas, especialmente dedicadas à formação em Esquizoanálise. Este é o primeiro aspecto. São aulas de uma hora de duração, dedicadas integralmente às quatro zonas de passagem, e nelas expomos o nosso método, que visa dinamizar, amplificar, efetivar, concretizar e colocar em prática a aplicação do pensamento da Esquizoanálise.

Claro, nos servimos do máximo de elementos oferecidos por Deleuze e Guattari em suas obras, principalmente o Mil Platôs e O Anti-Édipo, em conjunto com Capitalismo e Esquizofrenia, além de outros textos, e nos servimos de muitos pensadores da filosofia da diferença. E essas aulas não são especialmente dedicadas à interpretação ou ao desdobramento do pensamento de Deleuze e Guattari, mas a expor um método prático, concreto, rigoroso e profundo de desconstrução das duas primeiras grandes zonas de passagem, de acesso à terceira grande zona de passagem e, por fim, à conquista do processo de diferenciação como um corpo de potência e um pensamento criador, que é a quarta grande zona de passagem.

Além dessas aulas do curso de formação em Esquizoanálise — aliás, esse termo “formação” é apenas uma maneira de falar, assim como falamos “Eu”, assim como falamos “O sol se levanta”, falamos “formação” porque é mais fácil das pessoas entenderem. Na verdade, no entanto, se trata de uma desformatação, de uma desconstrução da nossa subjetivação, do nosso pensamento significante e do nosso organismo. A desconstrução das três prisões: duas semióticas, do desejo e do pensamento; e outra corporal, do indivíduo. Essas três prisões são desformatadas, para daí gerarmos, na mesma medida, em contrapartida, um plano de consistência mais do que uma formação. É encontrar e criar para si um plano de consistência, ao mesmo tempo fabricando seu próprio corpo sem órgãos. É uma nova coesão para o corpo, para o desejo e para o pensamento. É disso que se trata, não é exatamente uma formação. É uma desconstrução para daí criar uma nova coesão, uma nova maneira de existir.

Além disso, tem dois cursos que são oferecidos em forma de bônus, porque eles não tratam exatamente desse método para se tornar um esquizoanalista e praticar as Esquizoanálise. Mas são dois cursos que investem diretamente os textos das duas principais obras, que são o Anti-Édipo e o Mil Platôs. O primeiro curso tem quinze aulas gravadas, de duas horas e pouco de duração, é sobre o Anti-Édipo, que nós denominamos “Capitalismo e esquizofrenia”. Interpreta a primeira parte do Anti-Édipo e é de grande valia para implementar, para acessar o modo como eles pensam e o que estão propondo ali, e dá muita consistência para o nosso modo de experimentar e de criar o pensamento próprio.

O outro curso é o “Micropolítica dos afetos”, através da análise de textos do Mil Platôs. “A micropolítica e o uso dos afetos”, na verdade se chama assim. Tem dezesseis aulas, também com duas horas e pouco de duração.

Além do curso de formação, com 31 aulas, do “Capitalismo e esquizofrenia”, com 15 aulas, e do “Micropolítica e o uso dos afetos”, com 16 aulas, tem 32 aulas online e ao vivo, que acontecem por um tempo que é mais ou menos aberto, mas que varia entre duas e três horas de encontro, às vezes até um pouco mais. Esses encontros, no primeiro ano, se dão de modo quinzenal. No segundo ano, se dão de modo mensal. É mais ou menos isso. Para fazer a passagem, às vezes acontecem de três em três semanas.  Então, inicialmente é de duas em duas semanas, depois é de três em três semanas, para fazer a passagem para o final, que é de um em um mês, ou seja, as aulas se tornam mensais.

Então essas 32 aulas online, ao vivo, acontecem com a participação de todos os inscritos, mas você também tem a possibilidade de ver ou rever os encontros, porque ficam gravados. Tudo fica gravado, inclusive os encontros online ao vivo. E você vai ter acesso vitalício a eles, para sempre. Uma vez que você entra no curso, você pode acessar quantas vezes você quiser, pelo tempo que você achar necessário. Você vai ter sempre disponível para poder recorrer a isso.

Essas aulas que são dadas ao vivo são temáticas, 12 aulas são dedicadas à Esquizoanálise ligada a pensadores da diferença, por exemplo, “Spinoza e a Esquizoanálise”. Claro, Spinoza é do século 17, o que ele tem a ver com esquizoanálise? Ele dá os fundamentos e pressupostos filosóficos, sem os quais a Esquizoanálise não ganha a consistência que tem. “Nietzsche e a Esquizoanálise”, “Bergson e a Esquizoanálise”, “Foucault e a Esquizoanálise”, “Artaud, o corpo sem órgãos e a Esquizoanálise”, “A máquina de fabricação de rosto, a rostificação na Esquizoanálise”. Enfim, por aí vai. Isso fica então explícito no programa, 12 aulas que são temáticas, assim como 12 aulas de estudos de casos clínicos, sejam vindos dos livros, sejam vindos do consultório ou de situações sociais, sejam até casos pessoais. Agora, além disso, você tem 8 encontros, dessas aulas online, ao vivo, que são abertos. Abertos a questões, a problemas, a colocações, e acontecem de modo muito dinâmico e muito bonito. Geralmente são extremamente ricos, porque sempre as questões são desdobradas de modo a nos surpreender, e sempre acabamos indo mais longe. Então é isso, basicamente.

Além disso, existe uma garantia para os que se inscrevem. Você que eventualmente quer se inscrever e tem algum tipo de dúvida, você pode depois desistir. Há um prazo para a desistência. Existe o fornecimento de certificado final, uma espécie de diploma dado pela Escola Nômade de Filosofia — desde que claro, cumpridos os conteúdos. E também um suporte da nossa equipe, dado pelo André, pela Julia e por outros que colaboram com a equipe. Um suporte que é dado por e-mail, por WhatsApp, e um suporte que é dado na própria plataforma onde disponibilizamos os conteúdos.

Existe uma plataforma de alunos, e você tem ali uma espécie de espaço próprio, com seu login e senha, que você acessa e tem tudo disponível, e o seu histórico registrado. Vocês podem tirar as dúvidas com o André e com a Julia, que devem estar aí respondendo o chat, até. O André vai depois disponibilizar já o link, porque a partir deste momento as inscrições estão abertas para este curso de longa duração. Este curso, claro, é pago, porque exige toda uma dedicação. Eu me dedico durante dois anos para dar suporte permanente para os participantes, e cada aula ao vivo é sempre inédita e tem toda dedicação, toda entrega que nós podemos dar, dispor nessas condições.

Aqui, os nossos encontros foram feitos dessa maneira. É o que eu posso fazer, por enquanto, para aqueles que não têm condições materiais de entrar em um curso de longa duração e de profunda especialização, como é este de formação em Esquizoanálise. É uma maneira já, para aqueles que não têm condição, de se introduzirem e irem estudando por conta própria. Nós, claro, temos uma vontade de ampliar isso cada vez mais, e à medida em que pudermos dispor de mais conteúdo, nós vamos dispor conteúdos gratuitos, mas isso, no momento, é o que podemos fazer.

A partir de agora até amanhã existe uma condição bem especial, então vocês podem acessar, vocês vão ver que a condição é bastante especial. E aí, a partir de meia-noite de segunda-feira, a condição muda. Mesmo assim, vai seguir com uma condição talvez menos especial, mas ainda com um bom desconto por uma semana, se não me engano. Esses detalhes vocês veem com o André, na página que vocês vão poder acessar para ver os detalhes e as informações. E é isso.

Eu fico disponível para as questões que forem surgindo. E nós vamos iniciar então este mergulho a partir, se não me engano, do dia 23 de agosto. Existe um bom tempo até lá, mas as inscrições já estão abertas, de modo muito especial, com uma condição muito especial só até amanhã. É uma coisa meio de praxe, que parece que todo mundo faz para as pessoas que já têm essa vontade, que estavam já preparadas, elas podem então extrair um adiantamento desse processo, dessa condição.

No mais, eu acho que é isso. Nós acabamos cumprindo nosso tempo à risca aqui. Agora temos 1h23 de transmissão. Eventualmente eu posso até responder a mais alguma questão, que seria… deixa eu ver. Aqui, para ficarmos mais uns minutos e aproveitarmos um pouquinho mais, eu posso seguir respondendo a algumas questões que surgiram aqui.

Uma questão muito interessante que surgiu aqui diz assim: “Para falar tanto em desconstrução, seria importante que a filosofia de Jacques Derrida também estivesse na bibliografia”. Olha, de fato eu acho que é uma obra que tem muito a contribuir, a de Derrida. Eu até lembro que essa pessoa que se manifestou aqui chegou a fazer uma questão sobre alteridade, sobre a questão da hospitalidade, sobre a questão da abertura para o outro, que eu prometo que vou responder isso em vídeo também. Pode esperar, que eu vou responder isso em vídeo. Tá bom, gente?

Eu esqueci de falar que chegaram umas questões por e-mail. Aqueles que mandaram por e-mail, não se preocupem, que eu também vou responder. Chegaram questões muito interessantes por e-mail.

Então é isso. Bom, gente, eu acho que é basicamente isso. Eu queria agradecer muito a todos, a todas, pelo carinho, pelo incentivo. E nós vamos estar aqui sempre empenhados em divulgar cada vez mais esse modo de viver, contagiando, nos alegrando cada vez mais com esse contágio, com essa multiplicação, com essa maneira de provocar as vidas que estão ainda adormecidas, mas com chances de despertar, para criarem zonas próprias de ressonância, e assim sairmos dessa zona passional e reivindicativa que tanto nos adoece e vitimiza. Precisamos sair desse campo da vitimização e tomar a vida nas próprias mãos. Cada um de nós pode fazer isso, mas nós precisamos encontrar, desejar e encontrar forças aliadas. É isso.

Muitíssimo obrigado a todos e todas. Muitos beijos e abraços, e até uma próxima oportunidade.

Transcrição por Gabriel Naldi